O
bolsonarismo enfrenta seu próprio labirinto
A briga
pública entre os três filhos de Jair Bolsonaro (PL), Eduardo, Flávio e Carlos,
com a ex-primeira-dama Michelle e a ampla repercussão que o imbróglio teve no
meio político revela o quanto a direita brasileira depende da família e das
decisões tomadas por ela para traçar uma estratégia voltada à disputa
presidencial de 2026. A possibilidade de perda do capital político e, ao mesmo
tempo, a pressão crescente para que uma decisão seja tomada em breve para ungir
o preferido do Centrão, o governador de São Paulo Tarcísio de Freitas
(Republicanos), fez com que articulações tratadas nos bastidores acabassem
vindo à tona, expondo a movimentação errática dos familiares do ex-presidente.
Tudo
teve início quando Michelle compareceu ao evento de lançamento da candidatura
do senador Eduardo Girão (Novo) ao governo do Ceará, em Fortaleza, no domingo
(30). Na ocasião, ela criticou o deputado federal André Fernandes (PL) por
articular uma aliança da legenda em torno da candidatura de Ciro Gomes (PSDB)
ao governo do estado. “É sobre essa aliança que vocês precipitaram a fazer.
Fazer aliança com o homem que é contra o maior líder da direita (Jair
Bolsonaro), isso não dá. A pessoa continua falando que a família é de ladrão, é
de bandido. Compara o presidente Bolsonaro a ladrão de galinha. Então, não tem
como”, disse ela.
A
ex-primeira-dama se referia aos inúmeros xingamentos feitos pelo ex-governador
e ex-ministro a Jair Bolsonaro em diferentes ocasiões. “Roubar dinheiro de joia
só mostra o nível de degradação, de avacalhação da liderança brasileira.
Rachadinha, roubalheira, compra de imóveis em espécie. Tudo isso está indicando
o nível de ladrão de galinha que nós colocamos na presidência da República
Brasileira”, disse Ciro em um dos vídeos que gravou sobre o assunto. Em outras
peças e entrevistas, qualificou o ex-presidente como “genocida”, “boçal”,
“corrupto”, “quase idiota” e não poupou seus familiares.
“Bolsonaro
é quase um idiota. Conheço ele de perto (…) O Flávio comprou uma mansão de 6
milhões de reais em Brasília, é um ladrão. Eu estou acusando ele de ser ladrão.
Me processa para ver se eu não provo. O Bolsonaro é ladrão, os filhos são
ladrões, as ex-mulheres, tudo ladras”, disse o ex-ministro. Em outro vídeo, se
refere à própria Michelle sem citar seu nome. “Eu não vou falar também da
rachadinha, do dinheiro do Queiroz, na conta da tua mulher. Aliás, você
corrompeu todas as suas esposas. Tudo ladrão, Bolsonaro. Você é um dos governos
mais corruptos. Só perde para o do Lula, talvez ali, ó, um empate grande.”
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As motivações de Michelle
A
política institucional não é exatamente o melhor lugar para guardar mágoas de
declarações passadas, já que inimigos de outrora podem se tornar os aliados de
amanhã. Mas a observação de Michelle não foi feita à toa. A crítica tem,
primeiro, uma razão local. Ela apoia o nome da vereadora Priscila Costa (PL)
para uma das vagas de candidatura ao Senado. A parlamentar foi pré-candidata à
prefeitura de Fortaleza pela sigla, mas o candidato foi justamente André
Fernandes. Agora, nas negociações entre o PL, Ciro Gomes e o PSDB, o acordado
seria que o ex-senador Tasso Jereissati indicaria uma vaga ao Senado, enquanto
a segunda ficaria com o pai de André Fernandes, o deputado estadual Alcides
Fernandes (PL-CE).
Além de
sair das sombras e discordar publicamente de uma articulação que contou com a
participação do próprio presidente do PL, Valdemar Costa Neto, ela apareceu
como uma espécie de “protetora” da honra do marido, em um momento no qual
existe todo um processo de martirização de Bolsonaro pelo seu entorno e por
aliados. Ainda veste o figurino da pessoa que preserva valores que seriam mais
elevados em relação à negociação entre partidos, resgatando o ânimo da
antipolítica que levou Jair ao Planalto. Ela trouxe para si o núcleo duro do
bolsonarismo ao rejeitar uma composição com alguém que não coaduna com os
“valores” pregados pelo segmento.
E por
que isso importa? Basta não esquecer do que aconteceu nas eleições municipais
de 2024, quando o influenciador Pablo Marçal, concorrendo pelo pequeno PRTB,
quase foi ao segundo turno disputando o mesmo eleitorado do prefeito Ricardo
Nunes (MDB), que tinha a máquina e uma aliança que incluía o PL, com um vice
indicado por Bolsonaro. Mas parte do eleitorado preferiu alguém mais
identificado com os ditos valores e o espírito extremista do que aquele que
recebeu o apoio oficial (tímido, ressalte-se) do ex-presidente.
