sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Thiago Toledo Leite Ferreira da Rocha:  O canibalismo do capital

A América Latina é vítima de uma armadilha neoextrativista: o modo como está inserida no sistema global de valorização do valor – enquanto fornecedora de commodities –, forçou-a a tornar-se um verdadeiro buraco de extração. O Brasil é caso exemplar disso.

Coloca seus biomas à disposição de um agronegócio criminoso, permite a exploração de petróleo na foz do Amazonas, institui leis como as do Marco Temporal e PL da devastação, que não sinalizam outra coisa que o aprofundamento desta lógica extrativista – desdobramento trágico do sentido imposto ao Brasil desde a sua colonização, que fez dessas terras um experimento econômico onde a civilização foi uma espécie de consequência indesejada.

O curso dessa história fez com que hoje nos tornássemos a maior fronteira de devastação ecológica no mundo. De 1985 até hoje, desmatamos aproximadamente 110 milhões de hectares de vegetação nativa, área maior do que todo o território da Bolívia. Mas, hoje, frente a catástrofe ambiental, que marca o fim da linha deste modelo predatório, trata-se de questionar: o que nos habilitou a conviver com tamanha destruição, e conviver com ela com tamanha insensibilidade?

Uma resposta verdadeiramente à altura deveria ser capaz de contemplar diversos níveis, já que a maneira como nos relacionamos com a natureza é fruto de uma metafísica resultante da articulação histórica entre naturalismo científico, cristianismo e capitalismo, por meio da qual a natureza foi inventada como contraponto a liberdade e emancipação modernas. Mas fiquemos aqui apenas com o último elemento dessa tríade pelo carácter breve dessas considerações.

Seria o caso de lembrar, como Karl Polanyi argumentava, que há uma oposição entre sociedade e mercado. Pois o mercado, espaço das relações de compra e venda, de maximização de lucros, de concorrência, opõem-se às relações de solidariedade, de proteção pública, de direitos – relações de carácter social. Assim, o teor das relações presentes nesses domínios define-se mutuamente por oposição: lá onde as relações de concorrência, maximização de interesses e lucros predominam e colonizam a subjetividade, não pode haver solidariedade.

Nesse sentido, o mercado, dizia Karl Polanyi, é antissocial, pois coloca a sociedade em risco. Isto por duas razões: primeiro, porque as relações mercantis, quando deixadas sem impedimentos, alastram-se e dissolvem outros tipos de relação – de solidariedade, por exemplo. Depois, porque o mercado se apropria, consome e degrada elementos dos quais a sociedade depende para continuar existindo. Por isso, a sobrevivência da sociedade depende que certas coisas estejam fora do controle do mercado, que relações extra-mercantis sejam cultivadas.

No entanto, a história da modernidade ocidental é a história da expansão das relações mercantis sobre as relações sociais. Sobretudo a partir do século XIX, momento da revolução industrial, com o surgimento da doutrina liberal formulada por Adam Smith, David Ricardo, que se torna hegemônica, princípio organizador da sociedade, o mercado começa a colonizar todas as esferas da vida. Difunde-se a ideia de que as intervenções estatais atrapalham e os problemas sociais teriam que ser resolvidos pela iniciativa privada. A conhecida ideologia por trás é a do ser concorrencial, segundo a qual o bem-comum seria fruto da busca egoísta de interesses individuais.

O neoliberalismo é o ponto culminante desse processo. Desde os anos 1970, quando o grande capital se liberta das amarras do Estado de bem-estar social, a tendência mundial – salvo exceções como China e Índia – é a de privatização da vida social: da saúde, educação, transporte, lazer e saneamento básico. Do avanço, portanto, das relações mercantis sobre as sociais, o que implica também na transformação da subjetividade.

Hoje, mesmo governos progressistas, como Lula 3, pautando suas políticas econômicas pela austeridade fiscal e por reformas de retração de direitos, aprofundam esta tendência global. Com efeito, a contrapartida fundamental desse processo, dentre outras, é o completo esfacelamento do ideal de autodeterminação e soberania popular no interior das democracias liberais.

