segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Uma máquina cultural internacional no rastro do filme sobre Bolsonaro

Qual a relação entre Ainda estou aqui e as teorias conspiratórias da extrema direita? Algumas notícias pós-prisão de Jair Bolsonaro indicam que uma máquina narrativa transnacional está gestando um filme em que o ex-presidente é apresentado de modo heróico...

No rastro do desvelar das manchetes com as reações à prisão de Jair Bolsonaro, ocorrida no sábado, 22 de novembro, começaram a aparecer em diversos veículos de notícias informações sobre as filmagens do longa-metragem que pretende contar sua história de forma romantizada e “heróica”. A primeira notícia sobre a produção audiovisual é datada de outubro deste ano, mas, curiosamente, nesta última semana diversos veículos replicaram a informação, ainda com poucos detalhes.

O que se sabe é que o filme contará a história de Bolsonaro a partir do recorte da corrida eleitoral de 2018, dando ênfase à facada envolvendo Adélio Bispo. Esse episódio dará o tom da trama, pois o filme evocará o papel do “vencedor improvável”, que realiza o combate contra as drogas e o crime organizado, enfrentando conspirações da esquerda.

Para além do timing das últimas notícias e da tentativa de construção do mito em torno da romantização da figura de Jair Bolsonaro, o anúncio do filme revela muito mais do que apenas uma resposta à recente prisão do líder da direita radical no Brasil: ele aponta conexões importantes sobre a máquina cultural transnacional conservadora empenhada na construção de narrativas, ideologias e reputações. Analisando os primeiros nomes da equipe de produção do filme divulgados na imprensa, nota-se a presença de norte-americanos, mexicanos e brasileiros, ou seja, de países com forte atuação nas redes conservadoras internacionais e que têm vínculos diretos com um importante agente do processo de internacionalização das direitas radicais, a Conservative Political Action Conference (CPAC).

<><> A máquina narrativa geopolítica

A CPAC é um evento norte-americano que nasceu em 1974 com o objetivo de estruturar as bases do movimento conservador estadunidense. Ao longo dos primeiros anos, as conferências se concentraram em demarcar as fronteiras entre os dois partidos norte-americanos, Republicanos e Democratas, com agendas anuais que exploravam as ameaças que os então liberais democratas ofereciam para a nação. Porém, as CPACs operam em diversos níveis desde seus primeiros anos, destacando-se sua função de unir e fazer crescer o movimento conservador estadunidense, inclusive para além das pautas domésticas, demarcando as relações internacionais com países estratégicos.

Mais recentemente, as CPACs tiveram uma virada ainda mais forte para as questões internacionais com a realização de edições internacionais de sua conferência. Essas movimentações ocorreram paralelamente à ascensão de Donald Trump em seu primeiro mandato presidencial, culminando com a primeira edição internacional, realizada no Japão, em 2017. Desde então, o evento tem crescido em número, acumulando agora em 2025 nove países-sede, articulando uma grande comunidade internacional em torno de suas pautas, lideranças e ideologias.

Além das edições anuais estadunidenses, na América Latina os países que têm realizado edições do evento são a Argentina (2024), o Brasil (2019, 2021, 2022, 2023, 2024 e 2025) e o México (2022, 2024 e 2025), o que começa a lançar luz sobre as conexões com a equipe de produção do filme sobre Jair Bolsonaro, mencionada anteriormente, já que estadunidenses, mexicanos e brasileiros se juntam na produção. Para explorar as conexões mais profundas de alguns desses agentes na grande rede da direita radical vinculada às CPACs, cabe agora atentar para as sutis relações construídas pelos principais nomes já mencionados nas matérias da imprensa, identificando pontos de encontro que vão além de suas próprias nacionalidades, mas que constituem relações que estão em construção há anos.

<><> Ainda estou aqui X discurso da direita

Faz-se necessário aqui um aprofundamento sobre a história da CPAC Brasil e sua relação com Eduardo Bolsonaro, em sua missão de articulador internacional do movimento das direitas radicais. A primeira edição do evento no país começa em 2019 por iniciativa de Eduardo Bolsonaro, com o objetivo de fortalecer o movimento conservador do país. Desde então, o evento, que é organizado pelo Instituto Conservador-Liberal (ICL), tem reunido políticos e líderes conservadores de todo o mundo para debater temas como a “liberdade de expressão” e o “combate ao comunismo”. Ao longo dos anos, o evento se tornou o principal palco da direita no país, reunindo figuras como Jair Bolsonaro e o argentino Javier Milei em suas edições.

E foi a esse palco que se somou o roteirista do longa-metragem, o brasileiro Mario Frias, ex-ator, ex-Secretário de Cultura do Governo Bolsonaro e que acumula uma longa lista de controvérsias em suas atuações governamentais. Entre as mais recentes está uma envolvendo outro filme, o aclamado Ainda estou aqui: enquanto o país parava para ver a cerimônia do Oscar, esperando a premiação de melhor atriz para Fernanda Torres e de melhor filme internacional (premiação que, de fato, ocorreu), Frias dizia que a obra era uma “manipulação psicológica”, uma peça de “desinformação comunista”. Frias é ferrenho defensor da família Bolsonaro e tem vínculos diretos com a CPAC Brasil, tendo participado como painelista da edição 2024, ocasião em que defendeu que o único candidato possível da direita para 2026 era Jair Bolsonaro, contrapondo-se ao movimento de ruptura que se iniciava entre os governadores que se lançavam como possibilidades após a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a inelegibilidade do ex-presidente.

