Sonhos,
ouro e a dura realidade das mulheres no garimpo ilegal do Sararé
Entrar
no garimpo é mergulhar em um Brasil forjado pelo abandono do Estado e pela
necessidade de sobrevivência. Em maio, desembarquei na rodoviária de Pontes e
Lacerda, no Mato Grosso, a menos de 500 km de Cuiabá, na fronteira com a
Bolívia. Era noite de quarta-feira, dia 29, e fazia 16 °C — frio incomum na
região. Sob garoa persistente, surgiam os primeiros contornos de uma cidade
marcada pela disputa por trabalho e por desigualdades.
Pontes
e Lacerda é uma cidade com aproximadamente 52 mil habitantes, com uma economia
que gira em torno da agropecuária. Contudo, o crescimento do garimpo ilegal
mudou a dinâmica da região e da vida moradores como Camila*, 29 anos. Quando
nos encontramos no ônibus, a caminho da cidade, ela tentava acalmar o filho de
quase dois anos. Voltavam de Cuiabá, onde o menino passou por cirurgia no
nariz. Para sustentar a família, ela mantém uma lojinha de roupas desde 2015,
quando a Serra do Caldeirão, local de garimpo na cidade, entrou na rota do
ouro.
A
partir de 2015, o local atraiu milhares de pessoas, sendo apontado como a “nova
Serra Pelada”. Caminhonetes Hilux carregadas de combustível, comida e
equipamentos circulam dia e noite em direção a Sararé, a área indigena mais
devastada do Brasil, segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), que fica na cidade. Estima-se que entre
três e cinco mil garimpeiros atuem na região.
“Num
dia, acordamos e a cidade tinha gente de Rondônia, Pará, Bolívia, Venezuela”,
contou. Muitas de suas clientes são jovens trabalhadoras sexuais, o chamado
“job”, que cresceu muito na região, conta. Em meses bons, ela chega a lucrar de
R$ 3 a R$ 4 mil com a venda de roupas. Mas, no rastro do garimpo ilegal, que
faz o dinheiro circular na região, prosperam também outros tipos de crime, como
o tráfico de drogas e o medo se tornou uma constante na vida dos moradores.
Certo dia, ela recebeu uma ligação anônima, em que lhe cobravam R$ 2 mil
mensais para garantir a segurança da loja. Decidiu denunciar à polícia e não
pagou. “Mas gelei. Funcionamos vendendo basicamente online”, diz.
Por que
isso importa?
• As mulheres que vivem em Pontes e
Lacerda, no Mato Grosso, revelam como o garimpo ilegal mudou a dinâmica da
região, gerando oportunidades, mas também violência e atraindo o crime
organizado;
• São cozinheiras, vendedoras, prostitutas
e trabalhadoras que movem as engrenagens da exploração do ouro, enquanto sonham
com dias melhores.
A
cobrança de uma taxa para garantir o funcionamento de estabelecimentos é uma
prática comum no tráfico de drogas, que já se instalou em Pontes e Lacerda.
Segundo o delegado da região, João Paulo Berté, o Primeiro Comando da Capital
(PCC) controla parte da rota internacional de entorpecentes, enquanto o Comando
Vermelho (CV) atua no comércio local.
O CV se
instalou na cidade quando o Caldeirão da Serra ganhou repercussão nacional como
a nova Serra Pelada. Hoje, a facção controla o comércio de drogas tanto na
cidade quanto dentro do garimpo, onde os preços são inflacionados: uma
garrafinha de cerveja Corona ou um maço de cigarros custam R$ 50.
“Quando
cheguei [em 2020], o CV já operava. Começaram com a venda de drogas na cidade e
dentro do garimpo, onde os preços são inflacionados, e também com a grilagem de
terras”, explica o delegado.
Segundo
ele, há indícios de que integrantes do grupo também estejam envolvidos na
exploração de ouro, embora a informação ainda não tenha sido confirmada. “Hoje
sabemos que alguns atuam como garimpeiros, mas o grande obstáculo a essa
hipótese é que o CV não tem o know how necessário. Teria de se aliar aos
garimpeiros”, afirma.
O muro
da casa de Maria Cristina*, 71 anos, é constantemente pichado com a sigla CVMT
— Comando Vermelho de Mato Grosso. Mesmo cobrindo com tinta, os pichadores
retornam. Por outro lado, ela diz que os roubos diminuíram, e andar com celular
na rua se tornou cotidiano.
