sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

A política não começa no povo, mas no desejo

A teoria do populismo oscila entre dois polos igualmente abstratos: de um lado, a tentativa de legitimar a entrada das massas na cena política por meio de pactos entre Estado e sociedade; de outro, o esforço em denunciá-lo como ameaça à ordem institucional, por seu suposto caráter antipluralista e avesso aos controles.

Ambos os polos partem do mesmo pressuposto: o de que existe um corpo coletivo dotado de vontade política identificável, um “povo” que quer, decide, pactua e age.

Essa suposição, embora confortável, opera como uma ficção necessária: uma forma de sustentar o imaginário de unidade que o campo político precisa para se narrar como totalidade.

O “povo” é uma invenção performativa, uma categoria sem corpo, mas com enorme poder de mobilização simbólica. Não é o povo que produz o discurso político; é o discurso político que produz o povo como efeito de sentido.

Cada vez que se invoca o nome do povo, o que se mobiliza não é uma substância empírica, mas um significante vazio, capaz de abrigar todos os conteúdos possíveis — e, por isso mesmo, de funcionar como ponto de convergência de desejos heterogêneos.

O problema é que essa operação simbólica, ao transformar o desejo em vontade geral, apaga a fissura que o constitui. Ao imaginar que a política possa ser derivada de uma vontade coletiva — como se houvesse um centro de gravidade comum que unisse indivíduos em torno de um querer idêntico —, o pensamento político cai na armadilha da representação: ele supõe que o desejo possa ser traduzido em vontade e que essa vontade possa ser, por sua vez, institucionalizada. Mas o desejo não é coletivo, nem pode ser traduzido. Ele circula, escapa, contradiz, resiste.

Supor que o desejo possa ser traduzido em vontade é o ponto cego de toda teoria política moderna. Essa operação transforma o que é da ordem da falta em objeto administrável, o que é movimento em direção em linha reta. A vontade pretende saber o que quer, o desejo jamais. O primeiro projeta finalidades, o segundo sustenta o vazio.

Ao converter o desejo em vontade coletiva, o pensamento político não apenas moraliza o indeterminado — impondo-lhe a coerência de um querer comum —, como também apaga o sujeito em sua singularidade.

O desejo, que é travessia e desencaixe, torna-se vontade de ordem, desejo de pertencimento, demanda de sentido. O resultado é a domesticação do mal-estar, a redução do político ao possível, e o esquecimento de que é do impossível — e apenas dele — que o desejo se alimenta.

Por isso o populismo é, no fundo, um espelho da própria impossibilidade da representação. Ele aparece como sintoma da tentativa de estabilizar o que é estruturalmente instável: o desejo social que insiste em escapar às formas do político.

O populismo não é o outro da democracia, mas o retorno do seu recalcado — a irrupção daquilo que o sistema tenta conter em nome da racionalidade institucional. Quando o discurso político perde sua capacidade de simbolizar o mal-estar, o populismo emerge como linguagem substitutiva, um grito onde faltou escuta.

O que se chama “povo” é, assim, o nome que o poder dá àquilo que ele não entende, mas precisa administrar. É a máscara que cobre o buraco deixado pela ausência de um sujeito político plenamente representável. E é justamente essa ausência — o fato de que não há um corpo uno capaz de desejar como um só — que inaugura a política como campo de disputa simbólica.

Não há povo em si; há apenas o desejo de que ele exista, desejo de unidade, desejo de nome, desejo de ordem. E é desse desejo, e não da substância popular, que a política começa a nascer.

Mas não há povo. Há sujeitos. E sujeitos não se fundem em categorias. Desejo não é soma, nem média. É furo, fratura, exceção. A política que parte do povo como unidade simbólica já começa traindo o que a funda: o irrepresentável que a move.

O desejo não se organiza em coletivos; ele atravessa, desloca, tensiona. O sujeito que deseja não cabe nos discursos que o pretendem representar. E é precisamente por isso que qualquer teoria que postula uma vontade coletiva — seja para defendê-la como emancipação, seja para temê-la como ameaça — fracassa antes mesmo de começar.

O sujeito é, antes de tudo, aquilo que falta a si mesmo. Não é uma consciência plena que delibera, mas uma estrutura em falta que se constitui na relação com o Outro — simbólico, social, histórico.

