Escravização
e colapso climático caminham juntos
Neste
exato momento do debate climático, importa refletir sobre a genuína conexão
entre crise climática e escravidão contemporânea, uma problemática crucial que
tem seu maior impacto em povos e comunidades, em trabalhadoras e trabalhadores,
que nunca foram escutados nem consultados.
As
atividades econômicas que, sem adequada repressão por parte do Estado, seguem
adotando práticas ilegais, são a matriz de uma combinação altamente nociva que,
ao mesmo tempo, desumaniza trabalhadores e degrada o meio ambiente. A análise
dos relatórios de fiscalização do governo federal mostra que, no Brasil,
atividades econômicas que contribuem para a emissão de gases de efeito estufa
e, portanto, para as mudanças climáticas, tais como desmatamento, produção de
carvão vegetal e pecuária bovina, têm sido historicamente o nicho principal
onde foram encontradas pessoas submetidas a formas contemporâneas de
escravidão. A ausência de oferta de empregos decentes no campo e na cidade, a
histórica exclusão do acesso à terra, a insegurança da vida em territórios cobiçados
pela grilagem ou dominados pelo avanço brutal do agro, tudo isso agrega
vulnerabilidades em milhares de pessoas cujo recurso essencial é a própria
força de trabalho, obrigando-as a aceitarem condições degradantes.
Dados
sistematizados pela Campanha Nacional da CPT “De Olho Aberto para não virar
escravo”, dão conta de 2.934 pessoas encontradas em trabalho escravo nos
primeiros dez meses de 2025. Dessas, 2.819 foram resgatadas em ações
coordenadas pela Auditoria Fiscal do Trabalho. O desrespeito aos direitos
fundamentais e às garantias de um trabalho digno seguem uma lógica de descarte
da vida, que vai desde a degradância das condições de trabalho impostas nas
empreitadas, até o trabalho exaustivo, passando pela ausência de pagamentos, o
endividamento compulsório ou a privação de liberdade. Essas condições,
agregadas a várias outras violações, formam um conjunto que coloca em risco a
saúde e a vida desses trabalhadores.
Um
exemplo: o desmatamento para a produção de carvão. Além de destruir a mata, a
atividade acaba na desumana exploração dos trabalhadores nas carvoarias, onde,
em condições precárias, devem carregar pesos extravagantes, subir escadas para
encher gaiolas, respirar uma fumaça constante, tudo isso em ritmo degradante e
exaustivo, que impacta e compromete os pulmões e a saúde. Recentemente, em
Açailândia (MA), o trabalhador Edelson Lacerda morreu após a explosão do forno
de produção de carvão vegetal. O acidente dilacerou o trabalhador, levando-o à
morte. Cabe perguntar: que ações estão sendo tomadas para que não ocorram outra
vez tais “fatalidades”? Como vem sendo tratada a responsabilização por práticas
que matam a vida da floresta e das pessoas? Como se processa a reparação dos
danos sofridos, coletivos e individuais?
Conforme
o Observatório Digital do Trabalho Escravo, as atividades que apresentam maior
índice de trabalhadores resgatados do trabalho análogo à escravidão estão
enquadradas no setor agropecuário, segmento em grande medida responsável pelo
desmatamento de florestas para a abertura de novas pastagens e áreas de
plantio. Quanto ao perfil dos trabalhadores resgatados, são homens de 18 a 44
anos, afrodescendentes em sua maioria (pardos, 42%; e pretos, 12%), analfabetos
(31%) ou com até o 5º ano incompleto (39%).
Na
esteira desse sistema de produção que não respeita nem os direitos trabalhistas
e humanos, nem as leis de proteção ambiental, os trabalhadores e trabalhadoras
são vulnerabilizados, empurrados para atividades que destroem ecossistemas, o
que, por sua vez, gera secas e desertificação. Ou seu contrário: inundações,
aumentando a vulnerabilidade social e obrigando a migrações forçadas, o que no
fim da linha pode produzir aliciamento e submissão a trabalho escravo.
