Fracasso?
História de duas COPs
O
governo Lula empenhou esforço extraordinário para realizar este evento por dois
motivos fundamentais: primeiro, porque o Brasil é protagonista histórico na
agenda ambiental, e a COP30 seria uma excelente vitrine para demonstrar nossa
capacidade de liderança; segundo, porque seria a primeira Conferência das
Partes realizada no coração da Amazônia. Precisamente aí começou a frustração
de muitos ambientalistas e ativistas.
A mídia
sudestina desenvolveu uma campanha sistemática e servil de desqualificação da
COP30. Ao longo de todo o ano que precedeu o evento, houve uma tentativa
orquestrada de atacar Belém e o governo brasileiro. Primeiro, questionaram a
suposta inflação dos preços de hospedagem; depois, amplificaram notícias sobre
atrasos em obras; posteriormente, criticaram a infraestrutura da cidade como
inadequada. E então veio o ápice absurdo dessa cobertura: enquanto o Brasil
recebia 70 mil lideranças do mundo inteiro — um feito inédito de mobilização
diplomática —, a manchete mais lida da mídia sudestina tratava da “informação
valiosa” que todos supostamente precisávamos saber: o preço do café nas zonas
de acesso diplomático restrito.
Frustração
total. Este jornalismo que desinformou sistematicamente e praticou terrorismo
informacional contra o próprio país fracassou em seu objetivo: minar a
legitimidade de um evento histórico. O que testemunhamos em Belém foi
extraordinário, e ainda não compreendemos plenamente a dimensão de receber
ambientalistas, movimentos sociais, cientistas, diplomatas, empresários e
líderes mundiais. Pessoas do mundo inteiro engajadas na questão mais urgente da
humanidade contemporânea: a emergência climática.
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A Excelência do Povo Belenense e a Logística de um Megaevento
Além
disso, a generosidade e o acolhimento do povo belenense transcendeu qualquer
expectativa. Nos enche de legítimo orgulho de sermos brasileiros. Nosso povo
demonstrou capacidade extraordinária de mobilização. As maravilhas da culinária
local — o tacacá, a manissoba, o suco de taperebá, os camarões e as peixadas —
tornaram a experiência memorável. O sistema de transportes público e privado
funcionou dentro da normalidade esperada; a infraestrutura de hospedagem
atendeu adequadamente a demanda; os serviços essenciais operaram sem maiores
interrupções.
Precisamente
isto frustrou a mídia sensacionalista: a demonstração clara de que o povo
belenense, frequentemente desprezado nos grandes centros urbanos, possuía a
capacidade, a superação e o empenho necessários para mostrar ao mundo que a
Amazônia está aberta para o diálogo e para a cooperação internacional. A
narrativa do fracasso não se sustentava diante da realidade vivenciada.
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Os Limites da Diplomacia Tradicional: A Zona Azul e Seus Impasses
Apesar
disso, há sim pontos críticos a serem considerados com rigor analítico. A Zona
Azul — a área de diplomacia internacional onde ocorrem as negociações formais
entre Estados — apresentou características que revelam as limitações
estruturais dos processos diplomáticos contemporâneos. Este espaço funcionava
mais como uma feira de negócios em que os países estavam predominantemente
interessados em “se vender” no mercado exterior e fortalecer suas vantagens
comerciais do que em decidir coletivamente sobre temas verdadeiramente
transformadores.
Um
espaço marcado pela vaidade, pelo protocolo vazio e pela ausência de avanços
substanciais. Isso demonstra uma verdade incômoda: os líderes mundiais e as
estruturas diplomáticas tradicionais encontram-se profundamente desconectadas
dos problemas reais que afligem a humanidade. Cada nação defende seu “quinhão”
de interesses, suas commodities, suas vantagens competitivas. O resultado? Zero
avanço vinculante sobre as questões cruciais.
É
necessário reconhecer, porém, que este imobilismo não decorre exclusivamente da
falta de vontade política: está intimamente relacionado à financeirização da
crise climática. Os mecanismos de mercado — créditos de carbono, títulos
verdes, fundos de adaptação — transformaram a urgência climática em
oportunidade de acumulação de capital. Quando a solução passa pelo mercado,
torna-se fácil protelar, negociar, estabelecer prazos flexíveis. A lógica do
lucro nunca foi compatível com a lógica da urgência.
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Onde o Sucesso Genuíno Floresceu: Os Espaços de Livre Acesso e a Zona Verde
Por
outro lado, onde observamos um sucesso genuíno — de impacto real e
transformador — foi nas áreas de livre acesso, espalhadas por toda a cidade de
Belém. Mais de 40 “casas” de debate promoveram centenas de milhares de
discussões, plenárias, fóruns de diálogo, oficinas temáticas. Nestes espaços, a
criatividade política floresceu sem as amarras do protocolo diplomático.
Da
mesma forma, a Zona Verde — a área oficial destinada à sociedade civil —
converteu-se em um laboratório de construção coletiva. Centenas de debates
foram promovidos pelo governo brasileiro, órgãos judiciais, empresas e
movimentos sociais. É legítimo criticar a presença de empresas que vieram fazer
lobby corporativo na COP30, vendendo falsas soluções; todavia, essa crítica não
invalida a potência dos espaços de mobilização genuína.
