“Quando
o neoliberalismo entra em colapso, destrói mais ainda”, afirma economista
Branko Milanovic é um dos
analistas mais renomados sobre desigualdade no mundo, globalização e
capitalismo. Ele escreveu extensivamente sobre esses temas em seus livros Capitalismo
sem rivais: o futuro do sistema que domina o mundo (Todavia, 2020)
e Visões da desigualdade: da Revolução Francesa até o fim da Guerra
Fria (Todavia, 2025), bem como em The World Under Capitalism:
Observations on Economics, Politics, History, and Culture (O mundo sob
o capitalismo: observações sobre economia, política, história e cultura), uma antologia
de suas populares postagens de blog sobre esses assuntos.
A
chamada “curva do elefante” – o famoso gráfico
que analisa a distribuição global da renda, desenvolvido com Christoph Lakner em 2013 – é
talvez a melhor síntese das conquistas da globalização, como a redução geral da
desigualdade global, bem como de seus problemas subjacentes, como a ascensão de
uma elite global que não presta contas.
Em
entrevista à revista Jacobin, Bartolomeo Sala perguntou
a Milanovic sobre seu novo livro, The Great Global
Transformation: National Market Liberalism in a Multipolar World (A
grande transformação global: liberalismo de mercado nacional em um mundo
multipolar). Conversaram sobre fenômenos que Milanovic observa há
anos e que levaram ao colapso da ordem neoliberal global liderada
pelos EUA, que governou desde 1989. Olhando para o
futuro, Milanovic vê não tanto uma oportunidade para a esquerda, mas
um recrudescimento das tendências mais destrutivas do capitalismo.
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Eis a entrevista.
·
O
título é uma clara referência ao livro 'A Grande Transformação', de Karl
Polanyi. O livro começa com a famosa frase: “A civilização do século XIX entrou
em colapso. Este livro trata das origens políticas e econômicas desse evento,
assim como da grande transformação que provocou”. Seria justo dizer que 'A
Grande Transformação Global' tenta fazer com a globalização neoliberal o
que Polanyi fez com o liberalismo de mercado do século XIX, isto é, identificar
seu fracasso como a razão por trás da ascensão do fascismo?
Bem,
sim, existem semelhanças. Obviamente, no título, exceto pelo fato de que eu
adiciono a palavra “global”, porque a transformação que estamos testemunhando
hoje é verdadeiramente global. No entanto, a ideia é bastante similar. Como
você disse, o início do livro de Polanyi trata
essencialmente de entender o que aconteceu primeiro com a industrialização e
depois por que a nova ordem entrou em colapso já nas décadas de 1920 e 30. De
forma semelhante, este livro leva o leitor da década de 1970 em diante e
analisa o que eu chamo de vários desafios à dominação ocidental. Em seguida,
levanta a questão: por que as coisas mudaram? E o que mudou?
·
Você
identifica a ascensão da Ásia – especificamente da China – como o catalisador
desse recuo da globalização neoliberal, uma ortodoxia que reinou praticamente
sem contestação desde a queda do Bloco Oriental em 1989. Penso que você resume
isso muito bem quando escreve no prefácio: “A ascensão da China, possibilitada
pelo neoliberalismo global, tornou inevitável o fim do neoliberalismo global”.
De um ponto de vista puramente econômico, essa ascensão deve ser considerada
positiva, pois representa um reequilíbrio na escala global de renda. Mas também
trouxe consigo algumas consequências não intencionais, como as tensões
geopolíticas e a reação populista de direita no Ocidente.
Suponhamos
que estejamos falando com um observador benevolente. Sem saber nada sobre o
assunto, ele poderia dizer: Veja, o que aconteceu nos últimos cinquenta anos
parece, de modo geral, positivo. O PIB global triplicou. Houve maior igualdade
na renda média entre os cidadãos do mundo devido à ascensão de países populosos
como China, Índia, Indonésia e Vietnã. Além disso, uma
classe mediana global – não posso chamá-la de classe média global – certamente
emergiu. Se observarmos esses três acontecimentos, todos parecem muito
positivos.
No
entanto, quando começamos a analisar a situação, percebemos que o primeiro
problema com essa equalização de renda é que um país grande como
a China ultrapassou os Estados Unidos em PIB total em
termos de paridade do poder de compra. Isso cria um conflito geopolítico
porque, em última análise, os Estados Unidos não querem abrir mão de
sua hegemonia global e veem a China como uma rival, certamente
na Ásia, se não no mundo todo. Portanto, esses acontecimentos positivos
criam, inicialmente, conflitos no nível dos Estados-nação.
Mas
então alguém poderia dizer a este observador: observe o que acontece em termos
nacionais. Muitas pessoas perderam seus empregos e receberam salários menores.
