Thiago
Toledo Leite Ferreira da Rocha: O
canibalismo do capital
A
América Latina é vítima de uma armadilha neoextrativista: o modo como está
inserida no sistema global de valorização do valor – enquanto fornecedora de
commodities –, forçou-a a tornar-se um verdadeiro buraco de extração. O Brasil
é caso exemplar disso.
Coloca
seus biomas à disposição de um agronegócio criminoso, permite a exploração de
petróleo na foz do Amazonas, institui leis como as do Marco Temporal e PL da
devastação, que não sinalizam outra coisa que o aprofundamento desta lógica
extrativista – desdobramento trágico do sentido imposto ao Brasil desde a sua
colonização, que fez dessas terras um experimento econômico onde a civilização
foi uma espécie de consequência indesejada.
O curso
dessa história fez com que hoje nos tornássemos a maior fronteira de devastação
ecológica no mundo. De 1985 até hoje, desmatamos aproximadamente 110 milhões de
hectares de vegetação nativa, área maior do que todo o território da Bolívia.
Mas, hoje, frente a catástrofe ambiental, que marca o fim da linha deste modelo
predatório, trata-se de questionar: o que nos habilitou a conviver com tamanha
destruição, e conviver com ela com tamanha insensibilidade?
Uma
resposta verdadeiramente à altura deveria ser capaz de contemplar diversos
níveis, já que a maneira como nos relacionamos com a natureza é fruto de uma
metafísica resultante da articulação histórica entre naturalismo científico,
cristianismo e capitalismo, por meio da qual a natureza foi inventada como
contraponto a liberdade e emancipação modernas. Mas fiquemos aqui apenas com o
último elemento dessa tríade pelo carácter breve dessas considerações.
Seria o
caso de lembrar, como Karl Polanyi argumentava, que há uma oposição entre
sociedade e mercado. Pois o mercado, espaço das relações de compra e venda, de
maximização de lucros, de concorrência, opõem-se às relações de solidariedade,
de proteção pública, de direitos – relações de carácter social. Assim, o teor
das relações presentes nesses domínios define-se mutuamente por oposição: lá
onde as relações de concorrência, maximização de interesses e lucros predominam
e colonizam a subjetividade, não pode haver solidariedade.
Nesse
sentido, o mercado, dizia Karl Polanyi, é antissocial, pois coloca a sociedade
em risco. Isto por duas razões: primeiro, porque as relações mercantis, quando
deixadas sem impedimentos, alastram-se e dissolvem outros tipos de relação – de
solidariedade, por exemplo. Depois, porque o mercado se apropria, consome e
degrada elementos dos quais a sociedade depende para continuar existindo. Por
isso, a sobrevivência da sociedade depende que certas coisas estejam fora do
controle do mercado, que relações extra-mercantis sejam cultivadas.
No
entanto, a história da modernidade ocidental é a história da expansão das
relações mercantis sobre as relações sociais. Sobretudo a partir do século XIX,
momento da revolução industrial, com o surgimento da doutrina liberal formulada
por Adam Smith, David Ricardo, que se torna hegemônica, princípio organizador
da sociedade, o mercado começa a colonizar todas as esferas da vida. Difunde-se
a ideia de que as intervenções estatais atrapalham e os problemas sociais
teriam que ser resolvidos pela iniciativa privada. A conhecida ideologia por
trás é a do ser concorrencial, segundo a qual o bem-comum seria fruto da busca
egoísta de interesses individuais.
O
neoliberalismo é o ponto culminante desse processo. Desde os anos 1970, quando
o grande capital se liberta das amarras do Estado de bem-estar social, a
tendência mundial – salvo exceções como China e Índia – é a de privatização da
vida social: da saúde, educação, transporte, lazer e saneamento básico. Do
avanço, portanto, das relações mercantis sobre as sociais, o que implica também
na transformação da subjetividade.
Hoje,
mesmo governos progressistas, como Lula 3, pautando suas políticas econômicas
pela austeridade fiscal e por reformas de retração de direitos, aprofundam esta
tendência global. Com efeito, a contrapartida fundamental desse processo,
dentre outras, é o completo esfacelamento do ideal de autodeterminação e
soberania popular no interior das democracias liberais.