Existe
uma conexão intrínseca entre destruição da floresta amazônica e trabalho
escravo. O exemplo do município de São Félix do Xingu, no Pará, é
representativo disso: ele é um dos campeões nacionais em área desmatada e, ao
mesmo tempo, campeão nacional em número de operações de resgate de trabalho
escravo e um dos campeões em número de rebanho de gado. Segundo dados da CPT de
2024, dos 2.185 conflitos no campo registrados no ano em todo o Brasil, mais da
metade (1.180) ocorreram na Amazônia Legal. A região, que compreende os sete
estados da região Norte, além de partes dos estados do Maranhão e de Mato
Grosso, tem sido afetada pelos incêndios criminosos, desmatamento ilegal e
violências contra a pessoa, tais como as ameaças de morte e tentativas de
assassinato.
<><>
Racismo ambiental
Problemáticas
como essas são necessárias de serem abordadas não só durante, como também após
a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 30), realizada
em Belém.
O
Brasil e o resto do mundo precisam urgentemente avançar na construção e
implementação de políticas públicas, sociais e de infraestrutura, que
considerem as mudanças climáticas e um dos seus efeitos mais perversos: o
racismo ambiental. Este designa o que ocorre quando, por ação ou omissão, o
poder público, instituições ou empresas negligenciam as condições de risco de
vida das populações de baixa renda, em sua maioria negras aqui no Brasil, que
se encontram em áreas de risco de desastres ambientais. Promover a justiça
climática, assim, passa a ser uma forma de combater a escravidão. Políticas
públicas como as de ordenamento territorial, reforma agrária, regularização
fundiária, construção de moradias dignas, prevenção de desastres ambientais,
promoção do trabalho digno e de produção a partir da agroecologia e da
agricultura familiar, têm que ser priorizadas pelos estados, sobretudo em
regiões mais vulneráveis.
O
Brasil é referência internacional positiva no combate ao trabalho escravo.
Porém ainda precisa de um longo caminho para consolidar seu protagonismo na
agenda climática e se tornar, para o presente e o futuro, uma referência no
combate aos crimes ambientais e na implementação de soluções que possam inibir
a mercantilização da natureza.
Em todo
esse processo é necessário escutar os territórios e respeitar a ancestralidade
dos diversos povos que milenarmente preservam e cuidam da “Casa comum”. As
falsas soluções climáticas vendidas por grandes corporações na perspectiva da
redução das emissões de gases de efeito estufa, como a compra de créditos de
carbono, têm gerado conflitos nos territórios, pois a maioria das empresas não
respeita as escutas desses territórios, uma violação aos protocolos de consulta
criados à luz da Convenção 169 da OIT. Não se encontrarão equidade e justiça
climática sem a participação das vítimas das mudanças climáticas e, como
costumam ser, também da escravidão.
Não é
possível proteger os biomas, repletos de saberes e sabores culturais, sem
proteger os territórios e os corpos dos povos indígenas, quilombolas,
comunidades tradicionais e camponesas, sem respeitar as vidas. O cuidado com as
pessoas é inseparável do cuidado com os ecossistemas: isso se torna ainda mais
significativo lá onde a floresta não é considerada como recurso para explorar,
mas como um ser (ou vários seres) com quem se relacionar.
Ao
deixar Belém, os povos e as coalizões presentes na COP30 levaram ainda um longo
percurso a ser trilhado. Se avanços significativos já foram feitos no combate
ao crime que consiste em manter pessoas em condição análoga à de escravo, o
mesmo não aconteceu na parte ambiental. Precisamos dar passos mais largos e
marcar grandes progressos diante dos índices alarmantes do desmatamento na
Amazônia e das formas extremas de degradação que afetam vários biomas no Brasil
e outras partes do mundo.
Assim
como foi a caminhada pelo clima que uniu povos do mundo inteiro na COP30, é
necessário fortalecer cada vez mais o esforço global para a proteção das
pessoas e de todos os seres que habitam nosso planeta. No que tange à relação
da escravidão com o meio ambiente, é preciso intensificar o rastreamento das
cadeias produtivas envolvidas e vedar qualquer financiamento a atividades e
empresas que se utilizam de práticas criminosas. Impõem-se, ainda, políticas de
proteção ambiental e do clima realmente eficazes, para que agendas e
compromissos assumidos pelos países não se configurem em promessas meramente
vazias.
