sábado, 6 de dezembro de 2025

Luís Nassif: Tia Leila, a Crefisa, e o crédito predatório

Leila Pereira, presidente da Sociedade Esportiva Palmeiras, construiu uma trajetória de notável sucesso empresarial. Segundo levantamento da Forbes Brasil, ela e o marido acumulam patrimônio estimado em R$ 8,8 bilhões. À frente da Crefisa — instituição financeira especializada em crédito pessoal e consignado — e da Faculdade das Américas, Leila investiu aproximadamente R$ 1 bilhão no Palmeiras, através de sua empresa “tia Leila” – em patrocínio,  contratação de jogadores, estrutura e marketing. Comprou e disponibilizou para o clube um avião executivo para deslocamentos. Porém, a Crefisa e seu modelo de negócios representam a face mais problemática do mercado de crédito brasileiro: um campo fértil para práticas abusivas de agiotagem, onde o crédito deixou de ser instrumento de inclusão social para tornar-se mero veículo de lucro predatório. É um dos ângulos de um modelo predatório que ganhou enorme expansão com a desregulamentação geral da economia, iniciada no interregno Temer e aprofundada no período Paulo Guedes-Roberto Campos Neto.

A Expansão Sobre os Mais Vulneráveis

A Crefisa prosperou oferecendo empréstimos justamente aos mais vulneráveis: negativados (pessoas impedidas de obter crédito em outras instituições), aposentados e trabalhadores de baixa renda. Seu crescimento evidencia o tratamento distorcido que o Banco Central concedeu ao mercado de crédito brasileiro.

Em 2021, o Congresso Nacional aprovou a Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181/2021), estabelecendo os pilares do crédito responsável:

•        Avaliação prévia da capacidade de pagamento do consumidor

•        Informação clara sobre juros, Custo Efetivo Total (CET) e impacto real das parcelas

•        Proibição de práticas que induzam ao endividamento contínuo

•        Proteção especial ao idoso e ao consumidor hipervulnerável

Na teoria, o Brasil adotou o paradigma internacional segundo o qual o crédito não pode ser tratado como mercadoria qualquer — trata-se de um serviço essencial que afeta diretamente a dignidade humana. Na prática, porém, a expansão do crédito seguiu exclusivamente a lógica dos negócios: ampliação indiscriminada da oferta, estímulo ao consumo, desprezo pela capacidade real de pagamento e transferência dos efeitos deletérios dessa política para o Poder Judiciário.

A Armadilha da Dívida Perpétua

O modelo Crefisa opera segundo um ciclo vicioso bem definido:

1.       Concessão inicial de crédito com juros altíssimos

2.       Parcela pequena em relação à renda — psicologicamente aceitável

3.       Renovação da dívida antes do término do contrato

4.       Incorporação dos juros ao novo saldo devedor

5.       Reinício do prazo de pagamento

6.       Retorno ao passo 3

Esse ciclo cria uma dívida permanente, gerando receitas recorrentes para a financeira e impossibilidade estrutural de quitação para o tomador.

O Contraste Internacional

Em países que tratam o crédito como política de bem-estar social, existem mecanismos protetivos claros:

•        Tetos de juros (Estados Unidos, França, Alemanha)

•        Limitação de refinanciamentos sucessivos

•        Proibição de “rollover” (renovação) automático

•        Obrigatoriedade de análise do orçamento familiar

•        Sanções severas contra concessão irresponsável de crédito

No Brasil, o modo como instituições como a Crefisa prosperaram constitui o maior atestado da disfuncionalidade do mercado de crédito e, especialmente, da ineficácia do agente regulador: o Banco Central.

<><> Duas Décadas de Impunidade

Os abusos cometidos pela Crefisa foram alvo de inúmeros processos, todos sem eficácia prática.

>>> Primeira Onda (2013-2015)

O Ministério Público em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul receberam enxurrada de reclamações sobre créditos com juros superiores a 500% ao ano, assédio a aposentados e vendas sem explicações contratuais adequadas.

Procedimentos de investigação civil foram abertos, Termos de Ajustamento de Conduta foram tentados, ações civis públicas por publicidade abusiva e superendividamento foram propostas.

# Resultado: ações arquivadas, multas administrativas irrisórias e nenhuma alteração estrutural no modelo de negócios.

>>> Segunda Onda (2016-2018)

O Ministério Público de São Paulo investiu contra a publicidade abusiva que explorava a imagem de atletas populares e fazia promessas implícitas de “dinheiro fácil”.

