Paulo
Kliass: Austeridade fiscal trilionária
A área
econômica da Esplanada dos Ministérios sempre encheu a boca para se orgulhar de
sua busca permanente pela austeridade fiscal. Desde antes da posse do terceiro
mandato de Lula à frente da Presidência da República, o que se ouvia era o
compromisso do futuro governo - que deveria marcar a ruptura com a direta e a
extrema direita desde o golpe contra Dilma em 2016 - com a pauta ditada pelo
financismo e pelos interesses da Faria Lima. Dentre tantos itens do
conservadorismo econômico, ganhava destaque o engajamento com o objetivo de
gerar recursos orçamentários para o pagamento de juros da dívida pública.
Assim, de acordo com os cânones do manual do neoliberalismo internacional
preconizado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), tal procedimento implicava
a geração de superávit primário nas contas públicas.
O
próprio Lula emitia declarações ambíguas a esse respeito. Ao mesmo tempo em que
prometia fazer mais e melhor do que nos dois primeiros mandatos, ele dizia
antes das eleições de 2022 que
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(...)
“ninguém neste mundo demonstrou mais responsabilidade fiscal do que nós. O
Brasil foi o único país do G20 que fez superávit primário durante os mandatos
meu e da Dilma. Único do mundo" (...) [GN]
Ora,
não há razão alguma para um governo que se pretende progressista, com um pé de
alguma forma ainda fincado no campo da esquerda, se vangloriar de ter realizado
tanto superávit primário. E o pior do que isto é ainda considerar como virtude
de orientação de programa governamental continuar desenvolvendo uma política
econômica de inspiração neoliberal, ancorada na austeridade fiscal e no arrocho
monetário. A título de exemplo, apenas durante os 2 primeiros mandatos de Lula,
o governo federal realizou uma despesa de R$ 2,6 trilhões para o pagamento de
juros da dívida pública. Isso representou uma média de 4,5% do PIB com esse
tipo de despesa orçamentária entre 2003 e 2010. Na verdade, esse tipo de
dispêndio é a contrapartida do esforço para realizar superávit primário.
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Recorde de despesa com juros! Nunca antes na História deste País.
Mas o
dramático é que o processo foi ainda mais agravado com o retorno de Lula ao
Palácio do Planalto em 2023. O processo de comprometimento de recursos públicos
com a esfera financeira foi aprofundado. De acordo com o mais recente Boletim
de Estatísticas Fiscais do Banco Central (BC) , a situação nunca esteve tão
ruim. Como costuma afirmar o Presidente, “nunca antes na História deste País” o
setor público gastou tanto com uma despesa tão parasita e regressiva quanto no
mês de outubro. De acordo com as informações exibidas no documento, naquele mês
foram despendidos R$ 114 bilhões com o pagamento de juros da dívida pública.
Este foi o maior valor mensal da série histórica apurada pelo órgão.
Este
volume representou uma média de R$ 5 bi por cada um dos 23 dias úteis do mês.
Uma loucura! Tanto mais impressionante se levarmos em conta o discurso do
Secretário Executivo do Ministério da Fazenda e dos órgãos da grande imprensa
de forma geral quando o Senado Federal aprovou recentemente uma medida justa e
necessária de regulamentar a aposentadoria especial para os agentes de saúde. A
narrativa que se tentava impor era de uma “pauta bomba”, “irresponsabilidade
fiscal” e por aí vai. Já o número dois de Fernando Haddad, Dario Durigan,
saiu-se com bravatas e ameaças à decisão do legislativo
(...)
“Esse texto tem um impacto muito grande para os cofres públicos. É muito ruim
do ponto de vista fiscal e não deveria avançar” (...)
Assim,
mais uma vez o ex-funcionário de umas das maiores empresas de bigtech do mundo,
a Meta (proprietária do whatsapp), reverbera o pensamento conservador na
condição de titular em exercício da pasta, uma vez que Haddad se encontrava em
viagem ao exterior. Para ele, pouco importa se a determinação de conceder a
aposentadoria especial a tais categorias já tenha sido estabelecida na própria
Constituição. Ou seja, o Projeto de Lei Complementar PLP 185/2024 votado apenas
regulamentava tal previsão. Além disso, não cabe na visão do economista de
planilha a hipótese de que o projeto possa ser muito bom do ponto de vista de
política social. Não! O único que importa para o olhar do financismo é a sua
consequência fiscal. E ponto final.