Para
Mariane, 29* e Maria Cristina, “hoje em dia a economia da cidade gira mais em
torno do garimpo ilegal do que da agropecuária.” Embora não haja estatísticas
sobre o impacto do garimpo no comércio local, milhares de trabalhadores se
instalam na cidade. De acordo com os dois últimos censos do IBGE (2010 e 2022),
a população do município aumentou em 25,62%, passando de 41.386 para 52.018
habitantes. As moradoras relatam que bares e pensões se multiplicaram.
Pontes
e Lacerda é um dos principais entrepostos da atividade garimpeira, ao lado de
Conquista D’Oeste e Vila Bela da Santíssima Trindade. O ouro movimenta ruas,
feiras, lojas, bares, restaurantes e casas de prostituição, que proliferam ao
lado de igrejas evangélicas. “Os pecados são lavados no culto para serem
renovados na mesma noite nos cabarés”, diz Cristina, que vive na cidade desde
1975. A ilegalidade reacendeu a violência, segundo os moradores ouvidos pela
reportagem, que relataram assassinatos e corpos que surgem sob a ponte do rio
Sararé. De acordo com Berté, os cadáveres são deixados em pontos de fácil
acesso para evitar a entrada da polícia. “Quando entramos, as máquinas param e
todo mundo perde. Assim, ao menos conseguimos comunicar a família”, diz ele.
Em
abril, o corpo de Rute Cardoso Pereira, 27 anos, foi encontrado sob a ponte do
rio Sararé. Natural de Guajará-Mirim (RO), Rute se mudou para Pontes e Lacerda
com o marido, Isaías Ferreira, em busca de oportunidades. Ele foi o principal
suspeito do crime. Isaías teria sido morto, em represália, pelos garimpeiros.
Em
setembro, Flávia Melo Miranda Soares, 20, foi atingida por um tiro no pé,
durante uma briga entre garimpeiros e integrantes do CV pelo controle da
extração. Chegou morta ao hospital. O caso não entrou para as estatísticas
oficiais de feminicídio, mas se tornou símbolo do tipo de violência que
atravessa a vida das mulheres no garimpo do Sararé, uma das regiões de maior
extração ilegal de ouro do estado.
A
promotora da cidade, Clarisse Morais de Ávila, Pontes, no entanto, minimiza a
violência na região. Para ela, “Pontes e Lacerda como qualquer cidade do
Brasil, infelizmente, apresenta um aumento progressivo de de crimes envolvendo
violência doméstica contra a mulher. É uma realidade da sociedade brasileira,
independente de estar ligado ao garimpo ou não”.
Contudo,
um levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgado no
começo de março, coloca Mato Grosso como o Estado com a maior taxa de
feminicídios do país. Foram 2,5 mortes para cada grupo de 100 mil mulheres —
quase o dobro da média nacional, de 1,4. Em números absolutos, o estado
registrou 47 feminicídios em 2024. Os dados reforçam a tendência de crescimento
dos crimes de gênero na região, que há anos figura entre as mais violentas do
Brasil. O Ministério Público afirma que entre janeiro e agosto deste ano, já
foram contabilizados 35 casos, um aumento de 32% em relação ao mesmo período do
ano anterior.
As
mulheres que alimentam o garimpo
As
mulheres são minoria entre os garimpeiros, mas desempenham papéis centrais na
estrutura. Elas comandam pequenos comércios, restaurantes, bares, fazem a
organização dos barrancos [locais de exploração dos minérios], cozinham, lavam
roupas e louças, e aplacam a solidão dos garimpeiros.
Durante
nossa conversa, Giovana*, 41 anos, preparava a comida que seria servida a 18
trabalhadores do barranco: garimpeiros, gerente, dono da máquina, cozinheiras e
compradores de ouro.
A
cozinha improvisada ficava no “Fofoquinha”, um dos garimpos mais conhecidos do
Sararé. A vista da janela improvisada misturava céu azul e mata densa com
crateras de terra abertas pelas escavadeiras. Há um ano, Giovana assumiu o
posto para substituir uma cozinheira de férias. A colega nunca voltou. Ela
cozinha com a ajuda de Juliana, 29 anos, recém-chegada. Ela tem uma filha de
cinco anos, que ficou em Rondônia com o pai. ““Estou aqui há nove meses. Por
causa das operações policiais [contra o garimpo ilegal], fiquei muito tempo
parada”, contou.
Quando
há operações policiais, as cozinheiras acompanham os garimpeiros na fuga pela
mata, garantindo alimentação em condições precárias. “A cozinha nunca para”,
diz Emília*, 42 anos, que trabalha em outro barranco no Fofoquinha. Ela lembra
da correria durante uma batida policial num garimpo próximo ao seu: “fumaça
preta no céu, helicópteros, gente correndo com medo”, diz Emília.
