sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Márcio Pochmann: A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados

A geopolítica clássica parte da hipótese de que o mundo seria moldado pelas disputas de poder entre as nações buscam controlar o território terrestre e aquelas que dominam os oceanos, o que produziria como resultado uma dinâmica de conflito e cooperação ao longo do tempo. Isso porque durante séculos, a disputa pela hegemonia global esteve intrinsecamente ligada à geografia e às civilizações que nela prosperaram. Essa visão de oposição entre poderes continental e marítimo tem sido dominante no mundo em que a logística, o comércio e a estratégia militar dependiam fundamentalmente da geografia física. Embora continuem extremamente relevantes nota-se que na atualidade, a emergência da dimensão digital tem imposto uma importante transformação na disputa pelo poder global.

Com a transição para a Era digital, o controle de dados, as infraestruturas digitais, o ciberespaço e o espaço sideral constituem novo elementos interligados que definem a capacidade de uma nação ou entidade exercer influências na configuração do poder global. O domínio digital projeta o domínio tecnológico com a coleta e gestão das informações estratégicas e até mesmo a liderança nos conflitos sob novas formas, como nas guerras cibernética e de informação. Pela infraestrutura decisiva dos dados, computação em nuvem, cabos submarinos, plataformas digitais, algoritmos e inteligência artificial, a dialética terra e mar soma-se e interliga-se. Por isso, a geopolítica clássica não se torna obsoleta, ainda que se reconfigura diante das novas formas de disputas entre poderes territoriais, marítimos e, agora crescentemente pelos poderes informacionais transnacionais.

No sentido dos fluxos de dados centrado na esfera privada das big techs transnacionais que dominam a infraestrutura material (nuvens, cabos, plataformas) a operar praticamente sem regulação, a soberania nacional sofre abalos pouco conhecidos até então. A Era digital torna a disputa do poder mais complexa e multidimensional, cujo domínio da tecnologia assume condição crítica e desafiadora na capacidade de multiplicação de força. No Brasil, esse arranjo tem criado tensões crescentes entre a soberania territorial do Estado e suas instituições como, por exemplo, o IBGE, a infraestrutura física que cruza oceanos e costeiras de cabos submarinos e data centers e, ainda, as plataformas privadas que guardam, processam e monetizam dados. O resultado disso tem sido uma fragilização relativa da soberania digital a exigir políticas públicas integradas (regulatórias, infraestruturais e capacitadoras).

Do contrário, as empresas e plataformas estrangeiras que detêm capacidades de Inteligência artificial, processamento em larga escala e de redes que o Estado e empresas locais não dispõe, tenderão a seguir consolidando o seu poder interno de influência política e econômica. Ao mesmo tempo, continuarão modulando a opinião pública, capturando receita digital e aprofundando a dependência externa nos serviços essenciais. Para o segundo quarto do século XXI, a política do ciberespaço para o controle soberano do fluxo dos dados, de supremacia das terras raras e do domínio da revolução digital redefinem as fronteiras do exercício da hegemonia. Tudo isso para além das formas e domínios tradicionais da dialética geopolítica terra e mar.

<><> Disputas na Era industrial

Ao final do século XIX, quando as nações do Norte Global consolidavam suas sociedades urbanas e industriais, o poder marítimo se afirmou como fundamental para o controle das rotas de navegação, garantindo segurança e prosperidade aos países Ocidentais. Com isso, o domínio dos mares, mais afeito à esfera militar, tornou-se estratégico para o desenvolvimento econômico e a liderança na política global durante a Era industrial (Mahan, 1987).

Em certa oposição a essa visão centrada no domínio marítimo emergiu, logo no início do século XX, a suposição de que o controle de vasta massa de terra constituiria a chave para o domínio e desenvolvimento mundial. A teorização sobre a importância estratégica do território vasto e rico em recursos naturais estratégicos, protegido de eventuais ataques navais e potencial logístico poderia compreender tanto o Heartland nas áreas europeias da Rússia agrícola até as planícies da Sibéria (Mackinder, 2020) como o Rimland que envolvia a Europa Ocidental com o Oriente Médio, a Índia, o Sudeste Asiático e a China (Spykman, 2020).

