Henrique
Braga: “Alexa, o que há de novo no capitalismo?”
Do
final da Segunda Guerra Mundial até o primeiro choque do petróleo (1973) e a
recessão de 1974/1975, vivemos um período que o historiador britânico Eric
Hobsbawm (2013 [1995]) denominou “Era de Ouro” do capitalismo, no qual a base
da reprodução social foi a articulação entre produção em massa e consumo de
massa. Essa base assegurou, nos países centrais, um modelo de crescimento
econômico no qual foi possível conciliar a elevação dos salários e dos lucros;
e, em parte dos países periféricos, permitiu o processo de industrialização –
mais ou menos intenso a depender das especificidades de cada região. Esse
processo, tanto num caso quanto no outro, foi acompanhado de mudanças sociais,
políticas e culturais que marcaram a “modernização” dessas sociedades, com
promessas de inclusão na “civilização ocidental” por meio do assalariamento.
Dentre
essas mudanças, podemos destacar o “fim do campesinato” como núcleo da
reprodução das condições materiais da vida social, acompanhado da expansão da
escolarização secundária e universitária, da diversificação das profissões e do
lazer confinado à esfera privada (Hobsbawm, 2013), proporcionado pela
“indústria cultural” (Adorno & Horkheimer, 1985). Como consequência, a
classe trabalhadora tornou-se fragmentada, com diferentes condições de trabalho
e de vida, que engendravam novos interesses – sobretudo individuais. Não à toa,
nessa sociedade do pós-guerra ocorreu a perda dos vínculos entre passado e
presente, abrindo-se um abismo geracional que, posteriormente, serviria de
suporte tanto para as imposturas contra os sistemas públicos de previdência quanto
para a centralidade social do “eu”, configurando um processo de
individualização (Braga, 2024).
Desde o
desmoronamento da “Era de Ouro”, a partir de 1975, até a crise financeira de
2008, vivemos um período de transformações econômicas de grande envergadura que
instituíram o capitalismo global. De modo esquemático, a emergência das grandes
corporações transnacionais, que operam em rede e têm como núcleo de suas
operações unidades controladoras financeirizadas, bem como a virtualização da
realidade por meio da cibernética, colocaram o capital fictício no centro da
acumulação – um capital sem locus específico, que transita pelo globo. Esse
novo padrão de acumulação engendrou uma interdependência patrimonial global
entre as empresas, uma colonização das esferas moleculares da vida humana e
natural e, não menos importante, uma concorrência internacional entre
trabalhadores, deprimindo salários (Serfati, 1998; Brenner, 2003; Dos Santos,
2011). O resultado foi, em linhas gerais, a ampliação da acumulação de capital
– em suas distintas formas, articuladas pela acumulação fictícia – por meio da
crescente transformação das diversas dimensões da vida humana e natural em
direitos de propriedade negociáveis no ciberespaço financeiro, enquanto os
trabalhadores passaram a depender, cada vez mais, do crédito para reproduzir
sua existência (Chesnais, 2016; Mariutti, 2020; Lohoff, 2018).
Sem
possibilidade de competir nessa nova dinâmica global, os processos de
acumulação de capital dirigidos pelo Estado – cujos principais territórios eram
a União Soviética e a China – sofreram profundas mudanças. No primeiro grupo,
ocorreu o colapso do “projeto de modernização” porque, grosso modo, seu modelo
de acumulação não respondeu às novas exigências dessa dinâmica (Kurz, 1993a;
1993b; 1997). No segundo, houve uma readequação às novas exigências da
acumulação, sendo importante destacar o papel da Revolução Cultural chinesa
(1966-1976) nesse processo: ela constituiu uma força de trabalho apta a
suportar ritmos intensos de produção, associando sua ascensão pessoal à
evolução da nação. Assim, as reformas promovidas por Deng Xiaoping ofereceram
aos conglomerados transnacionais, em busca de força de trabalho barata, o
espaço ideal para produzirem suas mercadorias, ao mesmo tempo em que alinharam
os chineses ao novo espírito do tempo: a individualização (Nabuco, 2009;
Barreira & Botelho, 2024).