Contudo, esse processo que hoje encontra seu ápice não se deu sem obstáculos. No curso dessa história de encurtamento do social e do público, a sociedade reagiu contra o avanço do mercado. Karl Polanyi mostra como já no século XIX, a sociedade criou mecanismos e articulou-se de forma incansável para controlar tal avanço predatório – o que ele chama de contra movimento social: lutas por direitos, manifestações que expressavam o interesse de retirar certas instâncias da vida do controle do mercado e realoca-las sob a proteção social.

Pois para Karl Polanyi, se formos precisos historicamente, a “verdade é que a sociedade humana poderia ter sido aniquilada se não interviessem os contramovimentos defensivos que refrearam a ação do mecanismo autodestrutivo” (2012, p. 220).

Uma das grandezas da reconstrução histórica feita por Karl Polanyi é mostrar como a ontologia do ser concorrencial que estava na base do liberalismo clássico e que foi aprofundada por Chicago Boys como Milton Friedman e Friedrich Hayek – segundo a qual o ser humano teria propensão inata ao egoísmo, ao individualismo, à maximização de interesses e à autossuficiência, do que decorreria que o mercado seria a emanação social espontânea – não resiste à análise histórica.

Pois sempre na história moderna foram precisas fortes intervenções políticas do Estado – quase sempre violentas – para que o livre mercado fosse imposto. Da sociedade feudal, onde quase não havia livre-mercado, para a sociedade moderna mercantilista, transição que durou mais ou menos 400 anos, foi necessário o uso da força estatal.

Assim como no século XIX, paradoxalmente, foi preciso muita intervenção do Estado para garantir o funcionamento do mercado autorregulado, aquele da mão invisível, inteiramente controlado pela oferta e procura, pelos preços, que prescindiria de qualquer regulação ou planejamento estatal. O que mostra, portanto, como o livre mercado nunca foi uma emanação espontânea da sociedade, tampouco o “ser concorrencial”. Antes, tratam-se de instituições sociais impostas à força – resultado de escolhas políticas deliberadas.

Portanto, vê-se que o que na verdade foi uma emanação espontânea, longe de ser a subordinação da sociedade à lógica mercantil de maximização de lucros, foi a reação da sociedade contra esse processo. Pois não é “natural” que o mercado colonize e subordine a sociedade à sua lógica. O livre-mercado não é natural – mostra Karl Polanyi – mas o são as relações de solidariedade e cooperação por meio de vínculos afetivos e sociais. Por ser anti-natural, portanto, é que o mercado precisou ser imposto à força pelo Estado.

Daí Karl Polanyi debruçar-se sobre os trabalhos de Marcel Mauss acerca das sociedades indígenas tradicionais do Dom, em que, não apenas as relações de solidariedade prevaleciam, mas onde as relações mercantis concorrências eram vistas com certa hostilidade e preocupação por poderem atrapalhar a harmonia social.

O século XIX, este da ascensão da doutrina liberal que ganha os corações e mentes dos homens de negócios e de grandes políticos na Europa, viu a natureza, que a princípio não é uma mercadoria, pois não é produzida para ser vendida no mercado, ser transformada numa. Com ela também se estabeleceu uma relação mercantil porque, com o advento da revolução industrial, a indústria precisou tê-la como recurso, matéria-prima.

A natureza precisou assim ser comercializada para que o mercado autorregulado funcionasse. Antes, tanto no feudalismo, quanto no mercantilismo, vigoravam em relação a ela outros modos de relação – de proteção, controle do poder público sobre ela. Isso porque “era universalmente partilhada a hostilidade à ideia de comercialização do trabalho e da terra (natureza) – a hostilidade, o mesmo é dizer, à condição necessária de uma economia de mercado” (idem, p. 213).

Tal como as demais esferas da vida social, a natureza foi também ela vítima do avanço predatório do mercado. No entanto, como mostrou Nancy Fraser, esse avanço do capital sobre a sociedade atesta seu caráter canibal. Isto pois, por trás desse avanço predatório, jaz um truque: instituir uma divisão que destitui de qualquer valor social certos domínios, suportes vitais – tornando-os assim expropriáveis e gratuitos – suportes que são sua condição de possibilidade pois são a base material da exploração no interior do mundo do trabalho – donde emerge a mais-valia.

