sábado, 6 de dezembro de 2025

Machismo estrutural na medicina: ginecologistas priorizam reprodução em detrimento da saúde feminina

Apesar de ser pouco comentado, o machismo estrutural na medicina é uma realidade, de acordo com estudo desenvolvido na Universidade de Tel Aviv e divulgado na revista Medical Xpress.

Devido ao domínio masculino do campo da ciência ginecológica, a maioria das pesquisas ginecológicas se concentra no parto e na reprodução, e não na saúde e no bem-estar das mulheres.

Mapeando revistas científicas da categoria de ginecologia e obstetrícia, o estudo constatou que a maioria trata de fertilidade, gravidez, feto e parto, enquanto muitos temas muito mais críticos para a qualidade de vida da mulher, como cólicas, tensão pré-menstrual (TPM) e menopausa, recebem pouca atenção, tanto na pesquisa científica quanto na clínica.

De acordo com o artigo, publicado na revista Nature Reviews Urology, tais questões importantes, marginalizadas por séculos, incluem: doenças e danos aos músculos e nervos da pelve feminina e órgãos sexuais, prazer sexual feminino, direitos e autonomia no parto, a conexão entre o ciclo menstrual e o sistema imunológico, a menopausa e os últimos anos de vida e muito mais.

O estudo foi conduzido pela Dra. Netta Avnoon, do Departamento de Sociologia e Antropologia e da Coller School of Management da Universidade de Tel Aviv

A Dra. Avnoon afirma: “Os homens dominaram a ginecologia por quase mil anos, e sua identidade de gênero impacta tudo o que acontece nesta especialidade, incluindo design de pesquisa e práticas médicas.

Mesmo que eles não tenham consciência de seus próprios preconceitos e tenham as melhores intenções, os homens tradicionalmente consideram o corpo feminino como um objeto para produzir bebês ou satisfazer os desejos sexuais masculinos. Chegou a hora de as mulheres dominarem a disciplina que visa cuidar de sua saúde.”

A Dra. Avnoon explica que nenhuma atividade social é neutra, objetiva ou sem contexto, e a ciência e a medicina não são exceção. Inevitavelmente, posições e disposições sociais impactam as atitudes daqueles que criam ciência.

Extensos estudos históricos e feministas mostraram que a ginecologia como especialidade médica foi masculinizada há 800 anos e ainda adere aos valores patriarcais. Nos tempos antigos, as mulheres eram geralmente tratadas por mulheres especialistas, que até escreveram livros sobre o assunto, mas durante a Idade Média, essas mulheres e seus conhecimentos foram gradualmente substituídos por homens.

Desde o século XVI, a especialidade foi totalmente dominada pelos homens e, consequentemente, eram eles que determinavam quais tópicos eram “interessantes” e dignos de estudo; foram eles que estabeleceram práticas e protocolos e introduziram tratamentos, tecnologias e técnicas, muitas vezes submetendo os pacientes a práticas médicas que não são necessariamente benevolentes.

Para expor o foco real da pesquisa ginecológica hoje, em consonância com estudos feministas anteriores, a Dra. Avnoon escolheu um indicador revelador: os títulos de revistas científicas internacionais na categoria de ginecologia e obstetrícia.

Ela analisou a lista que aparece no Journal of Citation Reports, um banco de dados que fornece informações gerais e estatísticas sobre periódicos científicos em todo o mundo, e os resultados foram nítidos: das 83 revistas listadas por título na categoria, 49% são dedicadas exclusivamente às funções reprodutivas, gravidez, feto e parto; 24% concentram-se em ginecologia e obstetrícia; apenas 12% tratam de problemas de saúde dos órgãos sexuais femininos que não estão relacionados às funções reprodutivas; 6% tratam de seios; 5% tratam de cânceres ginecológicos; e apenas 4% (três periódicos) abordam a saúde da mulher antes e depois da idade reprodutiva, incluindo a menopausa.

A Dra. Avnoon observa um caso recente de viés de gênero na ginecologia: o escândalo da malha transvaginal. Em 2019, a Food and Drug Administration (na sigla em inglês FDA,  agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA)  proibiu o uso da malha transvaginal – um procedimento ginecológico comum usado desde a década de 1950 para reparar o prolapso de órgãos da pelve no compartimento vaginal anterior, que causou extensa morbidade e até 77 mortes documentadas nos EUA.

O fato expõe o fracasso de décadas da ciência ginecológica em avaliar clinicamente os resultados desse procedimento cirúrgico e revela o viés na forma como os pesquisadores apresentaram esses resultados em publicações científicas.

À luz de suas descobertas, a Dra. Avnoon agora propõe várias melhorias vitais: “A obstetrícia, com foco na fertilidade, reprodução, gravidez, feto e parto, deve ser separada da ginecologia, especialidade dedicada à saúde da mulher. Cuidar do feto, essencial por direito próprio, não deve prejudicar a saúde da mãe.

