A
política não começa no povo, mas no desejo
A
teoria do populismo oscila entre dois polos igualmente abstratos: de um lado, a
tentativa de legitimar a entrada das massas na cena política por meio de pactos
entre Estado e sociedade; de outro, o esforço em denunciá-lo como ameaça à
ordem institucional, por seu suposto caráter antipluralista e avesso aos
controles.
Ambos
os polos partem do mesmo pressuposto: o de que existe um corpo coletivo dotado
de vontade política identificável, um “povo” que quer, decide, pactua e age.
Essa
suposição, embora confortável, opera como uma ficção necessária: uma forma de
sustentar o imaginário de unidade que o campo político precisa para se narrar
como totalidade.
O
“povo” é uma invenção performativa, uma categoria sem corpo, mas com enorme
poder de mobilização simbólica. Não é o povo que produz o discurso político; é
o discurso político que produz o povo como efeito de sentido.
Cada
vez que se invoca o nome do povo, o que se mobiliza não é uma substância
empírica, mas um significante vazio, capaz de abrigar todos os conteúdos
possíveis — e, por isso mesmo, de funcionar como ponto de convergência de
desejos heterogêneos.
O
problema é que essa operação simbólica, ao transformar o desejo em vontade
geral, apaga a fissura que o constitui. Ao imaginar que a política possa ser
derivada de uma vontade coletiva — como se houvesse um centro de gravidade
comum que unisse indivíduos em torno de um querer idêntico —, o pensamento
político cai na armadilha da representação: ele supõe que o desejo possa ser
traduzido em vontade e que essa vontade possa ser, por sua vez,
institucionalizada. Mas o desejo não é coletivo, nem pode ser traduzido. Ele
circula, escapa, contradiz, resiste.
Supor
que o desejo possa ser traduzido em vontade é o ponto cego de toda teoria
política moderna. Essa operação transforma o que é da ordem da falta em objeto
administrável, o que é movimento em direção em linha reta. A vontade pretende
saber o que quer, o desejo jamais. O primeiro projeta finalidades, o segundo
sustenta o vazio.
Ao
converter o desejo em vontade coletiva, o pensamento político não apenas
moraliza o indeterminado — impondo-lhe a coerência de um querer comum —, como
também apaga o sujeito em sua singularidade.
O
desejo, que é travessia e desencaixe, torna-se vontade de ordem, desejo de
pertencimento, demanda de sentido. O resultado é a domesticação do mal-estar, a
redução do político ao possível, e o esquecimento de que é do impossível — e
apenas dele — que o desejo se alimenta.
Por
isso o populismo é, no fundo, um espelho da própria impossibilidade da
representação. Ele aparece como sintoma da tentativa de estabilizar o que é
estruturalmente instável: o desejo social que insiste em escapar às formas do
político.
O
populismo não é o outro da democracia, mas o retorno do seu recalcado — a
irrupção daquilo que o sistema tenta conter em nome da racionalidade
institucional. Quando o discurso político perde sua capacidade de simbolizar o
mal-estar, o populismo emerge como linguagem substitutiva, um grito onde faltou
escuta.
O que
se chama “povo” é, assim, o nome que o poder dá àquilo que ele não entende, mas
precisa administrar. É a máscara que cobre o buraco deixado pela ausência de um
sujeito político plenamente representável. E é justamente essa ausência — o
fato de que não há um corpo uno capaz de desejar como um só — que inaugura a
política como campo de disputa simbólica.
Não há
povo em si; há apenas o desejo de que ele exista, desejo de unidade, desejo de
nome, desejo de ordem. E é desse desejo, e não da substância popular, que a
política começa a nascer.
Mas não
há povo. Há sujeitos. E sujeitos não se fundem em categorias. Desejo não é
soma, nem média. É furo, fratura, exceção. A política que parte do povo como
unidade simbólica já começa traindo o que a funda: o irrepresentável que a
move.
O
desejo não se organiza em coletivos; ele atravessa, desloca, tensiona. O
sujeito que deseja não cabe nos discursos que o pretendem representar. E é
precisamente por isso que qualquer teoria que postula uma vontade coletiva —
seja para defendê-la como emancipação, seja para temê-la como ameaça — fracassa
antes mesmo de começar.
O
sujeito é, antes de tudo, aquilo que falta a si mesmo. Não é uma consciência
plena que delibera, mas uma estrutura em falta que se constitui na relação com
o Outro — simbólico, social, histórico.