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Pauta bomba são os juros!
Algumas
avaliações catastrofistas estimavam o impacto da assim chamada “pauta bomba”
como sendo de R$ 24 bi em 10 anos. Assim, teríamos um acréscimo de despesa
orçamentária de R$ 2,4 bi a cada exercício por tal concessão às categorias que
tanto ajudaram para impedir que os números da catástrofe da pandemia fossem
ainda mais negativos. Não bastaram as 700 mil mortes provocadas em grande
medida pela atitude criminosa de Bolsonaro, com seu combo de negacionismo e
incompetência. Reconhecer a natureza de insalubridade e periculosidade das
funções de tais categorias é uma medida de justiça social.
O fato
concreto é que os números do alarmismo não resistem a uma análise mais
detalhada. O valor diário da despesa com juros em outubro equivale a 2 anos do
impacto da aposentadoria especial. Mas sobre isso ninguém fala em “pauta
bomba”, em “gastança irresponsável” ou ameaças de quebra do Estado brasileiro.
Para esse pessoal da Faria Lima, gastar a maior parte do orçamento público com
o andar de cima é promover respeito aos contratos e assegurar credibilidade à
política econômica. Já, por outro lado, fazer política pública dirigida à
maioria da população, sob qualquer hipótese, teria o significado de romper o
pacto da responsabilidade fiscal e deveria ser denunciado a todo o instante
como populismo e demagogia. Triste País, governo por uma elite tão obtusa
quanto espoliadora!
Além do
recorde de valor mensal observado em outubro com as despesas financeiras para
pagamento de juros da dívida pública, o mesmo Boletim do BC nos evidencia que
estamos com outro valor máximo para a série histórica. Trata-se do acumulado
dos últimos 12 meses para tal rubrica. Já alcançamos a marca de R$ 987 bi no
período que vai de novembro de 2024 a outubro do presente ano. Além disso,
houve um salto no que se refere à participação do volume pago de juros como
proporção do PIB. Durante o primeiro biênio do terceiro mandato de Lula o
percentual subiu para uma média anual de 6,5%, um aumento de quase 50% em
relação aos 4,5% do período 2003-2010. Caso o média do presente ano se
mantenha, atingiremos 8,2% em dezembro. Ou seja, aqui está a verdadeira gastança
irresponsável do orçamento público. Mas disso ninguém trata - nada de teto,
limite ou contingenciamento das despesas com juros.
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Que austeridade fiscal é essa?
Assim,
o que sobra da verborreia conservadora é que a narrativa da responsabilidade
fiscal não se sustenta. O governo vem acumulando um déficit nominal anual
superior a R$ 1 trilhão há um bom tempo. No entanto, a estratégia malandra de
se prender apenas ao conceito de “primário” faz com que as despesas
orçamentárias ditas financeiras não entrem no cálculo. Ora, que austeridade
fiscal é essa? Mas que responsabilidade fiscal é essa? A retórica de defesa dos
interesses do financismo bate no peito com orgulho quando se trata de ter a
suposta “coragem” de cortar gastos em saúde, em assistência social, em
educação, em previdência social, em segurança pública, em salários de
servidores, dentre tantas outras rubricas.
Mas é
necessário recolocar o debate em seus termos. Afinal, as despesas com o
pagamento de juros são tão orçamentárias quanto aquelas que se destinam ao
pagamento do Benefício de Prestação Continuada (BPC). Os dispêndios financeiros
são tão orçamentários quanto aqueles realizados com o pagamento das obrigações
do Sistema Único de Saúde (SUS). Os gastos classificados como não-primários são
tão orçamentários quantos aqueles que recebem o carimbo burocrático de
primários. Tudo é uma questão de estabelecer prioridades. O governo elege o
rigor com os gastos sociais para demonstrar seu compromisso com uma suposta
“seriedade” no trato da coisa pública. Mas deixa correr solto o volume
mastodôntico com juros. E o pior é que faz esse malabarismo retórico carregado
de desonestidade política e intelectual.