Ex-professora
universitária de literatura na Venezuela, Emília ganhava cerca de R$ 200 por
mês antes de migrar. Há 10 anos no garimpo, hoje vive no Pará com o marido e
duas filhas, enquanto o filho de 13 anos permanece em Caracas. Recebe R$ 5 mil
mensais fixos para preparar cinco refeições diárias para um barranco de seis
pessoas. Do salário, sustenta também pais e irmã. “Na cidade, além de pagar
pouco, os patrões nos humilham. Como venezuelana, ouvi que devia voltar para o
meu país. Aqui estou firme”, disse, enquanto preparava empanadas de carne.
Alguns
barrancos como o de Emília, pagam salário fixo. Outros oferecem participação
nos lucros. Há, porém, uma regra comum: os trabalhadores atuam com autonomia.
Escalam turnos, definem férias e podem sair a qualquer momento, já que sempre
há interessados em ocupar as vagas. O essencial é que as máquinas não parem — e
a cozinheira é quem alimenta os homens que mantêm as engrenagens funcionando 24
horas.
No
barraco de Giovana, coxas e sobrecoxas de frango se amontoavam fritas na
panela. Apesar do improviso, a cozinha era limpa. Panelas brilhavam penduradas
em pregos da estrutura de madeira, sob um telhado de plástico branco e preto
que “ajuda a reduzir o calor escaldante”, explica. Nos últimos dias, a
temperatura variava do frio intenso ao calor de rachar.
Mesmo
em condições extremas, muitas mulheres consideram o garimpo um bom lugar para
viver — ainda que atentos aos perigos. Além dos garimpeiros e dos traficantes
de drogas, onças circulam à noite e jacarés rondam os rios. O maior temor, no
entanto, são as operações policiais. “Quando o helicóptero vem, sabemos que
eles vão destruir tudo: carros, escavadeiras, roupas, comida. E se tiver ouro,
eles levam”, relata Giovana. Ela revela que seu maior medo é morrer no garimpo:
“Só o translado para levar meu corpo para o Pará custa mais de R$ 13 mil. Não
quero que meus familiares passem por isso”.
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Dependência do garimpo atravessa gerações
Às
quatro da madrugada, Giovana prepara o café da manhã: pão fresco com manteiga,
bolo de abacaxi e café forte. As massas, feitas na véspera, seguem para o forno
quando o garimpo ainda dorme. Ao meio-dia, sob o sol estalando, começa outra
rotina: preparar as marmitas para os garimpeiros que não podem abandonar os
postos. Os que almoçam na cozinha formam fila.
Ela
chegou ao Sararé após abandonar o segundo marido, também garimpeiro, no Pará.
“Ele bebia até se tornar agressivo”, lembra. Numa noite de briga, ouviu a
ameaça: “Você merecia morrer naquela cama, com o bucho aberto”. Foi a gota
d’água. Esperou que ele dormisse, arrumou-se em silêncio e fugiu para a casa
dos pais. Mas, as ameaças se estenderam à família. O pai, recém-operado de
catarata, não podia se defender. O convite para substituir temporariamente uma
amiga cozinheira no garimpo se tornou mais do que irresistível, necessário.
O
ambiente não lhe era estranho. Desde os cinco anos, ela acompanhava os pais em
áreas de extração de ouro. É a terceira geração da família a depender do
garimpo. “Não terminei o ensino médio, só fui até o primeiro ano. No garimpo,
meus conhecimentos de dona de casa valem alguma coisa”, explica. E valem mesmo.
Em média, ela recebe R$ 10 mil por mês. “É duro, nos últimos três meses não
recebi devido a operações policiais. Mas em junho, fiz R$ 49 mil.”
Ela
conta que o garimpo é a única forma de sustentar a família. Em 2013, ao
separar-se do primeiro marido, com três filhos pequenos, precisou manter a casa
sozinha. Às vezes o ex-marido mandava R$ 200. Hoje, além dos filhos, ajuda os
pais, o irmão acidentado e, recentemente, precisou pagar uma multa de R$ 8 mil
do filho mais velho, flagrado pela polícia empinando uma moto. “Dou graças ao
garimpo. E lá se vão 35 anos que sobrevivo dele, seja pelo trabalho de meu pai
e avô, seja pelo meu.”