Além do
sobrenome, Michelle vem viajando o país e participando de eventos públicos como
presidenta do PL Mulher. No dia da prisão do ex-presidente, ela estava em um
desses encontros, na cidade de Caucaia (CE). Essa rotina foi intensificada a
partir do momento que Bolsonaro foi proibido de deixar Brasília, em julho,
quando a ex-primeira-dama passou a assumir viagens que seriam dele, aumentando
a frequência de postagens nas redes sociais em nome do casal. Vem agregando
redes de mulheres conservadoras que a veem como referência, além do apelo
religioso em seu discurso que atrai a simpatia de segmentos evangélicos.
Segundo
pesquisa AtlasIntel divulgada nesta terça-feira (2), Michelle tem o mesmo
percentual, em um segundo turno, que o marido e Tarcísio de Freitas, empatando,
no limite da margem de erro, com o presidente Lula. Para alguém que nunca
ocupou um cargo público e que passou boa parte de sua trajetória de uma forma
mais discreta junto a Jair Bolsonaro, ela sabe atualmente de seu potencial de
voto e tem uma retórica que agrada o núcleo duro bolsonarista, com a
possibilidade de agregar parte do eleitorado feminino, em geral refratário ao
ex-presidente. Não é pouca coisa.
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A reação
Com a
ex-primeira-dama buscando protagonismo na disputa pelo legado político do
marido e se colocando na construção de articulações regionais, os filhos do
ex-presidente ligaram o sinal de alerta e reagiram quase em ordem unida nas
redes sociais e na mídia.
“A
Michelle atropelou o próprio presidente Bolsonaro, que havia autorizado o
movimento do deputado André Fernandes no Ceará. E a forma com que ela se
dirigiu a ele, que talvez seja nossa maior liderança local, foi autoritária e
constrangedora”, disse o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), em entrevista ao
portal Metrópoles.
Nas
redes sociais, o vereador Carlos Bolsonaro (PL-RJ) disse que a aproximação com
Ciro, que deve concorrer ao governo do Ceará em 2026, foi feita com aval do
ex-presidente. “Temos que estar unidos e respeitando a liderança do meu pai,
sem deixar nos levar por outras forças”. Já o deputado federal Eduardo
Bolsonaro (PL-SP) se manifestou em publicação no X (ex-Twitter). “Meu irmão
Flávio Bolsonaro está correto. Foi injusto e desrespeitoso com o André o que
foi feito no evento. Não vou entrar no mérito de ser um bom ou mal (sic)
acordo; foi uma posição definida pelo meu pai”, postou o deputado. O vereador
carioca Carlos Bolsonaro (PL) reforçou as críticas dos irmãos. “Temos que estar
unidos e respeitando a liderança do meu pai, sem deixar nos levar por outras
forças”.
No dia
seguinte, contudo, terça-feira, Flávio foi à Superintendência da Polícia
Federal (PF), onde o pai está preso, para visitá-lo. Na saída, disse ter se
desculpado com a ex-primeira-dama. “Falei para meu pai que já me resolvi com a
Michelle, pedi desculpas a ela. Vamos ter uma reunião hoje no PL para
estabelecer uma rotina de decisões tomadas em conjunto”, pontuou.
Michelle,
por seu lado, fez uma postagem mais extensa em seu perfil no Instagram nesta
terça, na qual procura equilibrar uma postura de diálogo e uma reafirmação do
que já havia dito. “Eu respeito a opinião dos meus enteados, mas penso
diferente e tenho o direito de expressar meus pensamentos com liberdade e
sinceridade. Antes de ser uma líder política, eu sou mulher, sou mãe, sou
esposa e, se tiver que escolher entre ser política, mãe ou esposa, ficarei com
as duas últimas opções”, disse.
“Como
eu olharia nos olhos da minha filha quando ela um dia me questionasse por que
eu teria apoiado (ou não falei nada quando pessoas do meu partido apoiaram) o
homem que tanto mal fez ao pai dela? Desculpem-me; não sou assim! Acredito em
uma política diferente. Não basta derrotar o PT e a esquerda; é preciso fazê-lo
mantendo-nos fieis aos nossos valores e agirmos de maneira coerente com eles”,
afirmou ainda, concluindo pedindo “aos meus enteados que me entendam e me
perdoem”.
Embora
Eduardo ainda faça eventualmente críticas a Tarcísio de Freitas, a articulação
que envolveria de forma mais direta Flávio, já contempla o fato de não haver um
Bolsonaro na disputa pela Presidência, ainda que a intenção seja vender o apoio
da “marca” pelo preço mais caro possível, o que implica respeitar um tempo que
é muito diferente daquele almejado pelo Centrão. E para “lembrar” sempre o
governador paulista que deve lealdade ao ex-presidente, nada melhor que ocupar
uma vaga como vice em sua chapa.