Destacamos
especialmente a presença vibrante dos povos originários, do movimento negro,
dos movimentos de periferia urbana e rural, bem como dos coletivos de ativistas
digitais — como o Coletivo Clima Ácido — que desenvolveram uma atuação incisiva
de denúncia das soluções corporativas vazias, colocando o dedo na ferida do
greenwashing sistêmico.
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A Cúpula dos Povos: O Verdadeiro Sucesso da COP30
Mas o
que realmente constituiu uma iniciativa transformadora foi a Cúpula dos Povos.
Este
espaço organiza movimentos sociais, ativistas, pesquisadores e diversas
entidades da sociedade civil. Meses antes do evento, promoveram discussões
intensas para sintetizar uma carta política a ser levada para a presidência da
COP. Durante os dias de conferência, realizaram oficinas temáticas, debates
especializados, falas de lideranças em plenárias realizadas na Universidade
Federal do Pará — tudo afunilando-se para a elaboração de uma carta final
potente e unificada.
O
grande ápice foi a marcha realizada pela Cúpula dos Povos: 50 mil pessoas de
todo o mundo nas ruas de Belém, paralisando a cidade com bandeiras de
resistência e esperança. Unir-se — Marcha Mundial das Mulheres, movimentos
indígenas, povos quilombolas, movimentos do campo como Via Campesina e MST,
sindicatos, frentes de resistência das periferias urbanas — representou um
alento genuíno de esperança e uma resposta vigorosa e coletiva ao problema.
Ali
estavam os guardiões reais da vida. Aqueles que estão genuinamente na linha de
frente da contenção dos danos de desastres ambientais provocados pelo
extrativismo e pela ganância. Ali ouvimos gritos de resistência legítimos, mas
especialmente palavras carregadas de esperança, e uma certeza infalível: a
solução para o planeta e para a humanidade não sairá dos gabinetes de líderes,
dos ambientes vazios da diplomacia tradicional, mas sim da base da sociedade —
dos excluídos e marginalizados, das periferias do campo e da cidade.
As
soluções já estão em construção, e emanam dos povos. Soluções baseadas na
natureza, tecnologias sociais desenvolvidas comunitariamente, e aquilo que
ganhou força conceitual nesta COP30: as “Soluções Baseadas nos Povos” — um
paradigma que reconhece que a manutenção da vida terrestre virá de onde sempre
veio: da sabedoria acumulada, da resistência cotidiana, do enraizamento
territorial.
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Reconhecer Avanços Concretos: Além da Retórica Diplomática
Não
podemos encerrar esta análise sem reconhecer os avanços concretos conquistados
nos ambientes diplomáticos, mesmo que limitados pela financeirização estrutural
do processo.
A
adoção formal dos Resultados Globais Acordados (GGAs) — um marco significativo
que avança na mensuração de ações climáticas e na transparência de compromissos
nacionais — representa uma evolução necessária, ainda que insuficiente. Este
mecanismo estabelece parâmetros mais rigorosos para o cumprimento de metas,
criando ferramentas de accountability internacional.
Igualmente
importante foi o reconhecimento de um Fundo Florestas Tropicais para Sempre
(TFFF) — que finalmente coloca recursos concretos nas mãos daqueles que mais
sofrem os impactos da crise climática, particularmente os países do Sul Global.
Não é a reparação histórica que demandamos, mas é um passo concreto em direção
à justiça climática que não pode ser subestimado.
Reunir
70 mil lideranças mundiais em um único território — não é um detalhe
burocrático. É a demonstração de que existe mobilização possível, de que a
humanidade consegue se organizar coletivamente para discutir seus problemas
mais urgentes. Esta capacidade de convocação é em si um ativo político, uma
possibilidade que emergia da Amazônia, do Brasil, como afirmação: sim, é
possível dialogar, é possível mobilizar, é possível construir coletivamente.
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Longe de Salvar Sozinhos: A Virada Começou
Longe
de mim depositar o peso de salvar o planeta nas mãos daqueles que mais sofrem —
os povos indígenas, os agricultores familiares, os periféricos urbanos. O que
presenciamos em Belém foi a manifestação de uma unidade política: povos
diversos, compreendendo que sua força reside em transformar seus territórios,
em pressionar governos, em denunciar falsas soluções corporativas, em atrair
cada vez mais pessoas para a luta coletiva, em virar o jogo que parecia
perdido.
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A virada começou. É por isso que a COP30 em Belém foi um sucesso histórico.
Ao
mesmo tempo em que as discussões diplomáticas empacavam nos corredores da Zona
Azul, os camponeses da Guatemala conversavam com famílias do MST, trocando
experiências de resistência. Enquanto países ricos ignoravam sistemicamente a
crise climática, as periferias do Brasil se conectavam, trocavam tecnologias de
enfrentamento, fortaleciam laços de solidariedade.
O mote
final lançado pela Cúpula dos Povos acende uma chama de esperança que resgata
uma ideia que pode parecer desgastada pela história, mas que faz total sentido
no mundo caótico de hoje:
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“Povos do mundo, uni-vos!”
Só
assim — na articulação de nossas forças, na construção coletiva, na recusa do
isolamento — poderemos enfrentar os desastres ambientais cada vez mais
frequentes que se avizinham. Só assim construiremos um futuro que merece ser
vivido.
Povos
do mundo, uni-vos!
Fonte:
Por Mateus Muradas, em Outras Palavras

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