<><> A ascensão do poder informacional

Neste primeiro quarto do século XXI, a geopolítica digital introduziu um novo tipo de poder informacional que não parece depender mais de fronteiras físicas. A partir de fluxos de informações, redes, dados pessoais e infraestruturais invisíveis, grandes empresas oligopolistas de tecnologias detêm apoio em pouquíssimos Estados Nacionais, estabelecem novas dependências tecnológicas estruturais no mundo. De certa forma, a Era digital coloca em questão o sistema internacional moderno fundado a partir do Tratado de Westfália de 1648, quando surgiu o Estado-nação com autoridade suprema e exclusiva dentro de seus limites geográficos (soberania territorial). Com novos domínios e atores que transcendem as fronteiras físicas, o poder informacional transforma e desafia os princípios centrais da geopolítica global, especialmente a soberania territorial exclusiva e a não intervenção em assuntos internos.

Ainda que o advento da soberania do Estado-nação permaneça válido nas relações internacionais e se aplique ao ciberespaço, percebe-se que o seu emprego tem sido reconfigurado e desafiado pela natureza global e sem fronteiras da Era digital. Sob a governança digital e a resiliência cibernética, a soberania informacional precisa ser repensada em forma híbrida e combinada com a autoridade territorial nacional em novas bases. As big techs (Google, Meta, Amazon, Apple, Microsoft, Alibaba, Tencent) exercem capacidades que antes eram monopólio de Estados-Nação, coletando e tratando dos dados de populações inteiras, controlando infraestruturas críticas (nuvem, cabos submarinos, satélites, sistemas operacionais), definindo padrões técnicos globais, regulando a circulação de informação, influenciando eleições, a opinião pública e a segurança nacional. Um novo tipo de megainfraestrutura planetária que ultrapassa a soberania dos Estados e reorganiza o espaço político mundial.

<><> Erosão da soberania nacional

A noção de soberania digital torna-se fragmentada, deslocada dos Estados para plataformas privadas globais. Para países com desenvolvimento intermediário e Estado tradicional baseado em território e soberania física como o Brasil, a dependência de plataformas digitais estrangeiras para comunicação, comércio, segurança, educação e serviços públicos têm sido crescente. Isso porque a soberania digital requer a capacidade de armazenamento dos dados nacionais em nuvens que não sejam estrangeiras, bem como a superação da tomada de decisões críticas a partir de algoritmos privados e fluxos econômicos dependentes da infraestrutura fora do controle estatal e da governança da informação privatizada. Do contrário, a situação de subordinação informacional prevalece, comparável – guardada a devida proporção – a antigas relações coloniais atualmente fundadas na assimetria tecnológica.

A Era digital não elimina a geopolítica clássica uma vez que a Terra permanece relevante pelo controle territorial, extração de recursos físicos e vigilância estatal, bem com o mar segue crucial porque cabos submarinos e rotas marítimas constituem o sistema circulatório da internet. Dados emergem como o novo espaço estratégico, capaz de superar a soberania estatal e criar formas inéditas de poder. Em síntese, o mundo contemporâneo por ser cada vez marcado pela disputa tripartite entre terra (Estados Continentais), mar (Infraestruturas Globais/Big Techs Marítimas) e nuvem/plataformas (Poder Informacional Transnacional) assenta-se na geopolítica digital enquanto desdobramento da convencional disputa movida por dados, inteligência artificial, plataformas globais e infraestruturas invisíveis. Uma inédita oportunidade para o protagonismo de países do Sul Global com o Brasil.

•        A ascensão da IA é mais uma etapa na luta de classes. Por Sophie Bandarkar

mbora o desemprego oficial permaneça baixo, o mercado de trabalho estadunidense está estagnado: o crescimento salarial desacelerou, a criação de empregos enfraqueceu e a participação na força de trabalho está em declínio. O emprego de profissionais qualificados, particularmente no setor de tecnologia, caiu 1,9% desde o pico em 2022.

Isso pode parecer modesto, mas recessões anteriores, em 2008 e 2020, começaram com declínios semelhantes. No setor de tecnologia, as demissões aumentaram 36% em relação ao ano passado. O que começou em 2022 como uma redução de pessoal em startups se espalhou para empresas maiores e mais conhecidas, como Microsoft, Google, Salesforce e Meta.

<><> Pressões da automação ou cortes de custos?

