Uma
máquina cultural internacional no rastro do filme sobre Bolsonaro
Qual a
relação entre Ainda estou aqui e as teorias conspiratórias da extrema direita?
Algumas notícias pós-prisão de Jair Bolsonaro indicam que uma máquina narrativa
transnacional está gestando um filme em que o ex-presidente é apresentado de
modo heróico...
No
rastro do desvelar das manchetes com as reações à prisão de Jair Bolsonaro,
ocorrida no sábado, 22 de novembro, começaram a aparecer em diversos veículos
de notícias informações sobre as filmagens do longa-metragem que pretende
contar sua história de forma romantizada e “heróica”. A primeira notícia sobre
a produção audiovisual é datada de outubro deste ano, mas, curiosamente, nesta
última semana diversos veículos replicaram a informação, ainda com poucos
detalhes.
O que
se sabe é que o filme contará a história de Bolsonaro a partir do recorte da
corrida eleitoral de 2018, dando ênfase à facada envolvendo Adélio Bispo. Esse
episódio dará o tom da trama, pois o filme evocará o papel do “vencedor
improvável”, que realiza o combate contra as drogas e o crime organizado,
enfrentando conspirações da esquerda.
Para
além do timing das últimas notícias e da tentativa de construção do mito em
torno da romantização da figura de Jair Bolsonaro, o anúncio do filme revela
muito mais do que apenas uma resposta à recente prisão do líder da direita
radical no Brasil: ele aponta conexões importantes sobre a máquina cultural
transnacional conservadora empenhada na construção de narrativas, ideologias e
reputações. Analisando os primeiros nomes da equipe de produção do filme
divulgados na imprensa, nota-se a presença de norte-americanos, mexicanos e
brasileiros, ou seja, de países com forte atuação nas redes conservadoras
internacionais e que têm vínculos diretos com um importante agente do processo
de internacionalização das direitas radicais, a Conservative Political Action
Conference (CPAC).
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A máquina narrativa geopolítica
A CPAC
é um evento norte-americano que nasceu em 1974 com o objetivo de estruturar as
bases do movimento conservador estadunidense. Ao longo dos primeiros anos, as
conferências se concentraram em demarcar as fronteiras entre os dois partidos
norte-americanos, Republicanos e Democratas, com agendas anuais que exploravam
as ameaças que os então liberais democratas ofereciam para a nação. Porém, as
CPACs operam em diversos níveis desde seus primeiros anos, destacando-se sua
função de unir e fazer crescer o movimento conservador estadunidense, inclusive
para além das pautas domésticas, demarcando as relações internacionais com
países estratégicos.
Mais
recentemente, as CPACs tiveram uma virada ainda mais forte para as questões
internacionais com a realização de edições internacionais de sua conferência.
Essas movimentações ocorreram paralelamente à ascensão de Donald Trump em seu
primeiro mandato presidencial, culminando com a primeira edição internacional,
realizada no Japão, em 2017. Desde então, o evento tem crescido em número,
acumulando agora em 2025 nove países-sede, articulando uma grande comunidade
internacional em torno de suas pautas, lideranças e ideologias.
Além
das edições anuais estadunidenses, na América Latina os países que têm
realizado edições do evento são a Argentina (2024), o Brasil (2019, 2021, 2022,
2023, 2024 e 2025) e o México (2022, 2024 e 2025), o que começa a lançar luz
sobre as conexões com a equipe de produção do filme sobre Jair Bolsonaro,
mencionada anteriormente, já que estadunidenses, mexicanos e brasileiros se
juntam na produção. Para explorar as conexões mais profundas de alguns desses
agentes na grande rede da direita radical vinculada às CPACs, cabe agora
atentar para as sutis relações construídas pelos principais nomes já
mencionados nas matérias da imprensa, identificando pontos de encontro que vão
além de suas próprias nacionalidades, mas que constituem relações que estão em
construção há anos.
