sexta-feira, 5 de dezembro de 2025


 

Laercio Eurich: Capitalismo e crime

O jornal O Estado de S. Paulo publicou um editorial intitulado “A sociologia de Lula romantiza o crime” criticando Lula e a esquerda para quem “o crime, numa sociedade capitalista, é mero subproduto do meio, um reflexo das desigualdades. A culpa, portanto, é da sociedade”, devido Lula ter dito que traficantes seriam “vítimas dos usuários”, porém o referido texto é ideológico e superficial.

Afinal, sociedade é um termo abstrato, cabe aí escravismo, feudalismo, capitalismo e socialismo, para entendê-la precisa se concretizar mais como, por exemplo, sociedade capitalista como exatamente dito na frase anterior “numa sociedade capitalista”. Sociedade e sociedade capitalista não são a mesma coisa. Mas o que é uma sociedade capitalista que é a que se está tratando aqui? É um modo de produção onde a relação essencial é entre proprietários dos meios de produção, os empresários produtores, e os não proprietários empregados, assalariados, trabalhadores.

Se Lula está falando em “vítimas dos usuários” ou o texto em “cumplicidade do consumo” não estão falando em capitalismo, dado que a relação principal deste é entre empresários x empregados e não entre empresários x consumidores.

Ato continuo o texto prossegue discorrendo que “de Marx a Foucault, a cada geração os esquerdistas conjuram a fraseologia da “violência estrutural” para dissolver responsabilidades pessoais em sociologia” e disso sairia a tal da “ressocialização em meio aberto”, “reeducação psicossocial” e “lapidar eufemismos” para o crime, só que não sei Foucault, mas Marx nunca disse isso.

Marx tratou das relações econômicas no capitalismo na sua obra O capital, cuja contradição principal é entre proprietários e não proprietários, já mencionado. Essa contradição é determinada pelas forças produtivas, isto é, pelo nível de desenvolvimento do que em geral poderíamos chamar de tecnologia. Essa ao crescer diminui o salário, desemprega, não necessita de toda a força de trabalho disponível, etc., a partir do qual os marxistas inferem que essas pessoas, em condições piores, tendem a cometer crimes dado a sua condição. Isso para crimes pobres.

Mas e os ditos crimes de colarinho que não se menciona no referido texto? Pode ser deduzido também da contradição principal? Dado que os proprietários produzem independentemente produtos e serviços e sendo os setores principais da sociedade, dos quais todos precisam de algo para sobreviver e só se adquire com dinheiro, ou seja, o dinheiro é que confere poder a quem o possui, logo possuí-lo se consegue o que quiser, daí os crimes cujo objetivo principal é o dinheiro.

Os progressistas ao olharem para os criminosos como engendrados pela condição propagariam uma “inversão moral” já que seriam condescendentes com o crime e a “responsabilização do indivíduo é tratada como opressão burguesa, e a indulgência, como virtude”, porém os progressistas nunca mencionaram que o crime e os criminosos não devam ser responsabilizados, mas que o crime advém daquelas condições do capitalismo e que para acabar ou diminuí-lo há que também se olhar e intervir nessas condições e quem advoga que isso seria uma “inversão moral” é quem possui uma moral burguesa ou capitalista, posto que ao assim advogar culpabilizando apenas o indivíduo contribuem para ocultar as condições econômicas de um modo de produção que engendra o crime.

O “sistema”, o “mercado”, a “herança colonial” seriam os culpados “abstratos” da esquerda, no entanto para se contrapor a esses termos o autor utiliza termos como “teologia da inocência universal”, “satisfação narcísica”, “vitimologia”, “monopólio da virtude”. Nada mais abstrato que essas palavras”! A abstração “mercado” usado por Marx, sendo que “sistema” e “herança colonial” não são termos marxistas, se trata do local onde se dá as trocas ou venda dos produtos e serviços e onde se estabelecem os preços e esse preço interferem na produção auferindo lucro ou prejuízo, interferindo também em falências, emprego, salário já mencionados, sendo, portanto, um termo bastante concreto e não abstrato.