Ao contrário do que a retórica democrática supõe, a reunião dos sujeitos não produz soma de vontades, mas multiplicação de ausências. Cada um carrega um modo singular de lidar com o que lhe falta, e é justamente nesse modo que o desejo se manifesta.

A política, portanto, não é o lugar onde os sujeitos se completam, mas onde se expõem mutuamente suas incompletudes.

O irônico nas teorias que falam em “povo” está em ignorar essa heterogeneidade estrutural. Acreditam que a união dos indivíduos possa produzir um sujeito coletivo dotado de coerência, quando o que se obtém é o contrário: uma colagem de faltas, uma multiplicação de dissonâncias, um coro que jamais canta em uníssono.

O povo é uma invenção da linguagem, não um dado ontológico. Ele serve para recobrir o fato de que o desejo — por definição — não é representável, e que toda tentativa de fazê-lo coletivo conduz à violência simbólica da homogeneização.

Cada sujeito é um recorte do desejo no campo social, um ponto de desajuste que impede que o todo se feche. A força da política está justamente nesse desajuste: na impossibilidade de coincidir plenamente com qualquer representação.

O que move a cena pública não é o consenso, mas o mal-estar. É o desconforto que os sujeitos sentem ao se verem incluídos em algo que não os representa integralmente. A política só se sustenta porque o desejo insiste em não coincidir com o discurso que o tenta capturar.

Por isso, o “povo” é menos uma entidade do que um sintoma: o esforço de colar o desejo ao significante. Quando um líder diz falar em nome do povo, ele se oferece como mediador da falta — promete dar corpo ao que não tem corpo, voz ao que não fala, unidade ao que é fragmento.

E é nessa operação que o sujeito se aliena, pois acredita que seu próprio desejo encontra eco no desejo do outro. A política, nesse sentido, é o campo onde o sujeito tenta escapar de sua falta projetando-a no coletivo — e é também o lugar onde, inevitavelmente, reencontra o vazio de onde partiu.

Não há, portanto, povo que deseje. Há sujeitos desejantes tentando sustentar a própria falta diante do espelho de um outro que também falta. O que se chama vontade popular é apenas o ruído resultante dessa sobreposição de silêncios.

E é justamente por isso que a política, em vez de ser o espaço da comunhão, é o espaço da tensão. Não há fusão possível entre desejos — apenas a frágil convivência entre faltas.

A noção de contrato social reforça e, inclusive, fundamenta essa ficção. Ao pressupor sujeitos que, conscientes e equivalentes, se organizam em torno de um pacto comum, o contratualismo escamoteia o fato de que a política emerge da dissociação, não da coesão. O sujeito não pactua porque reconhece o outro, mas porque não suporta o real que o outro encarna. A convivência política nasce do mal-entendido, não do entendimento.

Desde Hobbes até Rousseau, a ideia de contrato social buscou responder à angústia que o encontro entre sujeitos produz. O pacto seria uma espécie de ficção fundadora: ao renunciar a uma parcela da liberdade em troca da segurança comum, os indivíduos criariam o Estado — um mediador capaz de conter os excessos da natureza humana.

Mas o que o contratualismo encobre é que essa natureza, tal como o desejo, é estruturalmente irredutível à forma. O contrato tenta administrar o insuportável, transformar a diferença em norma, o conflito em harmonia, a pulsão em lei. Ele é uma tentativa de domesticar o Real — de converter o abismo em sistema.

Na verdade, o contrato não é um ato inaugural, mas uma narrativa retroativa que busca dar coerência ao que já nasceu fragmentado. A sociedade não surge de um acordo racional entre indivíduos livres e iguais; ela emerge do trauma da convivência, da experiência de um outro que não se deixa absorver. O pacto é o modo pelo qual o sujeito tenta sustentar a ilusão de que o campo político tem origem em um consenso possível, quando, de fato, ele nasce do mal-estar diante da alteridade. Pactuamos não para reconhecer o outro, mas para suportar sua presença.

Essa operação tem consequências éticas profundas. Ao imaginar que o contrato é resultado de um ato de vontade consciente, o pensamento político ocidental recobre com a linguagem da razão o que é, em essência, uma economia de defesa.