O treinamento em ginecologia deve incluir um capítulo importante de gênero e estudos feministas, e os protocolos médicos existentes devem ser completamente alterados para focar nas necessidades das próprias mulheres – em vez do que os de seus bebês, seus cônjuges ou seus médicos.

Além disso, a legislação e os procedimentos legais estão em ordem, especialmente nos tribunais de direitos humanos, para proteger o direito das mulheres à saúde e aos melhores cuidados médicos”.

Finalmente, a Dra. Avnoon diz: “Chegou a hora da ginecologia centrada na mulher. As vozes das mulheres devem ser ouvidas. Embora o número total de mulheres ginecologistas esteja aumentando (nos Estados Unidos já há mais mulheres do que homens nesta profissão), sua educação ainda é baseada em antigas tradições masculinas e chauvinistas.

É preciso treinar as profissionais e os profissionais de modo que considerem os direitos, a saúde e a sexualidade das mulheres como o foco principal da medicina feminina. Ginecologistas precisam dar maior ênfase à experiência e a autonomia da paciente em ambientes médicos e à tão necessária inovação em pesquisa, instrumentos, tecnologias, protocolos, procedimentos cirúrgicos e medicamentos.”

•        Machismo dificulta desenvolvimento de novos métodos contraceptivos masculinos

Presente na vida das mulheres desde 1960, a pílula anticoncepcional foi criada para garantir mais segurança e proteção contra a gravidez. Aliada à fertilização in vitro, desenvolvida em 1978, o método revolucionou a vida sexual humana, oferecendo um cenário de liberdade para a mulher escolher quando e de quem engravidar. A análise é do especialista em reprodução humana Rui Ferriani, professor e atual diretor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP.

Desde então, mesmo depois de 62 anos de sua criação, a pílula se desenvolveu apenas para o público feminino, sendo uma responsabilidade exclusiva das mulheres. Segundo o documento Planejamento Familiar – Um Manual Global para Profissionais e Serviços de Saúde, publicado em 2018 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), existem 20 métodos contraceptivos catalogados pelo órgão, mas apenas dois são voltados para os homens: a camisinha e a vasectomia.

Para mudar esse cenário, a pesquisadora alemã Rebecca Weiss desenvolveu, em 2021, um novo método contraceptivo voltado para os homens, que curiosamente recebeu um prêmio, mas pelo design do produto. A pesquisadora recebeu o Prêmio James Dyson Awards, conhecido mundialmente por incentivar pesquisadores a desenvolverem novos métodos que solucionem problemas. Chamada de Coso, a nova tecnologia foi premiada por apresentar uma nova forma contraceptiva aos homens, funcionando como um banho de água quente nos testículos, utilizando um ultrassom para impedir a mobilidade dos espermatozoides.

<><> Projeto ainda levará tempo para ser usado clinicamente

Segundo o professor Ferriani, o estudo “possui o princípio de qualquer método anticoncepcional masculino”, diminuindo a mobilidade do espermatozoide, e “é uma tentativa válida”, mas ainda não se pode dizer que ele será aplicado clinicamente.

Para se tornar um produto viável e disponível no mercado, segundo Ferriani, são ainda necessários “estudos em um ano para ver qual a proporção de espermatozoides que ficam imóveis”, evidenciando a eficiência do método. Portanto, avalia, é muito cedo para fazer uma previsão de lançamento do método ou ter certeza de que realmente será utilizado.

<><> Machismo cultural e medo da impotência sexual dificultam desenvolvimento

Além de todo o processo experimental na criação de métodos anticoncepcionais, o machismo cultural também afeta o desenvolvimento de novas ideias. Para o professor, “os homens não estão preocupados com a gravidez pois o efeito é na mulher” e, além disso, “há uma conotação de que fazer a anticoncepção masculina está ligada à virilidade e impotência sexual”.

Esses fatores sempre foram motivos de muita rejeição no público masculino, motivados por um cenário de cultura machista em relação à concepção, analisa Ferriani, que afirma ser a gravidez responsabilidade do casal, exigindo dos dois indivíduos a mesma preocupação.

<><> Pesquisas existem, mas faltam voluntários para testes

O professor Ferriani explica que “existem muitas pesquisas para o desenvolvimento de novos métodos”, inclusive no Brasil, mas, do ponto de vista técnico, é muito mais difícil de se desenvolver anticoncepcionais masculinos, por existir “muita resistência de grupos voluntários de homens”.

Da mesma forma que acontece com as mulheres, possíveis métodos contraceptivos masculinos podem surgir com efeitos colaterais. Mesmo com uma mudança de pensamento e mentes mais abertas, Ferriani ainda acredita ser difícil mudar esse paradigma, que muito atrasa o desenvolvimento de novas pesquisas.

 

Fonte: eCycle/Jornal da USP

 

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