Os capitalistas em países ricos terceirizaram serviços para o exterior. As
classes médias dos países ricos estavam insatisfeitas com a globalização e decidiram
votar em candidatos populistas. Este é o tema do livro. Como é possível que
algo que pode ser considerado positivo em termos globais – e analisei seus três
aspectos – acabe se tornando um problema tanto geopolítico quanto
nacionalmente? Devo acrescentar que isso não é nada surpreendente, pois a
ascensão da Ásia é uma mudança tão drástica que ninguém poderia
esperar que fosse absorvida sem sofrimento.
·
Juntamente
com a ascensão da Ásia, você identifica a formação de uma nova classe dominante
ou elite como o outro grande avanço decorrente de 40 anos de globalização
neoliberal, ou “Globalização II”, como você a denomina em um ensaio recente
para Jacobin, que aborda grande parte do mesmo tema do livro. Essa classe,
nascida da união (às vezes literal) entre gerentes e capitalistas, ou
capitalistas e quadros do partido, agora domina tanto a China quanto os Estados
Unidos. Penso que essa é uma observação muito interessante, pois contradiz as
narrativas à la Samuel Huntington que identificam os dois países como dois
modelos ou civilizações incomensuráveis. Além disso, você também identifica
Donald Trump, Xi Jinping e Vladimir Putin como expressões de uma reação comum
contra a ascensão deles. Como essas novas elites, ricas em capital, credenciais
e renda do trabalho – que você chama de elites “homoplêuticas” – diferem das do
passado?
Essa é
uma ótima pergunta. Penso que minha explicação inicial sobre a ascensão
da China e da Ásia foi um pouco simplista. Na realidade,
ocorreram dois acontecimentos, ambos parte do mesmo pacote neoliberal. Em
termos internacionais, houve o desenvolvimento da China e, em termos
nacionais, a criação de uma elite rica, com abundância tanto de capital quanto
de mão de obra, que deixou todos os outros em uma espécie de limbo.
Consequentemente, a ascensão de Trump em particular – porque acredito
que ele seja um caso verdadeiramente paradigmático – se explica por esses dois
desenvolvimentos, juntamente com a autopercepção daqueles que se saíram muito
bem, possuem altas qualificações e, de fato, se consideram muito trabalhadores.
Costumo
usar o livro de Daniel Markovits, A cilada da
meritocracia. Como um mito fundamental da sociedade alimenta a desigualdade (Intrínseca,
2021), quando falo sobre isso. Como disse Markovits, e o cito, os estakhanovistas [O stakhanovismo foi
um movimento nascido na União Soviética por iniciativa do
mineiro Alexei Stakhanov e que defendia o aumento da produtividade
operária com base na própria força de vontade dos trabalhadores] de hoje são
verdadeiramente capitalistas porque, no setor financeiro, por exemplo, muitas
vezes trabalham de 10 a 12 horas por dia. Eles sentem que merecem as coisas. E
também sentem que a culpa é daqueles que não tiveram sucesso. Na realidade, a
culpa é deles porque não foram inteligentes o suficiente, não estudaram o
suficiente ou não conseguiram encontrar oportunidades. Existe também esse
desprezo pelos outros cidadãos.
Estou
muito satisfeito com o meu terceiro capítulo, que você mencionou, porque ele
apresenta empiricamente as elites estadunidense e chinesa. A elite
estadunidense é uma elite “homoplêutica” com todas as características que
mencionei: são os capitalistas e os trabalhadores mais ricos, o que é uma
novidade histórica, mas também nutrem um orgulho quase calvinista pelo seu
sucesso e um desprezo pelos outros.
Por
outro lado, no caso das elites chinesas, que também se tornaram muito ricas, a
importância de pertencer ao Partido Comunista é evidente. Isso,
claro, faz todo o sentido, porque se você é um capitalista rico, precisa de
boas conexões e influência junto ao governo. Para a elite estadunidense, o
credencialismo consiste basicamente em frequentar as universidades que,
posteriormente, lhe proporcionarão um bom emprego. Para a elite chinesa, o
credencialismo é a filiação ao partido, porque garante a segurança dos seus
negócios.
·
De
um ponto de vista puramente ocidental, não seria mais preciso identificar essa
nova classe dominante, que gosta de se apresentar como uma meritocracia, mas
que na realidade é uma nova oligarquia, como a causa principal da reação
populista, em vez de culpar a China? Afinal, a deslocalização da produção não é
culpa da China (nem da Índia, nem do Brasil). Tampouco é culpa deles que os
líderes ocidentais – e aqui me refiro a centristas radicais como Emmanuel
Macron ou Keir Starmer – insistam, de forma míope, nas mesmas políticas
neoliberais falidas, em vez de redistribuir parte da riqueza que a globalização
distribuiu de forma tão desigual.