Os
povos – que, em Belém, investiram ruas, casas e vários espaços – trouxeram
experiências de quem vive de perto violações e violências multiformes
associadas à crise climática. Porém, a força dos encantados e encantadas que
anima essas pessoas em seus territórios mostra que a luta segue em pé, que os
povos existem e resistem, cuidam dos ecossistemas, plantam, celebram rituais e
tradições, respeitando o tempo e os diversos modos de vida. E assim mantêm viva
a alegria de viver. Que as fortes palavras do saudoso Papa Francisco na
exortação apostólica Querida Amazônia continuem nos animando para continuar
caminhando e cantando as nossas lutas e que a nossa grave preocupação pela vida
do planeta nunca nos tire a alegria de esperançar.
• Cimi realiza seminário na TI
Ypoi-Triunfo sobre usufruto exclusivo e arrendamento
Nos
dias 29 e 30 de novembro foi realizado um Seminário Macro Regional organizado
pelos regionais Sul e Mato Grosso do Sul do Conselho Indigenista Missionário
(Cimi). O local escolhido foi a Terra Indígena (TI) Ypoi-Triunfo, em Paranhos
(MS).
Ypoi é
um território do povo Guarani, tendo resistido por décadas em suas retomadas.
Com a negligência do governo federal com a demarcação, Ypoi amargou um período
de fome, de ataques e de intensa violência, sendo o momento mais dramático o
assassinato dos professores Rolindo e Genivaldo Vera, em 2009.
Porém,
como exemplo de resistência e perseverança, depois de muita luta e postura
exemplar, a comunidade do Ypoi conquistou, há poucos dias atrás, a Portaria
Declaratória da TI junto ao Ministério da Justiça e Segurança Pública.
No
seminário, estiveram presentes mais de 80 pessoas vindas das aldeias próximas à
fronteira Brasil-Paraguai (inclusive representantes Guarani do Paraguai), em
especial dos territórios Nhandeva do extremo conesul do MS. Fizeram-se
presentes também lideranças gerais da Aty Guasu e um Nhanderu (rezador) vindo
do Paraná, representando os povos Guarani daquele Estado.
O tema
central foi o direito ao usufruto exclusivo das terras indígenas. Para ajudar
na reflexão do tema, contamos com as assessorias virtuais de Cleber Buzatto e
Roberto Liebgott, ambos do Cimi Sul. A articulação local e facilitação foi
feita a partir da equipe do Cimi em Dourados.
Os
Guarani reafirmaram o compromisso de libertar/demarcar todos os territórios, em
especial aqueles que ainda se encontram em situações vulneráveis sem o processo
de demarcação consolidado
O
encontro aconteceu no calor intenso das terras da fronteira e da alegria pelo
recebimento da portaria declaratória da TI Ypoi. A partir desta celebração, que
dividiu sentimentos de intensa alegria, mas também de dor pelo sangue derramado
em nome da conquista, os Guarani reafirmaram o compromisso de libertar/demarcar
todos os territórios, em especial aqueles que ainda se encontram em situações
vulneráveis sem o processo de demarcação consolidado.
Sobre o
tema do usufruto exclusivo, o exemplo de Ypoi foi reconhecido como uma
comunidade que, contra todos os assédios, continua se organizando dentro do
modo de ser Guarani, sem ceder a arrendamentos e falsas promessas do capital.
Após
intensa reflexão sobre as más práticas (arrendamentos e afins) e seus
malefícios, os Guarani reafirmaram o caminho de Marçal e de outros mártires que
consiste em viver a partir de seu próprio Ñande Reko, o modo de ser Guarani,
combatendo práticas que retirem sua soberania e gerem dependência.
Foi
para o território um lindo momento de inaugurar a casa de reza construída
recentemente pelo esforço do povo guerreiro do Ypoi. Após o seminário, sentimos
que a terra ganha fôlego, que os Guarani saem mais uma vez convictos de seu
caminho, e que os territórios que vão sendo demarcados – graças à luta direta
deste povo guerreiro – encontraram um modo de vida vinculado ao bem viver, onde
natureza e povo possam viver seguros, longe das monológicas culturas.
“Diga
ao povo que avance: AVANÇAREMOS!”
Fonte:
Por Brígida Rocha dos Santos e Francisco Alan Santos Lima, em Para ‘adiar o fim
do mundo’ | Vozes da terra na COP30 / CPT/Cimi

Nenhum comentário:
Postar um comentário