Do
ponto de vista da acumulação de capital, o período em destaque engendrou uma
simbiose entre as economias chinesa e estadunidense. Grosso modo, enquanto a
primeira se tornou o centro da produção mundial – a “fábrica do mundo” –, a
segunda tornou-se o centro financeiro, no qual os excedentes comerciais
acumulados no Leste Asiático refinanciavam os déficits comerciais dos Estados
Unidos, bem como a expansão interna do crédito, diante do declínio real dos
salários e da desigualdade inerente a uma economia forjada em serviços,
sobretudo financeiros (Chesnais, 2009, 2016; Brenner, 2003; Piketty, 2014;
Barreira & Botelho, 2024). Contudo, essa expansão do crédito mascarava o
fato de que seus tomadores – trabalhadores estadunidenses – não elevavam sua
renda no mesmo ritmo dos empréstimos e das prestações. Isso porque os bancos
privados ampliaram o crédito por meio do sistema bancário global sombra, cuja
principal característica era retirar dos balanços os empréstimos concedidos,
vendendo-os a “veículos especiais de crédito” mediante a formação de “títulos
estruturados” (Cintra & Fahri, 2008).
Com a
reversão dos preços desses títulos, a partir de 2007 – em função da queda dos
preços dos imóveis e do subsequente atraso no pagamento das prestações pelos
mutuários –, a operação desses veículos tornou-se inviável, ocasionando suas
falências e, pela interdependência patrimonial, a falência de outras
instituições financeiras e não financeiras, forçando a intervenção ativa dos
bancos centrais para salvar o sistema (Borça Junior & Torres Filho, 2008).
As famílias envolvidas na crise – em particular estadunidenses e,
posteriormente, europeias – não receberam o mesmo socorro, o que aprofundou
ainda mais as fissuras do tecido social, já bastante esgarçado pelas
transformações da “Era de Ouro” e pelo processo de individualização.
A
política de socorro aos apostadores financeiros promovida pelos bancos centrais
significou, em linhas gerais, uma elevação do endividamento dos Estados
nacionais envolvidos, seguida por nova valorização dos títulos negociados em
bolsa, sem correspondente crescimento econômico. Diante do endividamento
público elevado e de economias estagnadas, os Estados ocidentais foram forçados
– pelos mesmos atores que haviam socorrido – a realizar duras políticas de
ajuste fiscal (Varoufakis, 2025). Enquanto isso, a China promovia uma expansão
interna de grandes proporções, baseada em obras de infraestrutura e em projetos
habitacionais.
Nesse
contexto, emergiu uma tecnologia que explicitou uma mudança socioeconômica
substantiva: o smartphone. Ele pode ser compreendido como um dispositivo
técnico destinado a capturar, como mostra Crary (2023), o nosso olhar. A tela
do smartphone busca rastrear as direções dos olhos em busca de padrões de
movimento e fixação em imagens, controlando o campo da atenção. Isso permitiu
que profissionais de tecnologia da informação, em colaboração com psicólogos,
marqueteiros e cientistas sociais, desenhassem seus produtos com base na
experiência dos usuários, de modo a capturar e direcionar sua atenção num ciclo
contínuo de uso.
O
smartphone e as tecnologias a ele associadas expressam a formação de uma nova
seara da acumulação de capital, cujos requisitos de operação envolvem desde o
controle dos espaços de navegação na internet e dos dados gerados por essa
navegação até o processamento desses dados em gigantescos centros de dados
(data centers), operados por computadores de alta potência programados por
trabalhadores especializados na produção de algoritmos para a “mineração”
desses dados – isto é, para identificar padrões passíveis de rentabilização
(Crary, 2023). Essa operação requer tanto a concentração e centralização dos
capitais – não por acaso, a centralidade dos fundos de investimento organizados
a partir de Wall Street – quanto o controle das infraestruturas informacionais
pelas chamadas Big Tech. A onipresença do smartphone e das tecnologias
associadas à vida socioeconômica, política e cultural contemporânea indica, por
sua vez, que os demais capitais e os próprios trabalhadores precisam
submeter-se às redes informacionais controladas por essas corporações, para
conseguir reproduzir seus capitais ou seus meios de vida.