Em relação de que os progressistas desmoralizariam “toda contestação como repressão “fascista”, este surge exatamente quando os lucros caem, ou seja, o capitalismo entra em crise, piorando as condições sociais, atribuindo essa piora as classes mais baixas, imigrantes, minorias, etc., que estariam “onerando” a sociedade daí a crise e não que esta é inerente ao próprio capitalismo.

Em relação aos “militantes que celebram terroristas e ditadores” e “recriminam a punição a delinquentes como “violência estatal” apesar de não se mencionar de que “ditadores” se está falando infere-se que devem ser Nicolás Maduro, Fidel Castro, etc., justamente dos, principalmente Cuba, que modificaram aquelas relações capitalistas de propriedade e não propriedades, isto é, a propriedade passou de ser de todas as pessoas e geridas por elas através de um planejamento, isto é, não há ninguém que lucra. Todo o produzido é distribuído para todos.

Não é à toa que os EUA, representante do último estágio do capitalismo e que Vladimir Lênin definiu como imperialismo, passaram a classificar o crime organizado como terroristas com vistas a intervir nestes países dos “ditadores” e que o texto do Estadão está fazendo o mesmo quando diz que “celebram terroristas” já que aqui trata-se de crime organizado e não terrorismo. Na lei brasileira os crimes estão tipificados no código penal e o terrorismo na lei 13.260/16, já que possuem características diferentes. Em tempo: o que se “recrimina” não é a punição, mas ela sem o devido processo legal, pois esse sim é algo ditatorial!

A esquerda, via “mílicias marxistas”, dos anos 1970, teria ensinado o “léxico de guerra cultural” e “táticas de guerrilha urbana” ao Comando Vermelho só que não é possível pensar uma organização criminosa só a partir de quem ou o que lhes foi ensinada, se é que algo lhes foi ensinado, sem pensar nas condições de periferia, ou seja, local de vida daquela força de trabalho não empregada ou sub empregada pelo capitalismo e da corrupção de autoridades ávidas por dinheiro e que não são criados pelos marxistas.

Menciona que “juízes progressistas libertam criminosos com dezenas de reincidências”, “desativam hospitais de custódia e despejam psicopatas em “ambientes comunitários”. “ONGs financiadas por facções filmam documentários sobre “direitos humanos”, porém onde está a referência? E que a lei passa a ser uma “ficção”, esquecendo que classificar crime organizado como terrorismo é justamente a lei ser ficção, pois é usar uma lei, a do terrorismo, para caracterizar um grupo como algo que ele não é. A lei pensada apenas como pena também é ficção, posto que ela também implica o processo penal.

A “esquerda se compadece dos criminosos, mais(sic) abandona os pobres”. Muito pelo contrário. Quando a esquerda elabora que o crime advém de condições econômicas do capitalismo como desemprego, subemprego, baixos salários, etc, sendo desta condição que surge a possibilidade de terem “filhos aliciados” ela justamente acredita que a diminuição ou até o fim de crimes está em melhorar essas condições o que, consequentemente, diminui a pobreza, logo os pobres e atribuir o crime apenas aos indivíduos, e neste caso, pensando só a partir da pobreza (e os crimes do “colarinho branco”?) sem pensar ou intervir também nas condições que faz com que ele seja um criminoso é perpetuar o crime.

Mas por que será que esse texto só fala de crimes como algo do indivíduo e relacionado ao pobre e não menciona ele relacionado também a corrupção de autoridades, lavagem de dinheiro, transações financeiras irregulares, etc.? Por que será é tão difícil direcionar o combate ao crime também a essa outra parte?

        Precisamos descolonizar o poder. Por João Raphael Ramos dos Santos

“A violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota.” - Jean-Paul Sartre, filósofo e escritor francês

“Poder e violência são opostos; onde um domina absolutamente, o outro está ausente” - Hannah Arendt, filósofa política

“Poder é fazer com que o outro faça o que você quer e sem o uso da violência real.” - Max Weber, sociólogo e economista alemão

“Sempre estivemos em guerra” - Ailton Krenak, filósofo e membro da Academia Brasileira de Letras

“Mesmo que queimem os corpos, não queimam a ancestralidade” - Antônio Bispo dos Santos, filósofo e mestre de ofícios quilombola

No dia 28 de outubro de 2025, o Rio de Janeiro acordou com o eco de uma megaoperação policial nos complexos da Penha e do Alemão.