As explicações mais comuns atribuem esses cortes ao avanço da inteligência artificial (IA). A IA generativa, um ramo do aprendizado de máquina que estabelece associações em grandes volumes de dados para gerar imagens, textos ou previsões sem instruções predefinidas, tem sido vista como uma força disruptiva capaz de remodelar a sociedade. O CEO da Anthropic, uma das principais empresas de IA generativa, afirma que precisamos parar de “dourar a pílula”: a IA pode “eliminar metade de todos os empregos de nível básico em escritórios e elevar o desemprego para 10 a 20% nos próximos cinco anos”.

Há razões para sermos céticos em relação a esse alarmismo. Um estudo recente do Yale Budget Lab constatou que, “embora a ansiedade sobre os efeitos da IA generativa no mercado de trabalho atual seja generalizada, nossos dados sugerem que ela permanece em grande parte especulativa”. Da mesma forma, o economista ganhador do Prêmio Nobel, Daron Acemoğlu, não vê evidências de que a nova tecnologia terá “efeitos revolucionários” na economia. Contestando as alegações de que a IA dobrará o crescimento do PIB dos EUA, ele estima um ganho modesto de apenas 1,5% na próxima década, com impacto mínimo na produtividade. Outros economistas descobriram que, mesmo em contextos onde a IA foi implementada, o impacto econômico foi mínimo.

Se isso for verdade, o que explica as demissões? A segunda explicação mais comum muda o foco do Vale do Silício para Washington. Na sequência da Grande Recessão, os bancos centrais fixaram as taxas de juros em níveis extremamente baixos, iniciando o que ficou conhecido como período de taxa de juros zero (ZIRP). Essa era durou até 2021. Entre 2008 e 2021, o crédito barato permitiu que as empresas tomassem empréstimos, expandissem e financiassem investimentos de maior risco. Quando as taxas começaram a subir em 2022, as empresas com alto nível de endividamento enfrentaram custos mais elevados com o serviço da dívida e foram forçadas a cortar gastos.

Há alguma verdade nessa narrativa. A Oracle, por exemplo, entrou na corrida da IA tardiamente e agora enfrenta uma dívida de longo prazo de US$ 95 bilhões. Ela precisaria aumentar sua receita anual para mais de US$300 bilhões até 2030 para justificar seus investimentos. Em meio à crescente pressão para atingir metas financeiras, a empresa demitiu 3.000 funcionários em setembro. Contudo, embora algumas empresas financiadas por dívidas, como a Oracle, enfrentem dificuldades, elas não são representativas do setor como um todo. Na melhor das hipóteses, explicam apenas parte da história.

Segundo o Goldman Sachs, empresas relacionadas à IA emitiram US$141 bilhões em novas dívidas corporativas em 2025, e a Bloomberg reporta que empresas de tecnologia estadunidenses captaram outros US$157 bilhões nos mercados de títulos até o final de setembro, um aumento de 70% em relação ao ano passado. Esses números são impressionantes, mas ainda representam apenas uma pequena fração dos aproximadamente US$1,5 trilhão em gastos totais projetados para IA neste ano.

<><> Grande demais para falir

Amaior parte dos investimentos em IA não vem de startups endividadas, mas sim de empresas consolidadas com grande disponibilidade de caixa, como Meta, Microsoft e Amazon. Essas empresas têm baixa alavancagem, reservas substanciais e fácil acesso a crédito barato e de alta qualidade. Por exemplo, Darwin Ling, fundador da Good AI Capital, escreve que a Meta, que já investiu US$14,3 bilhões em infraestrutura de IA e contratação de pessoal, anunciou recentemente a construção de dois novos data centers, que fornecerão seis gigawatts (GW) de energia no total para executar modelos de grande escala. Para se ter uma ideia, um GW equivale ao consumo de energia de um pequeno estado dos EUA.

Para financiar isso, a Meta combinará US$26 bilhões em dívida e US$3 bilhões em capital próprio, a maior transação de private equity da história. Essa dívida não aparecerá diretamente nos balanços da Meta, mas sim por meio de uma Sociedade de Propósito Específico (SPE), enquanto a Meta arrendará a infraestrutura de volta. O objetivo é servir como um roteiro financeiro para outras empresas que desejam investir em projetos de infraestrutura de grande porte para hiperescaladores.

