Amor
e traição entre Soledad Barrett e Cabo Anselmo
Uma
professora e pesquisadora, depois de ler “Soledad no Recife”, me enviou esta
mensagem pelo Instagram nesta semana:
“Olá,
boa tarde. O que o senhor me diz sobre o amor alienado do narrador pela
Soledad?
E o que
Soledad sentia pelo Anselmo/Daniel, na concepção dela, era ‘amor’? Eu li o
livro e queria saber de você sobre essas discussões que o livro apresenta, em
relação às contradições entre amor e violência”.
Surpreso,
vi que eram perguntas e dúvidas legítimas. Então respondi em breve tempo:
O
narrador não possuía nem possui um “amor alienado” por Soledad. Era uma relação
sem futuro de poeta pela musa. Até onde sei, Soledad possuía por Anselmo uma
relação amorosa que, se não era um profundo amor, era um respeito afetivo. O
que se revelou uma tragédia, ao fim.
Ao que
voltou a leitora e professora:
“Era
uma inquietação minha, pois ele assume um ‘amor idealienado’.”
Antes,
de modo resumido e rápido, não pude falar à pesquisadora o que levaria mais
horas de reflexão. Agora, procuro retomar. Além de “Soledad no Recife”, a
recriação dos seus últimos dias antes da morte, no romance que escrevi depois,
“A mais longa duração da juventude”, assim pude ver a relação entre a guerreira
e o agente de repressão Cabo Anselmo:
“Por
que Soledad caiu na esparrela do Cabo Anselmo, nesse vulgaríssimo laço? Eu não
posso, ninguém pode escrever um teorema das relações humanas. Para os
sentimentos não há um conjunto de frases lógicas, num crescendo que se revela
ao fim um desastre. Numa tragédia, CQD, Como Queríamos Demonstrar. Mas a
indeterminação do que sentimos, matemática ou mecânica, não é obstáculo para
uma tentativa de entendimento. Quero dizer, por força de meditação: havia em
Soledad um democratismo, um populismo no amor que era reflexo de suas escolhas
políticas. Não sou mecânico ou cruel, porque falo à luz da viva experiência.
Nos anos da ditadura, os militantes mais ardorosos queriam imprimir no coração
o imediato de suas convicções partidárias. Às vezes nem era preciso gravar a
impressão do panfleto, porque já estava inscrito. Quero dizer: havia mistura de
sentimentos, vários, dos mais piedosos da formação cristã a palavras de ordem.
Ora, se queríamos um mundo subvertido, onde os explorados fossem os novos
soberanos do mundo, então era natural que amássemos a pessoa à margem dos
bem-nascidos. Desse ponto até o fracasso da relação, do sentimento e da
escolha, era um descer a ladeira. Pois o coração submetido ao que lhe é
exterior revolta-se, lento e indeciso a princípio, depois grita contra as
soluções de força. Parece óbvio agora, mas antes não era, quando o amor ao povo
significava bem casar com uma operária, porque operária. Sabemos hoje: seria
menos desastroso o casamento de pequeno-burgueses que possuíssem igual referência.
Mas se amava a opção política, que em boa metafísica virava ideologia de
exaltação da pessoa. Às vezes, a destruição da fantasia não demorava. Às vezes,
se arrastava por anos.