Concordo
plenamente. Acredito que é uma combinação de ambos os fatores. A China,
claro, teve sua parcela de responsabilidade. Mas, em nível nacional, também
contribuiu a teimosa recusa das elites em reconhecer que estavam perdendo apoio
popular. Estavam muito preocupadas com o próprio sucesso e cegadas pela crença
de que o mereciam. Menciono isso em meu recente post no blog, “Derrotados pela
realidade”. Tenho muitos amigos da geração baby boomer que agora estão
se aposentando e acreditam firmemente nisso. Acreditam que merecem certas
coisas e que os outros não, porque não estudaram nas escolas certas. Aliás,
diriam: claro que fazia diferença se seus pais eram ricos ou pobres, mas
qualquer um podia conseguir. Penso que tanto a ascensão
da China quanto a ascensão dessa elite neoliberal levaram à criação
de uma massa de pessoas insatisfeitas que, consequentemente, votaram contra
ela.
·
Nas
ruínas da antiga ordem neoliberal, a chegada de um novo sistema global se
anuncia. Nele, a unipolaridade e a hegemonia indiscutível dos Estados Unidos
após a Guerra Fria são substituídas pela multipolaridade, e o neoliberalismo dá
lugar ao que você chama de “liberalismo de mercado nacional”. Essa é, de fato,
a essência do livro, a “grande transformação global” à qual você se refere no
título. Seria justo dizer que não estamos testemunhando uma mudança de
paradigma, mas uma mutação em que o liberalismo dá lugar a um mercantilismo
agressivo no exterior, enquanto o neoliberalismo continua a prevalecer
internamente?
Claro.
É por isso que o subtítulo do livro é “O liberalismo de mercado nacional em um
mundo multipolar”. Todos concordamos que a globalização neoliberal chegou ao
fim. E não é só por causa de Trump. As políticas
de Joe Biden como presidente foram muito semelhantes. Então, a
questão é que tipo de sistema virá a seguir, porque todos concordamos que o
neoliberalismo, como existiu desde a década de 1990 até pelo menos 2016, mudou.
Não preciso entrar em detalhes sobre guerras comerciais, abundantes sanções
econômicas ou tarifas para falar sobre isso.
Mas o
que fica muito claro no caso Trump – e penso que
há semelhanças em outras áreas – é que as relações com outros países entraram
em um modo distintamente mercantilista. O que é o liberalismo, ou mesmo o
neoliberalismo? No quarto capítulo do livro, apresento quatro quadrantes. No
nível nacional, significa livre concorrência, impostos baixos, pouca
regulamentação e assim por diante. Na esfera social, defende liberdades
negativas, ações afirmativas e a aceitação das diferenças sexuais e raciais.
Internacionalmente, ele também tem duas faces. Em termos econômicos, defende o
livre comércio, enquanto socialmente, busca o cosmopolitismo que, em sua forma
mais pura, implicaria a livre circulação de trabalhadores e pessoas.
Analisemos
esses quatro quadrantes. Em poucas palavras, o aspecto internacional
desapareceu completamente. Trump simplesmente diz: “Não, isso não se
aplica mais”. Internamente, as liberdades negativas e a aceitação da
diversidade de pessoas e grupos também estão sob ataque. Assim, o que resta é
apenas um quadrante, o liberalismo de mercado. E, nesse aspecto, vemos
que Trump não está apenas implementando políticas neoliberais, mas as
aprofundando. Cortes de impostos, menos
regulamentação em geral, impostos mais baixos sobre o capital do que sobre o
trabalho – ele está intensificando tudo isso.
·
Você
baseia sua análise em tendências observáveis de longo prazo. No entanto, para
mim, essa nova ordem mundial que você descreve parece especialmente frágil,
vulnerável e potencialmente explosiva. Não se trata apenas de que, em um mundo
de potências rivais, o capital ainda precisa se expandir (daí as constantes
tensões geopolíticas e a beligerância). Talvez, com a exceção da China de Xi
Jinping, parece determinado a exacerbar as crises sociais criadas pela
globalização neoliberal. Isso nos leva de volta à ideia de Polanyi do
“duplo movimento”. Os perdedores da globalização não têm nada a ganhar com esse
retrocesso do neoliberalismo para dentro das fronteiras nacionais; pelo
contrário, perderão ainda mais, já que o Estado de bem-estar social será
reduzido em nome do rearmamento, e as redes de proteção social serão
privatizadas e substituídas por uma desigualdade ainda maior. Você não acha que
é apenas uma questão de tempo até que a sociedade reaja?
Observando
as políticas de Trump, tendo a esperar um aumento das desigualdades
nos Estados Unidos, já que essas políticas estão historicamente ligadas ao
aumento da desigualdade.