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Ainda estou aqui X discurso da direita
Faz-se
necessário aqui um aprofundamento sobre a história da CPAC Brasil e sua relação
com Eduardo Bolsonaro, em sua missão de articulador internacional do movimento
das direitas radicais. A primeira edição do evento no país começa em 2019 por
iniciativa de Eduardo Bolsonaro, com o objetivo de fortalecer o movimento
conservador do país. Desde então, o evento, que é organizado pelo Instituto
Conservador-Liberal (ICL), tem reunido políticos e líderes conservadores de
todo o mundo para debater temas como a “liberdade de expressão” e o “combate ao
comunismo”. Ao longo dos anos, o evento se tornou o principal palco da direita
no país, reunindo figuras como Jair Bolsonaro e o argentino Javier Milei em
suas edições.
E foi a
esse palco que se somou o roteirista do longa-metragem, o brasileiro Mario
Frias, ex-ator, ex-Secretário de Cultura do Governo Bolsonaro e que acumula uma
longa lista de controvérsias em suas atuações governamentais. Entre as mais
recentes está uma envolvendo outro filme, o aclamado Ainda estou aqui: enquanto
o país parava para ver a cerimônia do Oscar, esperando a premiação de melhor
atriz para Fernanda Torres e de melhor filme internacional (premiação que, de
fato, ocorreu), Frias dizia que a obra era uma “manipulação psicológica”, uma
peça de “desinformação comunista”. Frias é ferrenho defensor da família
Bolsonaro e tem vínculos diretos com a CPAC Brasil, tendo participado como
painelista da edição 2024, ocasião em que defendeu que o único candidato
possível da direita para 2026 era Jair Bolsonaro, contrapondo-se ao movimento
de ruptura que se iniciava entre os governadores que se lançavam como
possibilidades após a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a
inelegibilidade do ex-presidente.
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QAnon e “A oficina do diabo”
Explorando
as conexões internacionais criadas por esses encontros no país, pode-se
visualizar outro elo com o longa-metragem sobre Jair Bolsonaro, a participação
de Eduardo Verástegui, listado como produtor do filme e um dos palestrantes na
edição brasileira da CPAC de 2024. Verástegui é ex-modelo, ator e produtor
mexicano e velho conhecido nos movimentos das direitas radicais. Está à frente
do Movimiento Viva México, que busca se tornar um partido conservador de
extrema-direita, defendendo principalmente pautas contra o aborto, e demonstra
um evidente apoio às políticas de Donald Trump.
Além
disso, é o diretor da CPAC México, a edição latina com maior número de
painelistas e que tem articulado uma rede conservadora com atores de toda a
América Latina e Caribe, mas com forte influência dos Estados Unidos. Eduardo
Verástegui é um elo importante na costura da rede transnacional construída
pelas CPACs, pois atua como ponte entre o mundo anglo-saxão, europeu e latino,
o que pode ser ilustrado por sua participação ativa em diversas edições do
evento. Ele tem participado como painelista nas edições Brasil 2024, México
2024, Argentina 2024, EUA 2025, Polônia 2025 e a CPAC Latino, realizada em
Miami em 2025 com foco na comunidade latina estadunidense.
Além
desse papel de articulação, Verástegui move alguns dispositivos da máquina
cultural do movimento, estando à frente de três empresas de mídias e
distribuidoras de produtos audiovisuais norte-americanas, a Metanoia Filmes,
Santa Fe Films e a Angel Studios, todas com foco em produções com mensagens
religiosas e conservadoras. A Metanoia Films é a produtora co-fundada por
Verástegui, Leo Severino e Alejandro Monteverde com o objetivo de produzir
filmes com mensagens sociais e “pró-vida”, como o premiado drama “Bella”
(2006).