Ao
contrário do que a retórica democrática supõe, a reunião dos sujeitos não
produz soma de vontades, mas multiplicação de ausências. Cada um carrega um
modo singular de lidar com o que lhe falta, e é justamente nesse modo que o
desejo se manifesta.
A
política, portanto, não é o lugar onde os sujeitos se completam, mas onde se
expõem mutuamente suas incompletudes.
O
irônico nas teorias que falam em “povo” está em ignorar essa heterogeneidade
estrutural. Acreditam que a união dos indivíduos possa produzir um sujeito
coletivo dotado de coerência, quando o que se obtém é o contrário: uma colagem
de faltas, uma multiplicação de dissonâncias, um coro que jamais canta em
uníssono.
O povo
é uma invenção da linguagem, não um dado ontológico. Ele serve para recobrir o
fato de que o desejo — por definição — não é representável, e que toda
tentativa de fazê-lo coletivo conduz à violência simbólica da homogeneização.
Cada
sujeito é um recorte do desejo no campo social, um ponto de desajuste que
impede que o todo se feche. A força da política está justamente nesse
desajuste: na impossibilidade de coincidir plenamente com qualquer
representação.
O que
move a cena pública não é o consenso, mas o mal-estar. É o desconforto que os
sujeitos sentem ao se verem incluídos em algo que não os representa
integralmente. A política só se sustenta porque o desejo insiste em não
coincidir com o discurso que o tenta capturar.
Por
isso, o “povo” é menos uma entidade do que um sintoma: o esforço de colar o
desejo ao significante. Quando um líder diz falar em nome do povo, ele se
oferece como mediador da falta — promete dar corpo ao que não tem corpo, voz ao
que não fala, unidade ao que é fragmento.
E é
nessa operação que o sujeito se aliena, pois acredita que seu próprio desejo
encontra eco no desejo do outro. A política, nesse sentido, é o campo onde o
sujeito tenta escapar de sua falta projetando-a no coletivo — e é também o
lugar onde, inevitavelmente, reencontra o vazio de onde partiu.
Não há,
portanto, povo que deseje. Há sujeitos desejantes tentando sustentar a própria
falta diante do espelho de um outro que também falta. O que se chama vontade
popular é apenas o ruído resultante dessa sobreposição de silêncios.
E é
justamente por isso que a política, em vez de ser o espaço da comunhão, é o
espaço da tensão. Não há fusão possível entre desejos — apenas a frágil
convivência entre faltas.
A noção
de contrato social reforça e, inclusive, fundamenta essa ficção. Ao pressupor
sujeitos que, conscientes e equivalentes, se organizam em torno de um pacto
comum, o contratualismo escamoteia o fato de que a política emerge da
dissociação, não da coesão. O sujeito não pactua porque reconhece o outro, mas
porque não suporta o real que o outro encarna. A convivência política nasce do
mal-entendido, não do entendimento.
Desde
Hobbes até Rousseau, a ideia de contrato social buscou responder à angústia que
o encontro entre sujeitos produz. O pacto seria uma espécie de ficção
fundadora: ao renunciar a uma parcela da liberdade em troca da segurança comum,
os indivíduos criariam o Estado — um mediador capaz de conter os excessos da
natureza humana.
Mas o
que o contratualismo encobre é que essa natureza, tal como o desejo, é
estruturalmente irredutível à forma. O contrato tenta administrar o
insuportável, transformar a diferença em norma, o conflito em harmonia, a
pulsão em lei. Ele é uma tentativa de domesticar o Real — de converter o abismo
em sistema.
Na
verdade, o contrato não é um ato inaugural, mas uma narrativa retroativa que
busca dar coerência ao que já nasceu fragmentado. A sociedade não surge de um
acordo racional entre indivíduos livres e iguais; ela emerge do trauma da
convivência, da experiência de um outro que não se deixa absorver. O pacto é o
modo pelo qual o sujeito tenta sustentar a ilusão de que o campo político tem
origem em um consenso possível, quando, de fato, ele nasce do mal-estar diante
da alteridade. Pactuamos não para reconhecer o outro, mas para suportar sua
presença.
Essa
operação tem consequências éticas profundas. Ao imaginar que o contrato é
resultado de um ato de vontade consciente, o pensamento político ocidental
recobre com a linguagem da razão o que é, em essência, uma economia de defesa.
A
política não nasce do cálculo, mas do medo; não da reciprocidade, mas da
tentativa de conter o que escapa à representação. A promessa de ordem é, nesse
sentido, a máscara de uma impotência originária. Não se trata de unir o que
estava separado, mas de separar o que nunca se uniu.