<><> QAnon e “A oficina do diabo”

Explorando as conexões internacionais criadas por esses encontros no país, pode-se visualizar outro elo com o longa-metragem sobre Jair Bolsonaro, a participação de Eduardo Verástegui, listado como produtor do filme e um dos palestrantes na edição brasileira da CPAC de 2024. Verástegui é ex-modelo, ator e produtor mexicano e velho conhecido nos movimentos das direitas radicais. Está à frente do Movimiento Viva México, que busca se tornar um partido conservador de extrema-direita, defendendo principalmente pautas contra o aborto, e demonstra um evidente apoio às políticas de Donald Trump.

Além disso, é o diretor da CPAC México, a edição latina com maior número de painelistas e que tem articulado uma rede conservadora com atores de toda a América Latina e Caribe, mas com forte influência dos Estados Unidos. Eduardo Verástegui é um elo importante na costura da rede transnacional construída pelas CPACs, pois atua como ponte entre o mundo anglo-saxão, europeu e latino, o que pode ser ilustrado por sua participação ativa em diversas edições do evento. Ele tem participado como painelista nas edições Brasil 2024, México 2024, Argentina 2024, EUA 2025, Polônia 2025 e a CPAC Latino, realizada em Miami em 2025 com foco na comunidade latina estadunidense.

Além desse papel de articulação, Verástegui move alguns dispositivos da máquina cultural do movimento, estando à frente de três empresas de mídias e distribuidoras de produtos audiovisuais norte-americanas, a Metanoia Filmes, Santa Fe Films e a Angel Studios, todas com foco em produções com mensagens religiosas e conservadoras. A Metanoia Films é a produtora co-fundada por Verástegui, Leo Severino e Alejandro Monteverde com o objetivo de produzir filmes com mensagens sociais e “pró-vida”, como o premiado drama “Bella” (2006).

Já a Angel Studios opera um serviço de vídeo sob demanda, disponibilizando uma série de títulos originais produzidos por produtoras e estúdios parceiros. Entre alguns deles está a série The Chosen, que arrecadou mais de 10 milhões de dólares para sua produção. Já a outra grande produção desse estúdio, O Som da Liberdade, foi realizada em parceria com a Santa Fe Films e mobilizou grande parte da comunidade conservadora no país, envolvendo-se também em uma série de controvérsias relacionadas às teorias da conspiração. O filme foi um dos maiores sucessos do estúdio, e aqui no Brasil foi distribuído pela Brasil Paralelo por meio de parcerias com entidades ligadas a igrejas para mobilizar evangélicos e bolsonaristas para lotar salas de cinema, com a distribuição de ingressos grátis. Além disso, o filme também foi associado por críticos e especialistas ao movimento QAnon, que defende a tese de que grandes lideranças mundiais seriam parte de uma rede secreta de pedófilos e adoradores de Satanás, que estariam na mira de políticos como Donald Trump (e, implicitamente, Bolsonaro), em uma guerra secreta.

O ator principal do filme de Jair Bolsonaro, Jim Caviezel, é também protagonista de O Som da Liberdade, o que estabelece uma conexão direta. Caviezel é constantemente envolvido em polêmicas sobre teorias da conspiração, em especial as teorias do QAnon, participando de eventos conservadores nos Estados Unidos, replicando falas sobre a existência de uma “cabala satânica” responsável por controlar o poder e afirmando que a vacina de Covid-19 seria uma terapia genética, parte de um projeto de despovoamento.

Os posicionamentos de Caviezel revelam um grande alinhamento ideológico que pode ser a base para a escolha dos membros da equipe que fará parte do filme sobre Jair Bolsonaro. Começando pelo diretor Cyrus Nowrasteh, um cineasta estadunidense conhecido por dramas históricos e filmes com temas religiosos e políticos. Entre seus trabalhos estão “O Jovem Messias” (2016) e “Sequestro Internacional” (2019), um thriller estrelado por Jim Caviezel. A atriz brasileira Bianka Fernandes, nomeada entre o hall de atores, tem carreira construída na rede Record de televisão, em produções como Os Dez Mandamentos (2015) e Gênesis (2021). Já Sérgio Barreto e Felipe Folgosi, ambos atores brasileiros, têm atuação compartilhada no filme “Oficina do Diabo” (2025), produzido pela Brasil Paralelo.

Em conclusão, as conexões apresentadas permitem verificar o arcabouço de uma máquina cultural transnacional que opera de maneira descentralizada, mas coordenada, com foco em construir, disseminar e consolidar narrativas da direita radical em escala global. A produção do filme sobre Jair Bolsonaro não é um evento isolado, mas sim o produto mais recente dessa rede estrategicamente articulada, onde agentes e ideologias se cruzam com o objetivo de influenciar o debate político e a memória coletiva.

Mas um ponto ainda chama a atenção: a filmagem do longa-metragem em inglês, com equipe e parte do elenco estadunidense, aponta para o objetivo da obra. Agora, o foco não é mais, somente, o eleitor brasileiro, mas sim a comunidade conservadora e de direita radical internacional. O filme busca colocar Bolsonaro como um ícone na luta global contra a esquerda, na tentativa de igualá-lo a Donald Trump e Javier Milei. Esse direcionamento reforça a tese de que a máquina cultural não se concentra em questões nacionais, mas sim na construção de uma identidade política unificada, na qual as narrativas de líderes são intercambiáveis e validadas internacionalmente. Em última análise, a máquina cultural aqui descrita, culminando no filme sobre o ex-presidente, demonstra que a disputa pela hegemonia ideológica transcendeu as fronteiras nacionais, utilizando o entretenimento como uma das principais ferramentas para a mobilização política e a reescrita da história em tempo real.

 

Fonte: Por Ramon Fernandes Lourenço, no Le Monde

 

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