A política não nasce do cálculo, mas do medo; não da reciprocidade, mas da tentativa de conter o que escapa à representação. A promessa de ordem é, nesse sentido, a máscara de uma impotência originária. Não se trata de unir o que estava separado, mas de separar o que nunca se uniu.

O contratualismo, ao se colocar como fundamento racional da vida em comum, apaga o traço de impossibilidade que o sustenta. O pacto é sempre um artifício simbólico para administrar o irrepresentável. O que se troca não são bens, mas faltas. O que se partilha não é um interesse, mas o modo de suportar o insuportável. Por isso, toda sociedade é uma economia de recalque: reprime o que ameaça seu equilíbrio, e é desse recalque que a política se alimenta.

A convivência, portanto, não é o fruto de um entendimento harmônico, mas o resultado precário de um compromisso com o mal-entendido. O laço social não se funda no reconhecimento mútuo, mas na aceitação de que jamais haverá reconhecimento pleno.

Pactuar é admitir que o outro é sempre, de algum modo, o inimigo necessário, o espelho que reflete a própria incompletude. É essa tensão irresolúvel — e não o acordo racional — que mantém viva a cena política.

Tampouco as mediações institucionais resolvem esse impasse. O apego à forma, aos freios e contrapesos, à crença de que a democracia se preserva por seus dispositivos, alimenta a ilusão de que o desejo pode ser domado por arquitetura normativa.

Todavia, o desejo não se dobra à forma; ele a habita como fissura. Retorna, de modo sintomático, por onde menos se espera — não como falha do sistema, mas como expressão de sua verdade recalcada.

O sistema político moderno construiu, ao longo dos séculos, um aparato de contenção baseado na suposição de que o poder pode ser controlado pelo desenho institucional. Constituições, tribunais, parlamentos, burocracias — todos funcionam como tentativas de garantir que o desejo não transborde, que o excesso humano possa ser reduzido à rotina administrativa.

O desejo, contudo, é o que insiste no intervalo entre o dever e o querer; é o que se infiltra nas brechas da norma, o que faz do funcionamento regular uma cena de repetição e deslocamento. Quando a forma tenta absorver tudo, o desejo retorna como força subterrânea, rompendo os limites do discurso jurídico e as máscaras da legitimidade.

O desejo autoritário, por exemplo, não é uma anomalia que ameaça o equilíbrio institucional: é o produto da própria saturação da forma. Quando o sujeito se vê encerrado em um sistema que promete segurança, mas oferece silêncio, ele busca na figura autoritária a fantasia de um sentido que o liberte do vazio.

O excesso de forma produz a nostalgia do corpo — o desejo de uma presença que decida, que diga o que é certo, que nomeie o indizível. É nesse vazio de escuta que o autoritarismo se instala: não como ruptura com a lei, mas como gozo da lei levada ao extremo.

A normatividade, quando hipertrofiada, não produz ordem, mas ressentimento. O sujeito não suporta ser administrado por uma linguagem que não o reconhece; reage tentando encarnar ele mesmo a força que o domina. É assim que o cidadão se torna súdito por desejo próprio: não porque seja manipulado, mas porque deseja se livrar do fardo da indecisão. O autoritarismo é, nesse sentido, uma forma de alívio: o repouso na crença de que alguém saberá o que ele não sabe.

Por isso, as democracias mais sofisticadas continuam vulneráveis. Quanto mais se multiplicam as instituições, mais se amplia a distância entre o sujeito e o lugar do poder. A técnica ocupa o espaço do simbólico; a forma jurídica substitui a palavra viva; o procedimento substitui a escuta. Quando o discurso político se torna mera operação sem resto, a pulsão retorna em forma de gozo: o ódio, a violência, a demanda de pureza, a recusa da ambiguidade.

Ao buscar precisão conceitual para definir regimes políticos, o discurso sobre o populismo permanece na superfície. Espera que, nomeando melhor, possa compreender melhor. Mas nomear não é compreender. O significante só opera porque falta, e toda tentativa de fixá-lo apaga o sujeito.

O esforço de estabilizar o termo “populismo” revela menos um desejo de clareza teórica e mais o medo da instabilidade que habita o desejo político. A disputa por sua definição é, na verdade, a disputa por domesticar a falta — por transformar em conceito o que é, essencialmente, sintoma.