Com avô
garimpeiro, Giovana cresceu ouvindo histórias sobre o garimpo do Ageu, o Cumaru
e, sobretudo, Serra Pelada, no Pará, que chegou a reunir cem mil homens nos
anos 1980. Responsável por mais da metade da produção nacional de ouro na
época, Serra Pelada virou mito — as imagens de trabalhadores carregando sacos
de areia em filas intermináveis, registradas por Sebastião Salgado, correram o
mundo.
Mas o
mito terminou em tragédia. O major Curió, famoso por sua atuação violenta na
Guerrilha do Araguaia, foi enviado para desarmar os garimpeiros e abrir caminho
para a Caixa Econômica, que passou a comprar o ouro. O método foi desarmar e
emboscar. O episódio, conhecido como Massacre da Ponte de Marabá, deixou entre
50 e 80 mortos, segundo registros oficiais. Sobreviventes e a Coomigasp
(Cooperativa de Mineração dos Garimpeiros de Serra Pelada) denunciam um número
maior de desaparecidos.
Quem
acabou se dando bem na luta pelo direito de explorar a terra foi a Vale do Rio
Doce. Décadas depois, a empresa seria responsabilizada pelos dois maiores
desastres da mineração no Brasil — Mariana, em 2015, e Brumadinho, em 2019.
Para Giovana, a desigualdade é evidente: “Empresas como a Apoena (Mineração e
Comércio) podem explorar a região e a gente não. Isso é injusto.”
De
fato, em comparação às mineradoras, o dano à terra produzido por garimpeiros é
superficial. No entanto, essas operações, quando legais, geralmente envolvem
planos de mitigação e recuperação ambiental. Outro problema é o uso do mercúrio
no garimpo ilegal.
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Ciclo de exploração
Na
entrada da currutela — área em que concentra bares e cabarés no Fofoquinha —,
Cigana para diante de uma barraca do CV. Os jovens ouviam funk em alto volume e
faziam a guarda do local exibindo sorrisos confiantes. Para o delegado Berté,
há um ciclo de exploração que prende jovens ao tráfico: “Eles entram para a
facção pelo dinheiro, que nunca vem, se viciam em drogas, passam a trabalhar no
garimpo, se endividam e acabam sendo mortos lá dentro. Sem corpo, sem
preservação do local do crime, o caso acaba arquivado. São completamente
descartáveis para as lideranças da facção.”
No
primeiro cabaré em que paramos, duas jovens fumavam maconha ao lado de um
homem. Rapidamente, ele se ergueu e guardou a arma que repousava sobre o banco
de madeira. Se apresentou como demarcador de terras. Em um garimpo ilegal, no
entanto, a hipótese mais provável é que fosse grileiro.
Bruna*,
30 anos, se inclinava sobre a mesa enquanto conversava com um cliente. Antes,
seduzir a deixava envergonhada, disse; agora, a atividade fazia parte de um
plano: juntar dinheiro para abrir um mercadinho ou uma distribuidora de bebidas
em Rondônia, sua cidade natal.“O que ganhamos lá fora não nos permite futuro. O
garimpo é uma alternativa”, explica.
Técnica
em segurança, ela tinha acabado de chegar ao Sararé. Faz parte da minoria no
garimpo que conseguiu concluir o ensino médio. “A escolaridade conta pouco
aqui”, disse. Em média, Bruna atende dois clientes por noite. Em uma semana de
trabalho, já tinha faturado R$ 2 mil cobrando um grama de ouro por 40 minutos
de companhia e R$ 1 mil para passar a noite.
Todo o
dinheiro que ela ganha vai direto para a mãe, que cuida de seus dois filhos,
uma menina de 11 anos e um menino de 5. Desde o divórcio, Bruna assumiu sozinha
a responsabilidade pela casa. Já havia trabalhado em supermercados e lojas, mas
nunca conseguiu equilibrar as contas. Ao ouvir falar de melhores perspectivas
de salário por conta do Caldeirão da Serra decidiu arriscar. “Me sinto muito
vulnerável, mas quero dar um futuro diferente para os meus filhos”, diz. “Às
vezes me pergunto o que estou fazendo aqui, me expondo entre tantos homens.
Depois lembro que sou solteira. Desde a separação, que me deixou muito
deprimida, doente mesmo, parei de romantizar as relações. Para mim, não vale
tanto a pena. Estou focada em estar sozinha. Porque a mulher sozinha está
melhor”, reflete.
Na mesa
ao lado, Ju*, 29 anos, tentava se recuperar da noite anterior. Cinco pulseiras
marcavam as cervejas Coronas consumidas. Desde 2019, ela atua na prostituição
em áreas de mineração ilegal — e já acumula três anos apenas no Sararé.