É
preciso dizer alto e em bom som: não! O Brasil não está em equilíbrio fiscal,
como pretende convencer o discurso oficialista. Estamos com déficit nominal
superior a um trilhão de reais. E nem por isso o País vai quebrar ou estamos
entrando na ante sala do apocalipse. Apresentar esse tipo de resultado nas
contas públicas não é tão problemático quanto nos faz crer o financismo de
plantão. O que precisa ser revisto de forma urgente é o foco viesado de buscar
o foco em cortar, cortar e cortar apenas nas rubricas sociais e de
investimento.
• Dívida pública versus privada. Por
Fernando Nogueira da Costa
Há três
níveis de abstração até se baixar à concretude da realidade, de maneira
analítica, para se tomar as melhores decisões práticas. A Teoria pura, na
ciência econômica abstrata, trata apenas dos fenômenos econômicos puros,
derivados da necessidade humana de lidar com a escassez de recursos para
produção, circulação (troca), distribuição (repartição), consumo e acumulação
de capital. Não considera aspectos da realidade focados em outras áreas de
conhecimento.
A
Teoria aplicada, justamente, reincorpora esses elementos, inclusive as
instituições. Antes do nível mais concreto, para informar qual é a melhor das
decisões práticas possíveis, é necessário considerar também todos os
conhecimentos da ciência política, ciência social, psicologia, história,
antropologia etc., de modo interdisciplinar, a respeito do tema em foco.
Por
exemplo, qualquer decisão prática de política econômica necessita evitar
cometer o “vício ricardiano” (originário de David Ricardo) de saltar do alto do
mais elevado edifício de abstração diretamente para o chão duro da realidade
concreta. Sem o paraquedas dessa análise transdisciplinar, no caso, do impacto
social e da viabilidade política de uma medida governamental, o tomador de
decisões (“policy-maker”) vai se estrebuchar no concreto.
A CEPAL
(Comissão Econômica para a América Latina e Caribe) foi criada, em 1948, pelo
Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, com o objetivo de incentivar a
cooperação econômica entre os seus membros.
Estabeleceu a linha-de-partida na tradição da história do pensamento
econômico latino-americano, iniciando-a com a crítica da teoria abstrata,
inspirada em estudos de casos dos países ricos: Estados Unidos e os europeus.
A
chamada “Escola de Campinas” desdobrou essa tradição ao demonstrar a
especificidade não só da América Latina, mas também da economia brasileira
perante a latino-americana, sem a generalização “institucional” da CEPAL. Pelo
contrário, combinou economia institucionalista, economia comportamental,
economia pós-keynesiana, economia evolucionária (neo-schumpeteriana), abordagem
sistêmica da complexidade etc.
A razão
das aspas ao designar a “Escola de Campinas” é fazer uma analogia com o
ocorrido com a “Escola de Estocolmo”. A
escola de pensamento econômico sueco, surgida na década de 1930, apresentou
ideias sobre macroeconomia dinâmica e intervenção estatal, para corrigir falhas
de mercado, antes da divulgação da Teoria Geral de Keynes em 1936.
Um
grupo de economistas suecos desenvolveu teorias sobre como a economia de
mercado pode ser regulada pelo Estado para corrigir falhas de mercado. Seus
principais representantes (críticos ao neoclassicismo do pensador sueco
revolucionário Knut Wicksell), como Gunnar Myrdal, Bertil Ohlin e Erik Lindahl,
deram contribuições importantes para o desenvolvimento da macroeconomia, além
de servirem à vida pública sueca e internacional.
Seus
pensamentos extrapolaram as fronteiras de Estocolmo, assim como aqui os
heterodoxos ultrapassaram os limites do campus da Unicamp. Ao influenciar a
modernização do pensamento econômico brasileiro, a “Escola de Campinas” deixou
de ser apenas de Campinas… Tornou-se social-desenvolvimentista ao influenciar
os economistas social e politicamente progressistas de todo o Brasil.
Os
suecos anteciparam muitas conclusões semelhantes às de John Maynard Keynes,
divulgadas posteriormente em inglês – e, por isso, muito mais conhecidas. Por
exemplo, sobre o papel da demanda e da oferta agregada, os suecos o trataram,
de maneira dinâmica, com o uso do método ex-ante e ex-post.