Ao
mesmo tempo, Trump é um demagogo. Tecnicamente, não pode concorrer a
um terceiro mandato, mas ainda assim não acho que o movimento que ele iniciou
vá desaparecer. Da mesma forma, na Europa, na França, que atualmente
atravessa uma crise governamental, provavelmente haveria um candidato da Rassemblement
National no
poder se Macron renunciasse. O mesmo acontece na Grã-Bretanha,
com o Reform UK. Na Alemanha,
houve a ascensão do Alternativa para a
Alemanha.
Portanto,
não se trata de acidentes propriamente ditos. Sou cético quanto ao que eles
podem obter. Mas ainda acho que há um elemento de elitismo, em que pessoas
insatisfeitas com o status quo aceitariam qualquer coisa para
manter as elites fora do poder, mesmo que as próprias elites não estejam
fazendo um bom trabalho.
·
Uma
omissão notável no livro é o papel das mudanças climáticas. Apesar de sua
análise perspicaz, quase presume que o mundo continuará como se nada tivesse
mudado em relação ao clima. No entanto, sabemos que isso está longe da verdade.
Qual é a sua opinião a este respeito? Será que as mudanças climáticas não se
tornarão um fator de estresse a mais em um mundo que já enfrenta crises
múltiplas cada vez mais severas?
Esta
resposta provavelmente não será muito popular, mas não acredito que as mudanças
climáticas representem um perigo da mesma magnitude e importância que os outros
fatores que mencionei.
Acredito
nas mudanças climáticas e acredito que haverá consequências. Haverá partes do
mundo em que será insuportável viver, mas há outras, especialmente
a Rússia e o Canadá, que se beneficiarão delas. Em segundo
lugar, acredito que teremos soluções tecnológicas.
Sou
velho o suficiente para me lembrar da afirmação de que somos um planeta finito
e que não há crescimento ilimitado em um planeta finito.
Podemos
ser um planeta finito, mas nosso uso de recursos é determinado pela tecnologia.
Discordo da visão de que existe uma barreira e que, uma vez atingida, o
capitalismo entrará em colapso. Mesmo assim, que sistema o substituiria? Eu
poderia entender uma redução na taxa de crescimento, já que as tecnologias
verdes exigem maior desenvolvimento tecnológico para atingir retornos menores.
Sou
bastante marxista do ponto de vista metodológico e não acredito que o
capitalismo seja um modo natural de produção, o que deixa em aberto a
possibilidade de que ele possa ser superado ou substituído por um sistema
melhor. No entanto, não tenho um plano para outro sistema.
·
Você
é um realista que não vê nenhuma alternativa ao capitalismo no horizonte a
curto prazo. No entanto, isso não significa que você não seja profundamente
crítico do capitalismo. Aliás, a conclusão de ‘A Grande Transformação Global’ é
uma verdadeira denúncia da natureza voraz do capitalismo. Seria correto dizer
que, embora você não o declare explicitamente, considera a guerra o resultado
mais provável desta conjuntura histórica? Estaríamos caminhando sonâmbulos para
mais uma tragédia?
Não
tenho tanta certeza sobre a guerra. Quer dizer, você conhece a situação atual.
Poderia acontecer agora mesmo. Mas o que eu digo no último capítulo – que tem
apenas algumas páginas, mas também argumento isso em Capitalismo sem
rivais – é que o capitalismo é essencialmente um sistema imoral. Um
sistema movido pelo interesse próprio e pelo lucro. Toda essa história de
partes interessadas e acionistas, na minha opinião, é basicamente uma bobagem.
Aliás, nesse ponto, concordo com Milton Friedman. A função de um
capitalista como agente social não é se preocupar com o meio ambiente e com
outras pessoas, mas com os acionistas e seu dinheiro. É um sistema que, como eu
disse, é amoral e mercantiliza tudo.
Esse é
outro ponto que enfatizo no livro. Existem atividades que nunca foram
mercantilizadas. Provavelmente, toda a esfera doméstica das atividades foi
mercantilizada. Provavelmente, cozinhar foi mercantilizado. Cuidar de cachorros
foi mercantilizado. Cuidar de idosos foi mercantilizado. Até mesmo a morte foi
mercantilizada. O quase desaparecimento da família é provavelmente a
consequência final disso, no sentido de que a família é definida por atividades
que, em princípio, não são comerciais.
Portanto,
quando tudo é comercializado, não é de admirar que o resultado seja um mundo de
solidão. A única citação que incluo nesse capítulo é de A sociedade do
espetáculo (Contraponto), de Guy Debord. O livro foi escrito
em 1968 e é uma obra fenomenal. É impressionante como ele previu isso. Nesse
sentido, sou muito pessimista. É um pessimismo severo, mas em uma sociedade
cada vez mais atomizada, creio que é para lá que estamos caminhando.
Fonte: Entrevista com Branko Milanovic, para
Bartolomeo Sala, em Jacobin - tradução
do Cepat, em IHU

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