Mais de 120 mortos, corpos espalhados pelas ruas, uma ação que o governador chamou de “sucesso” contra o narcoterrorismo, mas que organizações de direitos humanos rotularam como o maior massacre da história recente do Brasil – superando até o infame Carandiru, em 1992, onde 111 presos foram executados, em São Paulo.

Policiais e traficantes armados, tiroteios intermináveis: uma guerra urbana que deixou bairros inteiros em luto e terror.

Mas esse banho de sangue não é um acidente isolado. Ele ecoa uma longa cadeia de chacinas que marcam a história do Rio e do Brasil. Lembrem-se de Jacarezinho, em 2021, com 28 mortos em uma operação “limpeza”; Vigário Geral, em 1993, onde 21 moradores da favela foram mortos vivos por policiais vingativos; e a Chacina da Candelária, em 1993, com crianças de rua assassinadas a sangue frio. No Brasil, de Carandiru a Eldorado dos Carajás, em 1996, com 19 sem-terra mortos pela PM, essas ações revelam um padrão: a violência estatal contra os periféricos, os pobres, os negros e indígenas, é tratada como rotina.

Esse padrão não nasce do nada. Ele é um legado cultural direto do extermínio colonial e imperialista que fundou esta nação.

Desde a chegada dos europeus, o Brasil foi construído sobre o genocídio sistemático dos povos indígenas – das bandeiras paulistas que dizimavam aldeias inteiras aos massacres nos quilombos, como Palmares, destruído no século 17.

A escravidão africana, com milhões mortos nas senzalas e nos navios, reproduzia técnicas de dominação total: o corpo negro como descartável, a vida periférica como mero obstáculo ao “progresso”.

O imperialismo europeu, com suas guerras de conquista na África e na América, ensinou que certos corpos – os “bárbaros”, os “selvagens” – podiam ser exterminados sem remorso, sem julgamento, em nome da civilização.

Aimé Césaire, em seu “Discurso sobre o Colonialismo”, alertou que o colonialismo não é apenas exploração econômica, mas uma escola de desumanização: “É o colonialismo que, na Europa, preparou os fascismos”, diz ele, mostrando como a violência banalizada nas colônias retorna para assombrar os próprios colonizadores.

No Brasil pós-colonial, essa violência se internaliza, tornando-se endêmica. Achille Mbembe, em “Necropolítica”, aprofunda isso: a soberania moderna não é só biopolítica – gerir a vida –, mas necropolítica, o poder de ditar quem deve morrer.

Nas favelas do Rio, como nas banlieues africanas pós-coloniais, o Estado exerce essa necropolítica: operações que “deixam morrer” ou “fazem morrer” populações estigmatizadas, reproduzindo as técnicas coloniais de cerco, execução sumária e exposição de corpos como troféus de guerra.

Essas megaoperações de hoje – com drones e narrativas de “baque no crime” – não inovam; elas reciclam o arsenal colonial. O cerco aos morros espelha os cercos às aldeias indígenas; os corpos expostos nas ruas, como em 28 de outubro, evocam as cabeças de escravizados fugidos cravadas em postes.

É um legado cultural profundo: o extermínio como método de controle social, onde a favela é o novo território colonial, habitado por “outros” cujas vidas não contam. Enquanto o Estado celebra “vitórias”, ignora que essa violência perpetua o ciclo, fortalecendo o medo e a desigualdade que alimentam o crime.

Para romper esse ciclo, precisamos descolonizar não só a história, mas a prática do poder. Senão, os massacres continuarão, ecoando das florestas antigas às ruas do Rio.

 

Fonte: A Terra é Redonda/Opera Mundi

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