Isso reflete a lógica mais ampla do financiamento circular, essencial para a economia da IA, na qual as empresas são simultaneamente investidoras, clientes e credoras. O mesmo pequeno grupo de empresas financia, fornece e vende umas às outras em um ciclo cada vez mais fechado de monopólios mutuamente dependentes. Por exemplo, Oracle, Nvidia, CoreWeave e SoftBank negociam entre si US$1 trilhão em contratos de IA. Os retornos não derivam de ganhos de produtividade, mas de uma forma de apropriação de direitos de acesso, ou seja, da posse das plataformas, dados e infraestruturas das quais outros dependem. Dessa forma, o sistema é estruturado de modo que os investidores se auto-reforçam cada vez mais e se tornam grandes demais para falir.

Ou, como explica claramente o The Economist: “Para começar, muitos dos gastos de hoje podem se revelar inúteis. [Mas] a boa notícia é que o sistema financeiro atual provavelmente conseguiria absorver o impacto.” A razão para isso é que quem fornece crédito são fundos de mercado privado financiados por indivíduos e instituições ricos, e não por depositantes, e as startups de IA são financiadas por empresas de capital de risco bem estruturadas e fundos soberanos que podem suportar perdas.

<><> Demissões como escolha estratégica: opondo o capital ao trabalho vivo

Apesar de sua sólida posição financeira, a Meta anunciou esta semana que demitirá 5% de seus funcionários para reduzir “equipes não essenciais” e se concentrar no “avanço da IA”. As demissões, como muitas outras no setor de tecnologia, não são motivadas por dificuldades financeiras ou por uma pressão genuína relacionada à automação, mas sim por uma escolha estratégica de reestruturar contratos e enfraquecer a posição dos trabalhadores. A Meta pode fazer esses cortes devido ao seu enorme poder econômico e político, que a protege da disciplina de mercado e social e lhe permite impor um novo regime de acumulação sobre sua força de trabalho.

Sob o pretexto da inevitabilidade tecnológica, as empresas estão usando o boom da IA para reescrever o contrato social — demitindo funcionários, recontratando-os com salários mais baixos, intensificando a carga de trabalho e normalizando a precariedade. Em resumo, são escolhas políticas disfarçadas de necessidades técnicas; a IA não é a causa das demissões, mas sim sua justificativa.

A crescente parcela de trabalhadores de escritório que se tornam precários ou redundantes devido ao impulso tecnológico do capital forma uma nova população excedente ou um contingente de trabalhadores descartáveis e com mobilidade social descendente, utilizados para pressionar os salários para baixo e normalizar a insegurança. Eles não são externos ao capitalismo, mas sim internos à sua reprodução.

A recomendação frequente de que os trabalhadores devem se “requalificar” ou ficarão para trás fornece uma justificativa moral e ideológica para ataques ao movimento trabalhista. Mas os efeitos da reorganização impulsionada pela IA também serão sentidos pela maioria dos trabalhadores que não perderão seus empregos graças à nova tecnologia. Isso ocorre porque a reorganização gerencial sob o pretexto de melhoria tecnológica pressiona os trabalhadores a realizar tarefas em menos tempo, assumir novas tarefas ou absorver as tarefas dos demitidos, tudo isso pelo mesmo salário.

Em resposta a essa pressão para extrair mais valor dos trabalhadores, os sindicatos precisam estar dispostos a contestar essas formas de reorganização. Isso significa

se organizar em torno de questões como remuneração, segurança no emprego, direitos de dados e condições de trabalho. Lutas desse tipo já estão acontecendo, lideradas por sindicatos que buscam negociação coletiva para os trabalhadores afetados pela adoção da IA.

Contudo, os trabalhadores sozinhos não podem vencer essa luta. O controle da economia da IA é sustentado não apenas por monopólios privados, mas pelo próprio Estado, que apoia essas empresas por meio de subsídios, regulamentação permissiva e captura política. Combater as grandes empresas de tecnologia exigirá um projeto político para recuperar o controle democrático sobre o uso que está sendo feito dos produtos da inteligência humana.Nas palavras de Karl Marx, “O capital é trabalho morto que, como um vampiro, só vive sugando trabalho vivo, e vive mais quanto mais trabalho suga”.

 

Fonte: A Terra é Redonda/Jacobin Brasil

 

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