# Resultado: ajustes cosméticos na propaganda, inclusão de alertas em letras mínimas e nenhuma sanção relevante.

>>> Terceira Onda (2019-2021)

Os Ministérios Públicos de São Paulo, Santa Catarina e Paraná entraram com ações questionando o “rollover” e a falta de informação sobre recálculos contratuais.

# Resultado: casos encerrados sob o argumento de que a questão estava sob “atuação regulatória do Bacen”.

Surge aqui a primeira blindagem institucional: o MP delega o problema ao Banco Central, que nunca enfrentou o mérito estrutural da questão.

# Quarta Onda (2022)

Com a entrada em vigor da Lei do Superendividamento, os Ministérios Públicos voltaram a atuar com base legal mais robusta. Contratos padronizados foram coletados, procedimentos internos analisados, práticas de abordagem comercial questionadas.

# Resultado: nenhuma condenação estrutural, nenhuma proibição do produto.

>>> Quinta Onda (2023-2024)

O foco voltou-se para consumidores idosos e violações à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Questionou-se a compra e uso irregular de dados de aposentadorias, telemarketing abusivo e violações à LGPD. MPs de São Paulo e Minas Gerais investigaram bancos de dados e parcerias com correspondentes financeiros.

# Resultado: até o momento, nenhuma medida efetiva contra o núcleo do grupo Crefisa.

<><> O Empurra-Empurra Institucional

Ao analisar todas as apurações, emerge um padrão comportamental preocupante:

# 1. Investigações Fragmentadas

As investigações sempre focaram em temas isolados — juros, publicidade, refinanciamento, dados, abordagem — mas nunca realizaram uma análise sistêmica do modelo de negócio.

# 2. Resoluções Ineficazes

•        Acordos administrativos sem impacto real

•        Ajustes meramente cosméticos

•        Arquivamentos justificados pela “competência primária do Banco Central”

# 3. Blindagem Cruzada

O Ministério Público recua argumentando que:

•        O Bacen afirma estar regulando o setor

•        Não há limite legal de juros

O Banco Central recua alegando que:

•        “Questões consumeristas são regidas pelo CDC e competem ao MP”

<><> O Paradoxo Judicial

Por anos, juízes brasileiros descreveram os contratos da Crefisa com expressões raramente vistas em decisões judiciais: “juros inacreditáveis”, “valores absurdos”, “descolamento gritante da média de mercado”. Sentenças e acórdãos revelam taxas anuais superiores a 600%, 900% e até mais de 1.000% ao ano — frequentemente dezenas de vezes acima da referência média divulgada pelo próprio Banco Central para empréstimos da mesma natureza. Enquanto o regulador encerrava discretamente suas apurações, tribunais pelo país produziram decisões demolidoras:

•        Juros de 629% ao ano em empréstimo pessoal, posteriormente declarados abusivos

•        Contratos com 987% de juros anuais em operações de “crédito rápido”

•        Casos com taxas superiores a 497%, quando a média de mercado medida pelo BC era inferior a 40%

•        Juros acima de 1.000% ao ano cobrados de consumidores hipervulneráveis, muitos idosos

Todas essas decisões judiciais compartilham um elemento comum: utilizam como parâmetro de comparação as estatísticas oficiais publicadas pelo próprio Banco Central.

<><> A Contradição do Regulador

Paradoxalmente, o órgão regulador que dispõe de toda a inteligência estatística, poder sancionador e instrumentos de supervisão nunca enfrentou estruturalmente o modelo financeiro da Crefisa. Pelo contrário: quando a empresa chegou formalmente ao banco dos réus regulatórios, o desfecho foi discretíssimo — um acordo administrativo sem confissão de culpa e o arquivamento do caso.

A história do que ocorreu entre a Crefisa e o Banco Central é o retrato acabado de como o Brasil regula o sistema financeiro pensando na estabilidade institucional — e não na estabilidade da vida das pessoas. Há a necessidade urgente de reforma estrutural na regulação do mercado de crédito brasileiro, com foco na proteção efetiva dos consumidores vulneráveis e na responsabilização de instituições que operam modelos de negócio predatórios.

•        O Castelo de Cartas da Fictor: R$ 31 Milhões em Papel Fantasma

Quem assistiu à final da Libertadores deve ter notado o patrocínio estampado na camisa do Palmeiras: Fictor. Poucos sabiam que, por trás da marca vistosa, escondia-se um dos casos mais emblemáticos de engenharia financeira polêmica do mercado brasileiro. Documentos obtidos com exclusividade revelam como R$ 31 milhões em “ações fantasmas” se transformaram no alicerce contábil de um império financeiro construído sobre papel sem valor — e como esse esquema atravessou órgãos reguladores sem despertar qualquer alarme.