“Comecei por curiosidade, depois me acostumei”, contou. O retorno financeiro é
expressivo, em 2023, ela movimentou R$ 2,5 milhões em sua conta bancária. Em um
único mês, já chegou a faturar R$ 48 mil, sendo R$ 17 mil em apenas uma semana.
A
experiência ensinou que sobreviver no garimpo exige prudência. “Aqui é saber
entrar se quiser sair. O importante é o respeito. Todo mundo anda armado e
garimpeiro não leva desaforo”, explica. Ainda assim, situações de risco são
inevitáveis. Ju lembra de quando um cliente se tornou agressivo: “Os outros
garimpeiros não deixaram ele fazer nada. Mas foi assustador.”
Ela diz
que não pretende envelhecer ali. Separada e mãe de duas crianças — uma menina
de 5 anos e um menino de 12 —, planeja abrir uma loja de conveniência. O
rendimento seria menor, mas permitiria dedicar mais tempo à família. Ju nunca
escondeu seu trabalho dos familiares. “No começo foi difícil, muito
julgamento”, contou. “Se eu tivesse cabeça, não estaria mais aqui.”
No
Sararé, a chegada de uma profissional do sexo é anunciada com fogos de
artifício. É assim que os garimpeiros são avisados. Embora exista uma rede de
comunicação interna muito estruturada, as mulheres são proibidas de acessar
esses canais. Quem explica é Cristina*, estudante da Universidade Estadual de
Mato Grosso (Unemat). Ela cresceu no garimpo, a mãe é dona de um cabaré na área
3, considerada uma das mais perigosas da região.
Há
pouco tempo, seu irmão mais velho, operador de máquina, foi ameaçado por um
traficante ao se envolver com uma jovem, preferida de um “topzão”, como ela
chama os integrantes do tráfico de drogas que também é dono de máquina. “Está
vendo aquele buraco ali? Se continuar aqui, eu te mato e te enterro hoje mesmo.
Ela é minha”, teria dito o traficante ao irmão de Cristina. Para Cristina,
chamar o Sararé de “terra sem lei” é um erro: “A lei da cidade não serve lá.
Eles têm regras próprias”.
Cigana,
a compradora de ouro
Após 24
horas circulando pelo garimpo do Fofoquinha para comprar ouro, Cigana se
preparava para deixar a região. A mochila carregada a deixava visivelmente
tensa. O lábio superior tremia de forma involuntária. “Basta saber esconder
direitinho”, justificava. Natural da Paraíba, onde viveu até os 20 anos, Cigana
ganhou fama no garimpo pela resistência. Caminhava longas distâncias entre os
pontos de extração, dormia em sacos de dormir em terrenos irregulares, tomava
banho com água de chuva em boxes improvisados com galões plásticos e sacos de
lixo, e usava a beira do rio como latrina, entre nuvens de mosquitos.
Atualmente,
embora mantenha uma casa em Pontes e Lacerda (MT), mora em Ponta Porã (MS), na
fronteira com o Paraguai, junto ao marido. Há três anos circula no Sararé, onde
além de comprar ouro passou a desempenhar papel central na rotina dos
garimpeiros: leva medicamentos, roupas, celulares, vitaminas, preservativos,
estimulantes, produtos de higiene e até perfumes e hidratantes.O trabalho exige
jogo de cintura. Ela finge não ver grileiros armados, trata integrantes do CV
com a mesma naturalidade que dedica aos donos de máquinas e evita qualquer
referência a crimes ou ao comércio de drogas. A todos dirige-se como se fossem
velhos conhecidos.
Na
noite anterior, quando se preparava para dormir, sonhou em voz alta diante do
Instagram: desejava comprar um airscooter, pequeno helicóptero individual
avaliado em 300 dólares, que julgava ideal para enfrentar os deslocamentos do
garimpo. Com o dinheiro que recebe já adquiriu uma esteira a vácuo (Body
Shape). A máquina é avaliada em cerca de R$180 mil. Além disso, iniciou a
reforma da casa em Pontes e
Pouco
antes de embarcar na lancha que a levaria a um dos pontos de saída da reserva,
Cigana trocava mensagens por WhatsApp com olheiros que monitoravam a presença
da polícia na estrada. O sistema de comunicação interno do garimpo, reconhece o
delegado Berté, é tão eficiente que torna impossível a entrada de autoridades
sem que todos saibam. Alguns minutos depois, já dentro do carro, Cigana largou
o celular e deu o veredito: “Está liberado, podemos seguir”.
Fonte:
Por Sindia Martins, da Agencia Pública

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