Na
nossa heterodoxia, distinguimos entre as decisões microeconômicas “antes do
evento” e os resultados macroeconômicos interativos “após o evento”. Refere-se
ao antes e depois de um fenômeno sistêmico, resultante das interações entre as
diversas decisões descentralizadas, descoordenadas e desinformadas umas das
outras, inclusive por muitas influentes ainda não terem sido tomadas.
O
desempenho coletivo no sistema não pode ser inferido apenas a partir do
entendimento do comportamento dos componentes individuais. “Sofisma da
composição” é uma falácia lógica, ocorrida quando se assume o verdadeiro para
as partes individuais de um sistema também ser verdadeiro para o todo.
Em
finanças pessoais, o paradoxo da parcimônia indica um aumento generalizado de
poupança pessoal levar a uma diminuição na demanda agregada. Haverá uma redução
na produção e/ou renda e, paradoxalmente, reduzirá a poupança futura.
A
falácia lógica nas finanças corporativas diz respeito a salário ser custo
para
empresários, mas a massa de salários ser demanda agregada. Se predominarem o
desemprego e/ou o corte de salários, diminuirá o mercado de consumo…
Sofisma
da composição nas finanças públicas, nasce de uma distinção entre as dívidas
privadas e a dívida pública. A falência é um procedimento judicial imposto
quando uma empresa não-financeira se torna insolvente, ou seja, não possui
ativos suficientes para quitar suas dívidas nos passivos. Os investidores em
suas ações ou debêntures os perderão.
Nem
todos os bancos deverão pagar todas as suas dívidas com os seus depositantes em
corrida bancária com risco sistêmico. Os bancos (não os banqueiros)
sistemicamente importantes (“grandes demais para falir”) serão salvos pelo
Banco Central como “emprestador em última instância”.
Ao
contrário dos casos de finanças pessoais e corporativas, não é verdadeira a
extrapolação feita por fiscalistas: “a dívida pública interna deve ser paga em
algum momento”. Os investidores em títulos de dívida pública, por isso,
“fiscalizariam o governo”. Dívida pública nunca é paga, sempre é rolada!
Os
fiscalistas pregam a crença na sequência milagrosa (e simplória): corte de
gastos públicos => corte de impostos => corte de dívida pública =>
corte da demanda agregada => queda da inflação => queda dos juros =>
aumento da alavancagem financeira. Esta faz sentido para agentes privados. Há
elevação da rentabilidade patrimonial pelo maior lucro operacional, resultante
da economia de escala propiciada pelo endividamento, superar as despesas
financeiras com os empréstimos tomados.
Não é o caso da dívida do setor público.
Não é
correto empregar a mesma teoria pura para tratar dívida corporativa e dívida
pública, como se fossem equivalentes, sobretudo quando a teoria parte de
economias com hegemonia de mercado acionário e capital fictício “marcado a
mercado”, como os EUA e Reino Unido. A razão é mostrada pela abordagem
estruturalista: elas operam em sistemas institucionais, macroeconômicos e
jurídicos diferentes, com funções distintas, outras hierarquias monetárias e
mecanismos de solvência diferentes, diante do caso da dívida pública
brasileira.
Em
síntese, títulos de dívida pública são soberanos, isto é, não são caloteados em
moeda nacional, emitida pelo Estado, diferentemente do endividamento externo
dolarizado. Se distinguem dos títulos representativos do passivo privado.
Aqueles são a garantia do sistema financeiro, além de serem lastros da riqueza
financeira.
A
dívida pública brasileira não é apenas um passivo concorrente com os passivos
do setor privado: ela é o ativo (forma de manutenção da riqueza) fundamental
capaz de viabilizar a própria financeirização. Portanto, não se deve usar as
mesmas teorias aplicadas a dívidas corporativas e inspiradas em mercados de
capitais desenvolvidos. Modelos importados resultam em erros analíticos e
políticos, especialmente, na compreensão de juros, risco, crescimento e
desigualdade.
Fonte:
Brasil 247/A Terra é Redonda

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