<><> O Nascimento de um Capital Fictício

Em 15 de dezembro de 2021, a empresa ONE OFF INVESTMENT LTDA registrou na Junta Comercial de São Paulo um aumento de capital de R$ 32,9 milhões. Nada de extraordinário, à primeira vista. O problema estava na origem desse dinheiro. A integralização do capital — comprovação de que o dinheiro declarado realmente existe — foi feita através de “ações preferenciais do Banco do Estado de Santa Catarina (BESC)”. O detalhe que torna isso absurdo: o BESC deixou de existir como instituição independente em 2008, absorvido pelo Banco do Brasil há mais de 13 anos.

Em 2021, não havia mercado ativo, cotação pública ou qualquer registro que permitisse avaliar essas ações em R$ 30,9 milhões. Era, literalmente, papel sem valor sendo transformado em capital social através de uma canetada. O contrato social arquivado declarava textualmente: “sendo R$ 30.969.887,02 em ações preferenciais do BESC agora garantido pelo seu sucessor BANCO DO BRASIL”. Uma afirmação sem qualquer lastro comprovável. Na tipologia do GAFI — organismo intergovernamental que define padrões globais de combate à lavagem de dinheiro — esse tipo de operação é classificado como: “Utilização de ativos não líquidos para capitalizar artificialmente empresas de fachada”. A ONE OFF INVESTMENT LTDA foi a base para a constituição da holding Fictor, cuja jogada mais ambiciosa foi a proposta de compra do Banco Master. A Fictor, junto com um consórcio que inclui investidores dos Emirados Árabes Unidos, ofereceu um aporte imediato de R$ 3 bilhões como capital novo para reforçar a estrutura do Banco Master.

<><> A Holding Offshore e o Jogo Internacional

A história fica ainda mais complexa em maio de 2024, quando a AQWA Capital Holdings LLC, uma empresa registrada em Delaware (paraiso fiscal nos EUA), assume o controle da estrutura. Delaware é conhecido como um dos maiores paraísos corporativos do mundo. Empresas registradas lá desfrutam de:

•        Sigilo total dos beneficiários finais

•        Capital social sem comprovação pública

•        Zero obrigação de publicar balanços

•        Facilidade extrema para triangulação de recursos

Na prática, a AQWA funciona como uma peça clássica no fluxo de movimentação  transnacional: permite que dinheiro captado no Brasil seja deslocado para fora do país e posteriormente reciclado com aparência de investimento internacional legítimo. O dinheiro sai como “remessa para offshore”, circula por estruturas opacas e retorna como “investimento estrangeiro direto” ou “capital de private equity” — criando uma falsa aparência de recursos limpos e internacionais.

<><> Custos Insustentáveis de Captação

Enquanto montava essa estrutura complexa, a Fictor oferecia ao mercado condições que deveriam ter acendido todos os alertas possíveis. O esquema de remuneração prometia aos consultores que captassem recursos:

•        Até 2,2% ao mês de comissão

•        Bônus anual de até 3% sobre a carteira gerida

•        Total: aproximadamente 30% ao ano — o equivalente a 200% do CDI

Para efeito de comparação, o Banco Master oferecia 140% do CDI. Enquanto o caixa vinha dos investidores, a vitrine era montada com patrocínios milionários.

<><> Patrocínios utilizados como selo social:

•        Palmeiras suposto aporte R$ 120 milhões

•        Fórmula 1 publicidade estimada em R$ 200 milhões

•        Campanhas com influenciadores do mercado financeiro

Com tais atrativos, segundo fontes do mercado, a empresa já teria cerca de R$ 1,5 bilhão captados, com um fluxo de R$ 200 milhões por mês em novas entradas.

A pergunta que ninguém respondeu: que operação legítima sustenta pagar 200% do CDI em custos de captação?

<><> FictorAgro: A Miragem do Agronegócio

A Fictor se vende ao mercado como uma operação inovadora de agronegócio, fintech de pagamentos, patrocinadora de clube grande e até candidata a player global. Nos bastidores, porém, a engrenagem parece ter bem menos soja e bem mais Excel. O braço agrícola do grupo, a FictorAgro, apresentava-se como “empresa cerealista com forte experiência em café, soja, milho e sorgo”, alegando movimentar mais de 1 milhão de sacas por mês — o equivalente a R$ 600 milhões anuais. Para justificar a rentabilidade fora da curva, a Fictor se apresenta como comercializadora de grãos, com base operacional em Balsas (MA), uma das regiões mais quentes do agronegócio brasileiro. Mas, segundo fontes internas, a “base operacional” nada mais é do que uma estrutura do grupo Diagro, que teria vendido apenas naming rights (o direito de pintar os silos com a sua marca) e presença de marca à Fictor. A capacidade operacional efetiva seria irrisória frente ao volume de negócios anunciado — algo próximo de “menos de 0,01% do que eles dizem movimentar”.