Em
Soledad Barrett, além do natural sentimento do tempo, que era pôr a revolução
antes e acima de tudo, havia uma herança libertária do anarquismo, o que não
era menos revolucionário, mas desejava mais que um programa racional. Ou seja,
aquilo que o seu coração exigia não era pequeno, vinha a ser a libertação
absoluta, conforme se desejava no ideário dos anarquistas libertários. E descia
para ela, como uma herança de rebeldia, o pensamento do avô, o grande escritor
e político Rafael Barrett: “Enquanto a dor não te queime as entranhas, enquanto
um dia de fome e abandono — pelo menos um dia — não te vomite para a vasta
humanidade, não a compreenderás”. E, para tão alta ambição, que não encontrava
fácil pessoas com quem comungar, eis que surge Anselmo, o anjo que vestia as
roupas da promessa conforme o desejo. O que ela quisesse. Ele seria o amante
ideal, se ela desejasse um companheiro misto de gêneros. Ele seria o
companheiro ideal, se ela criticasse o ordenamento da tradição, “careta”, dos
velhos partidos comunistas. Ele seria o mais bravo, se o mundo se transformasse
pelas armas. Ele seria a voz da experiência, se ela desejasse conhecer o Brasil
revolucionário. Ele seria o porto seguro, se ela quisesse descansar por
momentos da batalha. Em resumo, ele seria — como foi — o canalha, pela
concordância absoluta com todos os desejos de Soledad, a quem ele tudo
prometia. Um amante ideal e companheiro sem preocupações materiais de
sobrevivência, porque Daniel guardava dinheiro expropriado em assaltos, tão
sério e confiável era.
Ninguém
alcançava o Pai — o encontro da revolução libertária — sem passar por Anselmo.
Daí a razão de ele sempre andar de carro com “gasolina pela boca”, como
lembraria o militante Karl Marx ao falar do tanque cheio do fusca usado por
Daniel. Imagine-se tal privilégio em um tempo de militantes sem dinheiro até
para uma passagem de ônibus. Mas com Daniel, não: a infraestrutura econômica do
comando oculto dos guerrilheiros era perfeita. Daí que ele criou a butique
Mafalda — possuía dinheiro para tanto — porque a revolução financiava a tomada
do Brasil a partir do Nordeste. Era como uma nova invasão holandesa. Não se
pense que semelhante delírio fosse digno de risos. Esse foi um tempo em que o
riso mais eloquente residia nos dentes da caveira. Os erros mais ridículos
traziam a morte. Mas é claro, tão convictos do acerto nos achávamos, que só
seríamos abalados pela tragédia da destruição física. Abalados, mas sem ter
ainda a percepção do erro, pois a um real tão espinhoso, complexo, respondíamos
com o desejo. Simples, não? Anselmo, no personagem Daniel, vestia-se como o
melhor amigo e companheiro de Soledad.
Indivíduo
fino e escorregadio, que não sai do seu papel, ele falou a uma repórter numa
entrevista recente. A jornalista, de bom coração e magoada, lhe fez a pergunta:
— Mas
você amava Soledad?
Ele,
recebendo a susto o golpe da pergunta, procura ganhar tempo:
—
Eu?... Olha, é um sentimento difícil pra mim. Ela era uma pessoa linda, poeta,
falava várias línguas... O que aconteceu com ela não foi culpa minha, entende?
Foi ela quem se condenou, não fui eu. Por mim, ela estava fora do massacre.
— E por
que você não a avisou?
— Está
louca? Eu ia ser morto se abrisse pra ela o que eu sabia.
— Morto
por quem? Por ela ou pela repressão?
— Por
ela, claro. Sol... ela era uma pessoa muito ideológica. Cruel, com aquela
carinha de santa.
— Ela
era cruel? — a repórter pergunta, tendo na lembrança a imagem do corpo de
Soledad no necrotério. — Cruel?
— Você
nem imagina do que são capazes os comunistas. Eles matam mesmo.
— Você
está vivo.
— Sim,
só Deus sabe como. Eu fui o sorteado pra sobreviver.
A
repórter para e não quer saber se ele atribui à roleta da vida o seu plano
sistemático de infiltração, entrega de companheiros e permanentes novas quedas
de quem o traidor entrega. Ele, o sorteado. A ironia não deve descer a esse
ponto. A repórter se preocupa com algo, para ela, mais essencial.
— Mas
você amava Soledad?
—
Olha... eu amava Soledad. Mas um amor à minha maneira, entende?
— Como
assim, à sua maneira?
—
Assim... eu tinha afeição, amor por ela. Mas o amor pra mim é uma coisa
prática, entende?
—
Entendo. Sacrificar a sua vida pela amada, nunca.
— Isso
é romantismo.
— E
você se ama, Anselmo?
—
Claro. Eu sou um cara normal.”
Fonte:
Por Urariano Mota, em Brasil 247

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