Diante
desse quadro, os anos seguintes à crise de 2008 configurariam, segundo o
economista grego Yanis Varoufakis (2025), a passagem do capitalismo para uma
nova forma de organização econômica: o tecnofeudalismo. Em síntese, a primazia
das Big Tech, articulando a reprodução socioeconômica de virtualmente todos os
agentes – inclusive o Estado –, teria deslocado a concorrência e a busca do
lucro como lógicas principais da economia, substituindo-as pela formação de
monopólios e pela renda como forma central de remuneração.
Numa
analogia com os senhores feudais que recebiam sua renda dos servos que
habitavam e trabalhavam em suas propriedades – aos quais deviam proteção
militar –, Varoufakis (2025) observa que as Big Tech assumiram o controle do
“capital-nuvem”, por meio da “pilhagem do commons digital” (a internet),
confinando as interações em redes controladas por essas corporações. Utilizando
algoritmos, elas manejam o comportamento dos usuários dessas redes. Em linhas
gerais, o ganho das Big Tech não estaria na produção de bens materiais (como na
indústria) nem na comercialização de dívidas (como nas finanças), mas na
cobrança de uma renda para que outros possam acessar as pessoas que estão
atentas às suas redes informacionais – ou seja, com seus comportamentos
modulados –, a fim de oferecer produtos e serviços. Um exemplo disso é o
funcionamento da Alexa, da Amazon:
(…) a
Alexa não é uma serva. Ela é, na verdade, uma parte do capital de comando
baseado nas nuvens que está transformando você em servo, com a sua ajuda e por
meio do seu próprio trabalho não remunerado, com o propósito de deixar seus
proprietários ainda mais ricos (Varoufakis, 2025: 78).
Embora
a tese de Varoufakis seja instigante e criativa – sobretudo pelo paralelo com o
feudalismo, a partir da constatação da crescente participação da renda nos
ganhos das empresas capitalistas, por meio da expansão dos direitos de
propriedade e da criação artificial de monopólios –, essa lógica não é estranha
à acumulação de capital, tampouco elimina a concorrência, seja entre
trabalhadores e capitalistas menores, seja entre as próprias Big Tech, como o
lançamento do DeepSeek mostrou (G1, 2025). Contudo, concordamos com o autor em
um ponto que nos parece fundamental: algo de novo ocorreu com o capitalismo
após a crise de 2008.
Não por
acaso, uma das expressões da seara de acumulação que hoje dinamiza o
capitalismo global é um dispositivo de uso individual que tem no “eu” o núcleo
central do controle – em particular, a partir da produção de imagens não do
espaço, mas de si mesmo: as chamadas selfies (Kornbluh, 2025).
A
partir da reflexão desenvolvida aqui, sugerimos que a expansão do processo de
acumulação de capital está aprofundando a individualização. Não à toa, a
revolução tecnológica de nosso tempo está centrada em dispositivos individuais,
ao mesmo tempo em que os mecanismos de contrapeso a essa acumulação estão se
desmanchando – como a própria democracia, por exemplo (Streeck, 2012). Assim,
as formas sociais próprias do capital aparecem não apenas como naturais, mas,
sobretudo, como eternas. Afinal, enfeixados em suas bolhas e modulados pela
realização do “eu”, o horizonte de ação das pessoas torna-se tão imediato que a
própria ação se converte em mais uma commodity informacional na rede das Big
Tech (Kornbluh, 2025).
Se há
ruptura possível com esse quadro, ficamos com a formulação de Adorno (2020:
273): “As mínimas diferenças no sempre igual, que lhes permanecem abertas,
representam, ainda que frágeis, uma possibilidade de diferença em relação ao
todo; na própria diferença, na divergência, se concentra a esperança.”
Fonte:
Outras Palavras

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