O balanço do primeiro trimestre de operação, porém, conta outra história:

•        Receita líquida: R$ 31 milhões

•        Margem bruta: 1% a 2%

•        Prejuízo líquido: R$ 2,3 milhões

•        Queima de caixa operacional: R$ 15 milhões

Para contextualizar a gravidade desses números: BRF e JBS, líderes consolidados do setor, operam com margens brutas entre 15% e 22%. A Fictor mal conseguia cobrir seus custos. A empresa sobrevive graças a um aporte de capital de R$ 70 milhões feito pelos sócios — dinheiro que dava “fôlego” para operar no prejuízo enquanto tentava ganhar escala. Outro risco crítico: toda a operação dependia de uma planta industrial arrendada da Mellore, empresa em recuperação judicial. A aquisição contempla o ativo “planta frigorífica + estrutura produtiva + habilitação SIF” — mas não necessariamente a totalidade das marcas, operações ou passivos da velha Mellore. Qualquer revés no processo judicial poderia paralisar tudo.

<><> Os produtos suspeitos

Uma das operações extravagantes da Fictor Agro era criar supostos fundos, com dois anos de existência pela frente, e vender participações acionárias aos investidores (conforme documento em anexo).

A lista de irregularidades é ampla:

A análise do contrato com a Fictor Agro identificou graves irregularidades e riscos regulatórios/operacionais, sugerindo que a operação pode configurar uma oferta irregular de valor mobiliário (investment contract) no Brasil, sem a devida proteção ao investidor.

1. Promessa de Rentabilidade Fixa (2,00% Mensal): Sugere promessa de retorno ou garantia de capital, o que é proibido para ofertas não registradas e levanta “red flags” (alertas vermelhos) para esquemas irregulares (Ponzi/pirâmide).

2. Captação Irregular: Aporte feito diretamente em conta corrente da Sócia Ostensiva, sem custódia, conta vinculada ou intermediação de Corretora/DTVM autorizada, elevando o risco de desvio de recursos.

3. Estrutura SCP Frágil: Uso de Sociedade em Conta de Participação (SCP) sem as salvaguardas necessárias (como auditoria e segregação de patrimônio), concentrando poder e risco na Sócia Ostensiva.

4. Cláusulas de “Garantia”: Cláusulas de Put Option e dissolução que preveem a devolução do “Valor do Aporte”, funcionando como uma garantia implícita de capital.

5. Governança Deficiente: Prestação de contas vaga (“quando solicitada”), ausência de auditoria e poderes ilimitados da Ostensiva, facilitando o conflito de interesses (self-dealing).

<><> A Pergunta que Ninguém Quer Responder

Como R$ 31 milhões em “ações fantasmas” de um banco extinto há 13 anos passaram pelo registro público sem qualquer verificação de lastro?

Como uma estrutura que oferece 200% do CDI em remuneração opera sem despertar suspeitas da CVM? Como uma empresa com margem bruta de 1% consegue atrair milhões em investimentos?

A resposta revela o que pode ser o capítulo mais desmoralizante do mercado de capitais brasileiro: a falência completa dos órgãos reguladores em sua função básica de proteger o investidor. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), criada justamente para fiscalizar o mercado e prevenir fraudes, aparentemente não detectou — ou não agiu — diante de sinais tão evidentes.

<><> Um Sistema que Falhou

O caso Fictor não é apenas sobre uma empresa ou um grupo de executivos. É sobre um sistema de controles que simplesmente não funcionou. Quando ações de um banco extinto há mais de uma década podem ser usadas para criar R$ 31 milhões em capital social fictício, quando offshores opacas podem assumir controle de estruturas financeiras complexas sem escrutínio real, quando promessas de retorno impossíveis circulam livremente no mercado — algo está profundamente quebrado.

O castelo de cartas desmoronou, como sempre desmorona. Mas a pergunta permanece: quantos investidores perderam suas economias antes que alguém resolvesse olhar com atenção para os papéis que estavam na mesa desde o início?

A Fictor foi consultada antes da reportagem ser publicada, e sua resposta será publicada, assim que for enviada.

 

Fonte: Jornal GGN

 

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