O
contratualismo, ao se colocar como fundamento racional da vida em comum, apaga
o traço de impossibilidade que o sustenta. O pacto é sempre um artifício
simbólico para administrar o irrepresentável. O que se troca não são bens, mas
faltas. O que se partilha não é um interesse, mas o modo de suportar o
insuportável. Por isso, toda sociedade é uma economia de recalque: reprime o
que ameaça seu equilíbrio, e é desse recalque que a política se alimenta.
A
convivência, portanto, não é o fruto de um entendimento harmônico, mas o
resultado precário de um compromisso com o mal-entendido. O laço social não se
funda no reconhecimento mútuo, mas na aceitação de que jamais haverá
reconhecimento pleno.
Pactuar
é admitir que o outro é sempre, de algum modo, o inimigo necessário, o espelho
que reflete a própria incompletude. É essa tensão irresolúvel — e não o acordo
racional — que mantém viva a cena política.
Tampouco
as mediações institucionais resolvem esse impasse. O apego à forma, aos freios
e contrapesos, à crença de que a democracia se preserva por seus dispositivos,
alimenta a ilusão de que o desejo pode ser domado por arquitetura normativa.
Todavia,
o desejo não se dobra à forma; ele a habita como fissura. Retorna, de modo
sintomático, por onde menos se espera — não como falha do sistema, mas como
expressão de sua verdade recalcada.
O
sistema político moderno construiu, ao longo dos séculos, um aparato de
contenção baseado na suposição de que o poder pode ser controlado pelo desenho
institucional. Constituições, tribunais, parlamentos, burocracias — todos
funcionam como tentativas de garantir que o desejo não transborde, que o
excesso humano possa ser reduzido à rotina administrativa.
O
desejo, contudo, é o que insiste no intervalo entre o dever e o querer; é o que
se infiltra nas brechas da norma, o que faz do funcionamento regular uma cena
de repetição e deslocamento. Quando a forma tenta absorver tudo, o desejo
retorna como força subterrânea, rompendo os limites do discurso jurídico e as
máscaras da legitimidade.
O
desejo autoritário, por exemplo, não é uma anomalia que ameaça o equilíbrio
institucional: é o produto da própria saturação da forma. Quando o sujeito se
vê encerrado em um sistema que promete segurança, mas oferece silêncio, ele
busca na figura autoritária a fantasia de um sentido que o liberte do vazio.
O
excesso de forma produz a nostalgia do corpo — o desejo de uma presença que
decida, que diga o que é certo, que nomeie o indizível. É nesse vazio de escuta
que o autoritarismo se instala: não como ruptura com a lei, mas como gozo da
lei levada ao extremo.
A
normatividade, quando hipertrofiada, não produz ordem, mas ressentimento. O
sujeito não suporta ser administrado por uma linguagem que não o reconhece;
reage tentando encarnar ele mesmo a força que o domina. É assim que o cidadão
se torna súdito por desejo próprio: não porque seja manipulado, mas porque
deseja se livrar do fardo da indecisão. O autoritarismo é, nesse sentido, uma
forma de alívio: o repouso na crença de que alguém saberá o que ele não sabe.
Por
isso, as democracias mais sofisticadas continuam vulneráveis. Quanto mais se
multiplicam as instituições, mais se amplia a distância entre o sujeito e o
lugar do poder. A técnica ocupa o espaço do simbólico; a forma jurídica
substitui a palavra viva; o procedimento substitui a escuta. Quando o discurso
político se torna mera operação sem resto, a pulsão retorna em forma de gozo: o
ódio, a violência, a demanda de pureza, a recusa da ambiguidade.
Ao
buscar precisão conceitual para definir regimes políticos, o discurso sobre o
populismo permanece na superfície. Espera que, nomeando melhor, possa
compreender melhor. Mas nomear não é compreender. O significante só opera
porque falta, e toda tentativa de fixá-lo apaga o sujeito.
O
esforço de estabilizar o termo “populismo” revela menos um desejo de clareza
teórica e mais o medo da instabilidade que habita o desejo político. A disputa
por sua definição é, na verdade, a disputa por domesticar a falta — por
transformar em conceito o que é, essencialmente, sintoma.