Essa
também seria uma disposição da manifestação de Michelle, colocar seu nome como
uma possível vice. Politicamente, poderia agregar valor a uma candidatura do
governador paulista por conta de ser alguém que tem entrada em dois segmentos
citados acima (mulheres e evangélicos), diferentemente dos filhos do
ex-presidente e do próprio Tarcísio, que poderia continuar cortejando a Faria
Lima e vestindo seu figurino de “moderado”. Mas seria pedir demais aos filhos
do ex-presidente que abrissem mão da cabeça da chapa e ainda cedessem a
candidatura a vice para alguém que usaria o sobrenome da família.
E
talvez fosse esperar muito do próprio Jair. Conhecido por sua misoginia, em
condições normais seria difícil acreditar que ele endossaria uma candidatura de
uma mulher, mesmo como vice, para preservar seu legado político-eleitoral. Em
janeiro deste ano, chegou a falar da hipótese: “Não tenho problema, estou há 17
anos casado com ela, seria também um bom nome, tá certo? Com chance de chegar.
Obviamente ela me colocando como ministro da Casa Civil, pode ser”, disse ele,
rindo na ocasião. Contudo, na sequência, falando ao site Metrópoles, o
ex-presidente resolveu “se corrigir” afirmando que estava falando em hipóteses
quando citou Michelle “Não, tem nada negociado, nada conversado. Ela vem
candidata ao Senado aqui em Brasília. Se tivesse que botar alguém da família,
seria o Flávio [Bolsonaro], o Eduardo [Bolsonaro]”, desconversou.
Nesta
terça, com a suspensão das negociações entre o PL e Ciro Gomes, anunciada por
André Fernandes, Michelle ganhou pontos e mostrou que pode interferir no jogo.
Resta saber aonde ela pode e quer chegar.
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Falta combinar com o Centrão
Mesmo
uma solução que amarrasse Tarcísio à família Bolsonaro, como uma chapa
conjunta, poderia ser problemática para os principais apoiadores hoje da
candidatura palaciana de Tarcísio, os integrantes do Centrão.
Quem
deu esse recado, também de forma pública, foi um dos principais articuladores
do projeto Tarcísio, seu secretário de Governo e Relações Institucionais e
presidente do PSD, Gilberto Kassab. Em um evento realizado pelas consultorias
Arko Advice e Galapagos Capital nesta segunda-feira (1º), ele foi bastante
explícito.
“O
melhor candidato é o Tarcísio, se ele for candidato, meu partido vai apoiá-lo.
Mas ele tem errado. Daqui para trás, ele exagerou um pouco, ele não pode se
apresentar como bolsonarista. Ele tem que ser um líder acima de tudo, e ele vai
se apresentar”, pontuou Kassab, segundo o jornal O Estado de S. Paulo. “Não tem
nenhum sentido ele se apresentar como um candidato de direita, ele até pode ser
de direita se quiser. Ele tem que ser candidato da centro-direita, se não, pode
perder eleição.”
Entre
os partidos do Centrão que se alinharam ao discurso de extrema direita de
Bolsonaro, alguns se aliaram oficialmente ao candidato à reeleição em 2022 e
conseguiram aumentar o número de parlamentares em determinados estados, mas
também perderam margem de manobra em muitas articulações estaduais ao adotarem
uma postura sectária. No Brasil, é sempre bom lembrar, alianças regionais
historicamente são bem mais flexíveis do ponto de vista ideológico do que
sugere a disputa nacional. Por conta disso, muitos integrantes dessas legendas
hoje tentam um reposicionamento, se afastando da figura do ex-presidente, que
se tornou tóxica em termos político-eleitorais, como observa Kassab. Ainda mais
para candidatos aos Executivos de estados.
O
ex-prefeito de São Paulo é tido no meio político como alguém que sabe para onde
o vento sopra e sempre evitou uma associação mais explícita com o bolsonarismo.
Em 2022, por exemplo, liberou os filiados do PSD para apoiarem Lula ou o
ex-presidente no segundo turno. Uma eventual candidatura de um (a) integrante
da família não só bloquearia Tarcísio, que não concorreria ao Planalto sob a
pecha de “traidor”, como também forçaria a legenda de Kassab a lançar um
candidato próprio, abrindo a possibilidade de um quadro fragmentado de
candidaturas do campo da direita/extrema-direita. O leque para um segundo turno
fica mais aberto, mas a possibilidade de Lula vencer já no primeiro também
aumenta. Diante do quadro, se Bolsonaro está com a bola, o Centrão não vai ver
o jogo parado.
Fonte:
Por Glauco Faria, em Outras Palavras

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