Com efeito, a natureza não-humana – fonte e escoadouro da produção – é um desses suportes. Mas poderíamos citar outros: o trabalho doméstico de cuidado e reprodução da força de trabalho – sustentação de lares, famílias e comunidades – feito principalmente por mulheres –, povos – negros, migrantes, indígenas, quilombolas, que são minorizados, racializados de modo que seu trabalho e suas riquezas sejam continuamente expropriadas – como ocorre com a extração de metais preciosos no Congo, por exemplo, que servem de matéria-prima para a produção dos Iphones da Apple ou ainda, em solo nacional, leis como a do Marco temporal e a PL da devastação recentemente aprovadas, que chancelam juridicamente esse tipo de expropriação.

Portanto, se na exploração, no interior do mundo do trabalho – esfera das aparentes “trocas justas entre sujeitos de direitos iguais” – o capital se apropria do tempo de trabalho excedente, remunerando os trabalhadores pelo tempo de trabalho necessário na forma de salário, nas esferas de expropriação, trata-se do confisco bruto de bens alheios – trabalho, tempo, terras, minerais, vegetações – que são canalizados às empresas para que possam reduzir seus custos e aumentarem seus lucros.

No fundo, o que está em jogo é uma divisão ontológica, sacramentada e cristalizada pelo próprio direito – esta “técnica ontológica ocidental moderna” – entre cidadãos-sujeitos de direitos, de um lado, e sujeitos-coisas inerentemente violáveis, de outro. Assim fica claro como este seu canibalismo – traço singular de desestabilizar suas condições de possibilidade, – é a causa última das múltiplas e interconectadas crises contemporâneas, dentre as quais figura com destaque o colapso ecológico.

Com efeito, todas as fases do capitalismo, desde o século XIX, mantiveram essa divisão entre a economia e “os seus outros”: de um lado a esfera de produção de valor, onde ocorre a exploração do trabalho humano e obtenção do lucro e, de outro, domínios instituídos como gratuitos, expropriáveis, dos quais o primeiro depende para funcionar. A natureza é um desses “outros”. Isso é o que permite a Nancy Fraser afirmar que “mais do que uma relação com o trabalho, o capitalismo também é uma relação com a natureza, uma relação extrativa e canibal que consome cada vez mais a riqueza biofísica para acumular cada vez mais “valor” enquanto denega suas externalidades ecológicas” (2024, p. 131).

 Ou seja, o capitalismo precisa da extração infinita e gratuita da natureza para sustentar a exploração e o lucro, o que significa que sua dinâmica é incompatível com a preservação ambiental.

Esse processo de expropriação, por seu turno, não é outra coisa que a “acumulação primitiva” capitalista descrita por Karl Marx no célebre capítulo 24 de O capital – colonialismo, desposessão indígena, escravidão e transformação da força de trabalho em mercadoria no século XIX –, mas pensada como algo que não ocorre de uma vez por todas – como evento histórico originário do capitalismo – mas processo contínuo e permanente de expropriação brutal de populações humanas e não-humanas privadas de qualquer proteção política.

No entanto, como mostra Karl Polanyi, há meios de barrar este avanço do mercado sobre a sociedade. No curso da história moderna, mostra o autor, a principal forma de estabelecer barreiras e retirar certas coisas de seu controle foi a instituição de direitos. Pois estes tornam a relação menos mercantil. Quanto mais direitos, menos controle tem o mercado sobre aquilo que é possuidor de direitos, pois este está baseado na lógica da proteção, da solidariedade, da garantia do interesse público sobre determinadas instâncias.

Não por acaso, direitos sempre foram instituídos através de duras lutas políticas – como aquelas que Marx descreve no seu capítulo acerca das lutas para a redução das jornadas de trabalho na Inglaterra do século XVIII. É contra esse alastramento completo das relações mercantis como meio de garantir novas esferas de valorização do valor que se direciona à esquerda em suas lutas.

Já que tratamos da natureza não-humana, lembremos como, não por acaso, uma das demandas decisivas dos movimentos indígenas de toda a América Latina é a consagração da natureza como sujeito de direito – algo já concretizado por países como Equador e Bolívia. Tal movimento consiste, não apenas numa tentativa promissora e fundamental de incluir no interior de constituições modernas metafísicas e cosmologias historicamente silenciadas, mas um imperativo para garantir as condições de existência da sociedade humana.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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