As instituições, ao tentarem dar forma ao indizível, reiteram o movimento que desejam impedir: o retorno do desejo por outros meios. É por isso que nenhum arranjo formal, nenhuma engenharia de pesos e contrapesos, nenhuma norma de proteção democrática substitui o trabalho simbólico da escuta.

Sem escuta, a forma se torna casca. E, sob essa casca, o desejo fermenta — esperando o momento em que, já irreconhecível, volte à superfície sob o nome de salvação.

A política não se organiza em antagonismos entre elites e povo, nem em gradações entre autoritarismo e democracia. Ela se organiza em torno da pergunta que não cessa de retornar: o que quer o sujeito?

Essa pergunta é o motor invisível de toda disputa, a força que desarranja as categorias estáveis e que impede a política de se reduzir à gestão. Nenhum regime escapa a ela, pois o que está em jogo não é o tipo de governo, mas o modo como cada estrutura tenta lidar com o impossível do desejo.

O que move alguém a aderir a um discurso, a desejar o domínio, a ceder sua autonomia, não é passível de enquadramento sociológico ou jurídico. É uma questão de falta, não de forma.

A teoria pode nomear, a lei pode ordenar, o Estado pode administrar, mas o sujeito continuará desejando — e desejando o que não pode possuir. A política se funda nessa impossibilidade. O poder, ao tentar estabilizar o desejo, apenas o desloca: quem deseja liberdade pode desejar também a servidão, quem clama por igualdade pode exigir obediência, quem teme o excesso pode desejar a censura.

O desejo não obedece à coerência moral nem à lógica racional — ele obedece à sua própria estrutura de falta.

A pretensão de criar uma democracia mais complexa, mais inclusiva, mais ajustada aos tempos, continua prisioneira da crença de que o risco pode ser administrado por meio de aperfeiçoamentos institucionais. Essa ideia parte do entendimento de que o perigo reside nas falhas do sistema, quando ele reside no próprio sujeito.

As instituições são apenas superfícies de inscrição de uma inquietude mais funda: o mal-estar de existir em meio a outros que também desejam. Nenhum pacto é capaz de suprir essa falta; todo pacto é apenas o modo de sustentá-la sem que o mundo desabe.

O problema ético começa quando o sujeito, em vez de sustentar sua falta, tenta projetá-la no outro. É assim que nascem as lógicas de exclusão, de pureza, de ódio. A recusa do que falta em si se transforma na recusa do que difere fora de si. O inimigo é sempre a figura do próprio vazio: o estrangeiro, o herege, o dissidente, o minoritário. A pulsão de eliminar o outro é a pulsão de eliminar a própria incompletude. E é por isso que as democracias sucumbem quando perdem a capacidade de simbolizar a diferença — quando a linguagem pública deixa de sustentar o mal-entendido e passa a exigir identidade.

Não há saída ética que não passe pela escuta da singularidade. Escutar é admitir que o outro não será compreendido; é sustentar a distância sem querer preenchê-la. A escuta é o antídoto da representação, porque não pretende falar pelo outro, mas abrir espaço para que o outro exista na diferença.

A democracia, nesse sentido, não é o regime que dá voz ao povo, mas aquele que suporta o silêncio do sujeito — o que não se diz, o que escapa à palavra comum, o que resiste à unificação.

Sustentar a falta do outro é o gesto mais radical de convivência. Implica reconhecer que a política não se faz para o sujeito, mas a partir dele; não para incluí-lo em um corpo maior, mas para permitir que seu desejo não seja anulado pela máquina do coletivo.

A escuta, portanto, não é uma técnica de diálogo: é uma ética do limite. Uma democracia autêntica começa quando se desiste de representar o povo e se aceita escutar o sujeito. Não para absorvê-lo, nem para compreendê-lo, mas para que ele possa simplesmente existir — com sua falta, sua falha e sua forma singular de desejar.

A política, enfim, não começa no povo, mas no desejo. E é nessa origem inassimilável, nesse ponto de não coincidência entre o querer e o poder, que se joga o destino das formas políticas. Onde o desejo é escutado, nasce a possibilidade de convivência; onde ele é silenciado, a forma se torna casca vazia.

Escutar o sujeito é aceitar o risco que funda a democracia: o de que nada garante o comum, a não ser o próprio gesto de sustentar o que nele falta.

 

Fonte: Por Eliseu Raphael Venturi, em A Terra é Redonda

 

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