Já a
Angel Studios opera um serviço de vídeo sob demanda, disponibilizando uma série
de títulos originais produzidos por produtoras e estúdios parceiros. Entre
alguns deles está a série The Chosen, que arrecadou mais de 10 milhões de
dólares para sua produção. Já a outra grande produção desse estúdio, O Som da
Liberdade, foi realizada em parceria com a Santa Fe Films e mobilizou grande
parte da comunidade conservadora no país, envolvendo-se também em uma série de
controvérsias relacionadas às teorias da conspiração. O filme foi um dos
maiores sucessos do estúdio, e aqui no Brasil foi distribuído pela Brasil
Paralelo por meio de parcerias com entidades ligadas a igrejas para mobilizar
evangélicos e bolsonaristas para lotar salas de cinema, com a distribuição de
ingressos grátis. Além disso, o filme também foi associado por críticos e
especialistas ao movimento QAnon, que defende a tese de que grandes lideranças
mundiais seriam parte de uma rede secreta de pedófilos e adoradores de Satanás,
que estariam na mira de políticos como Donald Trump (e, implicitamente,
Bolsonaro), em uma guerra secreta.
O ator
principal do filme de Jair Bolsonaro, Jim Caviezel, é também protagonista de O
Som da Liberdade, o que estabelece uma conexão direta. Caviezel é
constantemente envolvido em polêmicas sobre teorias da conspiração, em especial
as teorias do QAnon, participando de eventos conservadores nos Estados Unidos,
replicando falas sobre a existência de uma “cabala satânica” responsável por
controlar o poder e afirmando que a vacina de Covid-19 seria uma terapia
genética, parte de um projeto de despovoamento.
Os
posicionamentos de Caviezel revelam um grande alinhamento ideológico que pode
ser a base para a escolha dos membros da equipe que fará parte do filme sobre
Jair Bolsonaro. Começando pelo diretor Cyrus Nowrasteh, um cineasta
estadunidense conhecido por dramas históricos e filmes com temas religiosos e
políticos. Entre seus trabalhos estão “O Jovem Messias” (2016) e “Sequestro
Internacional” (2019), um thriller estrelado por Jim Caviezel. A atriz
brasileira Bianka Fernandes, nomeada entre o hall de atores, tem carreira
construída na rede Record de televisão, em produções como Os Dez Mandamentos
(2015) e Gênesis (2021). Já Sérgio Barreto e Felipe Folgosi, ambos atores
brasileiros, têm atuação compartilhada no filme “Oficina do Diabo” (2025),
produzido pela Brasil Paralelo.
Em
conclusão, as conexões apresentadas permitem verificar o arcabouço de uma
máquina cultural transnacional que opera de maneira descentralizada, mas
coordenada, com foco em construir, disseminar e consolidar narrativas da
direita radical em escala global. A produção do filme sobre Jair Bolsonaro não
é um evento isolado, mas sim o produto mais recente dessa rede estrategicamente
articulada, onde agentes e ideologias se cruzam com o objetivo de influenciar o
debate político e a memória coletiva.
Mas um
ponto ainda chama a atenção: a filmagem do longa-metragem em inglês, com equipe
e parte do elenco estadunidense, aponta para o objetivo da obra. Agora, o foco
não é mais, somente, o eleitor brasileiro, mas sim a comunidade conservadora e
de direita radical internacional. O filme busca colocar Bolsonaro como um ícone
na luta global contra a esquerda, na tentativa de igualá-lo a Donald Trump e
Javier Milei. Esse direcionamento reforça a tese de que a máquina cultural não
se concentra em questões nacionais, mas sim na construção de uma identidade
política unificada, na qual as narrativas de líderes são intercambiáveis e
validadas internacionalmente. Em última análise, a máquina cultural aqui
descrita, culminando no filme sobre o ex-presidente, demonstra que a disputa
pela hegemonia ideológica transcendeu as fronteiras nacionais, utilizando o
entretenimento como uma das principais ferramentas para a mobilização política
e a reescrita da história em tempo real.
Fonte:
Por Ramon Fernandes Lourenço, no Le Monde

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