Contudo,
esse processo que hoje encontra seu ápice não se deu sem obstáculos. No curso
dessa história de encurtamento do social e do público, a sociedade reagiu
contra o avanço do mercado. Karl Polanyi mostra como já no século XIX, a
sociedade criou mecanismos e articulou-se de forma incansável para controlar
tal avanço predatório – o que ele chama de contra movimento social: lutas por
direitos, manifestações que expressavam o interesse de retirar certas
instâncias da vida do controle do mercado e realoca-las sob a proteção social.
Pois
para Karl Polanyi, se formos precisos historicamente, a “verdade é que a
sociedade humana poderia ter sido aniquilada se não interviessem os
contramovimentos defensivos que refrearam a ação do mecanismo autodestrutivo”
(2012, p. 220).
Uma das
grandezas da reconstrução histórica feita por Karl Polanyi é mostrar como a
ontologia do ser concorrencial que estava na base do liberalismo clássico e que
foi aprofundada por Chicago Boys como Milton Friedman e Friedrich Hayek –
segundo a qual o ser humano teria propensão inata ao egoísmo, ao
individualismo, à maximização de interesses e à autossuficiência, do que
decorreria que o mercado seria a emanação social espontânea – não resiste à
análise histórica.
Pois
sempre na história moderna foram precisas fortes intervenções políticas do
Estado – quase sempre violentas – para que o livre mercado fosse imposto. Da
sociedade feudal, onde quase não havia livre-mercado, para a sociedade moderna
mercantilista, transição que durou mais ou menos 400 anos, foi necessário o uso
da força estatal.
Assim
como no século XIX, paradoxalmente, foi preciso muita intervenção do Estado
para garantir o funcionamento do mercado autorregulado, aquele da mão
invisível, inteiramente controlado pela oferta e procura, pelos preços, que
prescindiria de qualquer regulação ou planejamento estatal. O que mostra,
portanto, como o livre mercado nunca foi uma emanação espontânea da sociedade,
tampouco o “ser concorrencial”. Antes, tratam-se de instituições sociais
impostas à força – resultado de escolhas políticas deliberadas.
Portanto,
vê-se que o que na verdade foi uma emanação espontânea, longe de ser a
subordinação da sociedade à lógica mercantil de maximização de lucros, foi a
reação da sociedade contra esse processo. Pois não é “natural” que o mercado
colonize e subordine a sociedade à sua lógica. O livre-mercado não é natural –
mostra Karl Polanyi – mas o são as relações de solidariedade e cooperação por
meio de vínculos afetivos e sociais. Por ser anti-natural, portanto, é que o
mercado precisou ser imposto à força pelo Estado.
Daí
Karl Polanyi debruçar-se sobre os trabalhos de Marcel Mauss acerca das
sociedades indígenas tradicionais do Dom, em que, não apenas as relações de
solidariedade prevaleciam, mas onde as relações mercantis concorrências eram
vistas com certa hostilidade e preocupação por poderem atrapalhar a harmonia
social.
O
século XIX, este da ascensão da doutrina liberal que ganha os corações e mentes
dos homens de negócios e de grandes políticos na Europa, viu a natureza, que a
princípio não é uma mercadoria, pois não é produzida para ser vendida no
mercado, ser transformada numa. Com ela também se estabeleceu uma relação
mercantil porque, com o advento da revolução industrial, a indústria precisou
tê-la como recurso, matéria-prima.
A
natureza precisou assim ser comercializada para que o mercado autorregulado
funcionasse. Antes, tanto no feudalismo, quanto no mercantilismo, vigoravam em
relação a ela outros modos de relação – de proteção, controle do poder público
sobre ela. Isso porque “era universalmente partilhada a hostilidade à ideia de
comercialização do trabalho e da terra (natureza) – a hostilidade, o mesmo é
dizer, à condição necessária de uma economia de mercado” (idem, p. 213).
Tal
como as demais esferas da vida social, a natureza foi também ela vítima do
avanço predatório do mercado. No entanto, como mostrou Nancy Fraser, esse
avanço do capital sobre a sociedade atesta seu caráter canibal. Isto pois, por
trás desse avanço predatório, jaz um truque: instituir uma divisão que destitui
de qualquer valor social certos domínios, suportes vitais – tornando-os assim
expropriáveis e gratuitos – suportes que são sua condição de possibilidade pois
são a base material da exploração no interior do mundo do trabalho – donde
emerge a mais-valia.