As
instituições, ao tentarem dar forma ao indizível, reiteram o movimento que
desejam impedir: o retorno do desejo por outros meios. É por isso que nenhum
arranjo formal, nenhuma engenharia de pesos e contrapesos, nenhuma norma de
proteção democrática substitui o trabalho simbólico da escuta.
Sem
escuta, a forma se torna casca. E, sob essa casca, o desejo fermenta —
esperando o momento em que, já irreconhecível, volte à superfície sob o nome de
salvação.
A
política não se organiza em antagonismos entre elites e povo, nem em gradações
entre autoritarismo e democracia. Ela se organiza em torno da pergunta que não
cessa de retornar: o que quer o sujeito?
Essa
pergunta é o motor invisível de toda disputa, a força que desarranja as
categorias estáveis e que impede a política de se reduzir à gestão. Nenhum
regime escapa a ela, pois o que está em jogo não é o tipo de governo, mas o
modo como cada estrutura tenta lidar com o impossível do desejo.
O que
move alguém a aderir a um discurso, a desejar o domínio, a ceder sua autonomia,
não é passível de enquadramento sociológico ou jurídico. É uma questão de
falta, não de forma.
A
teoria pode nomear, a lei pode ordenar, o Estado pode administrar, mas o
sujeito continuará desejando — e desejando o que não pode possuir. A política
se funda nessa impossibilidade. O poder, ao tentar estabilizar o desejo, apenas
o desloca: quem deseja liberdade pode desejar também a servidão, quem clama por
igualdade pode exigir obediência, quem teme o excesso pode desejar a censura.
O
desejo não obedece à coerência moral nem à lógica racional — ele obedece à sua
própria estrutura de falta.
A
pretensão de criar uma democracia mais complexa, mais inclusiva, mais ajustada
aos tempos, continua prisioneira da crença de que o risco pode ser administrado
por meio de aperfeiçoamentos institucionais. Essa ideia parte do entendimento
de que o perigo reside nas falhas do sistema, quando ele reside no próprio
sujeito.
As
instituições são apenas superfícies de inscrição de uma inquietude mais funda:
o mal-estar de existir em meio a outros que também desejam. Nenhum pacto é
capaz de suprir essa falta; todo pacto é apenas o modo de sustentá-la sem que o
mundo desabe.
O
problema ético começa quando o sujeito, em vez de sustentar sua falta, tenta
projetá-la no outro. É assim que nascem as lógicas de exclusão, de pureza, de
ódio. A recusa do que falta em si se transforma na recusa do que difere fora de
si. O inimigo é sempre a figura do próprio vazio: o estrangeiro, o herege, o
dissidente, o minoritário. A pulsão de eliminar o outro é a pulsão de eliminar
a própria incompletude. E é por isso que as democracias sucumbem quando perdem
a capacidade de simbolizar a diferença — quando a linguagem pública deixa de
sustentar o mal-entendido e passa a exigir identidade.
Não há
saída ética que não passe pela escuta da singularidade. Escutar é admitir que o
outro não será compreendido; é sustentar a distância sem querer preenchê-la. A
escuta é o antídoto da representação, porque não pretende falar pelo outro, mas
abrir espaço para que o outro exista na diferença.
A
democracia, nesse sentido, não é o regime que dá voz ao povo, mas aquele que
suporta o silêncio do sujeito — o que não se diz, o que escapa à palavra comum,
o que resiste à unificação.
Sustentar
a falta do outro é o gesto mais radical de convivência. Implica reconhecer que
a política não se faz para o sujeito, mas a partir dele; não para incluí-lo em
um corpo maior, mas para permitir que seu desejo não seja anulado pela máquina
do coletivo.
A
escuta, portanto, não é uma técnica de diálogo: é uma ética do limite. Uma
democracia autêntica começa quando se desiste de representar o povo e se aceita
escutar o sujeito. Não para absorvê-lo, nem para compreendê-lo, mas para que
ele possa simplesmente existir — com sua falta, sua falha e sua forma singular
de desejar.
A
política, enfim, não começa no povo, mas no desejo. E é nessa origem
inassimilável, nesse ponto de não coincidência entre o querer e o poder, que se
joga o destino das formas políticas. Onde o desejo é escutado, nasce a
possibilidade de convivência; onde ele é silenciado, a forma se torna casca
vazia.
Escutar
o sujeito é aceitar o risco que funda a democracia: o de que nada garante o
comum, a não ser o próprio gesto de sustentar o que nele falta.
Fonte:
Por Eliseu Raphael Venturi, em A Terra é Redonda

Nenhum comentário:
Postar um comentário