Com
efeito, a natureza não-humana – fonte e escoadouro da produção – é um desses
suportes. Mas poderíamos citar outros: o trabalho doméstico de cuidado e
reprodução da força de trabalho – sustentação de lares, famílias e comunidades
– feito principalmente por mulheres –, povos – negros, migrantes, indígenas,
quilombolas, que são minorizados, racializados de modo que seu trabalho e suas
riquezas sejam continuamente expropriadas – como ocorre com a extração de
metais preciosos no Congo, por exemplo, que servem de matéria-prima para a
produção dos Iphones da Apple ou ainda, em solo nacional, leis como a do Marco
temporal e a PL da devastação recentemente aprovadas, que chancelam
juridicamente esse tipo de expropriação.
Portanto,
se na exploração, no interior do mundo do trabalho – esfera das aparentes
“trocas justas entre sujeitos de direitos iguais” – o capital se apropria do
tempo de trabalho excedente, remunerando os trabalhadores pelo tempo de
trabalho necessário na forma de salário, nas esferas de expropriação, trata-se
do confisco bruto de bens alheios – trabalho, tempo, terras, minerais,
vegetações – que são canalizados às empresas para que possam reduzir seus
custos e aumentarem seus lucros.
No
fundo, o que está em jogo é uma divisão ontológica, sacramentada e cristalizada
pelo próprio direito – esta “técnica ontológica ocidental moderna” – entre
cidadãos-sujeitos de direitos, de um lado, e sujeitos-coisas inerentemente
violáveis, de outro. Assim fica claro como este seu canibalismo – traço
singular de desestabilizar suas condições de possibilidade, – é a causa última
das múltiplas e interconectadas crises contemporâneas, dentre as quais figura
com destaque o colapso ecológico.
Com
efeito, todas as fases do capitalismo, desde o século XIX, mantiveram essa
divisão entre a economia e “os seus outros”: de um lado a esfera de produção de
valor, onde ocorre a exploração do trabalho humano e obtenção do lucro e, de
outro, domínios instituídos como gratuitos, expropriáveis, dos quais o primeiro
depende para funcionar. A natureza é um desses “outros”. Isso é o que permite a
Nancy Fraser afirmar que “mais do que uma relação com o trabalho, o capitalismo
também é uma relação com a natureza, uma relação extrativa e canibal que
consome cada vez mais a riqueza biofísica para acumular cada vez mais “valor”
enquanto denega suas externalidades ecológicas” (2024, p. 131).
Ou seja, o capitalismo precisa da extração
infinita e gratuita da natureza para sustentar a exploração e o lucro, o que
significa que sua dinâmica é incompatível com a preservação ambiental.
Esse
processo de expropriação, por seu turno, não é outra coisa que a “acumulação
primitiva” capitalista descrita por Karl Marx no célebre capítulo 24 de O
capital – colonialismo, desposessão indígena, escravidão e transformação da
força de trabalho em mercadoria no século XIX –, mas pensada como algo que não
ocorre de uma vez por todas – como evento histórico originário do capitalismo –
mas processo contínuo e permanente de expropriação brutal de populações humanas
e não-humanas privadas de qualquer proteção política.
No
entanto, como mostra Karl Polanyi, há meios de barrar este avanço do mercado
sobre a sociedade. No curso da história moderna, mostra o autor, a principal
forma de estabelecer barreiras e retirar certas coisas de seu controle foi a
instituição de direitos. Pois estes tornam a relação menos mercantil. Quanto
mais direitos, menos controle tem o mercado sobre aquilo que é possuidor de
direitos, pois este está baseado na lógica da proteção, da solidariedade, da
garantia do interesse público sobre determinadas instâncias.
Não por
acaso, direitos sempre foram instituídos através de duras lutas políticas –
como aquelas que Marx descreve no seu capítulo acerca das lutas para a redução
das jornadas de trabalho na Inglaterra do século XVIII. É contra esse
alastramento completo das relações mercantis como meio de garantir novas
esferas de valorização do valor que se direciona à esquerda em suas lutas.
Já que
tratamos da natureza não-humana, lembremos como, não por acaso, uma das
demandas decisivas dos movimentos indígenas de toda a América Latina é a
consagração da natureza como sujeito de direito – algo já concretizado por
países como Equador e Bolívia. Tal movimento consiste, não apenas numa
tentativa promissora e fundamental de incluir no interior de constituições
modernas metafísicas e cosmologias historicamente silenciadas, mas um
imperativo para garantir as condições de existência da sociedade humana.
Fonte:
A Terra é Redonda

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