sábado, 6 de dezembro de 2025

Ricardo Queiroz Pinheiro: Sobre corruptos, sonegadores e hipocrisias

Até meados de 2025, a crítica dominante ao governo Lula orbitava sempre o mesmo ponto: faltava movimento, falta embate. A sensação de imobilismo se espalhava com rapidez, impulsionada por uma oposição estridente, lacradora e por uma imprensa que, há anos, se acostumou a narrar o país pelo brilho das conveniências de classe. Esse quadro só começou a se equilibrar quando a tentativa de rearticulação golpista — estimulada por Eduardo Bolsonaro e respaldada por Donald Trump — produziu um choque político capaz de reorganizar tensões internas e deslocar prioridades. Os algozes abriram um caminho.

A mudança ficou evidente quando a Polícia Federal começou a iluminar os bastidores financeiros onde se acumulam fraudes bilionárias, sonegação em escala industrial, lavagem de dinheiro e conexões silenciosas entre empresários, operadores políticos e grupos criminosos. As operações revelaram ainda redes de auditorias privadas usadas para mascarar desvios estruturais, consultorias internacionais contratadas para deslocar ativos ao exterior e sistemas paralelos de logística que funcionavam como corredores de escoamento para produtos sem lastro fiscal. Vieram à tona também vínculos com plataformas digitais de pagamento que serviam de ponte para ocultar transações, além de protocolos internos em grandes grupos econômicos criados especificamente para dificultar o rastreamento contábil. O que antes parecia fragmentado passou a compor um mapa coerente de interesses articulados, capaz de atravessar fronteiras setoriais e instituições com a mesma fluidez.

À medida que avançam, as investigações colocam em xeque a ladainha confortável que reduz o problema nacional à corrupção política. O moralismo anticorrupção prosperou porque oferece inimigos claros, cenas fotográficas, gabinetes revirados — um drama fácil de consumir. Mas ao ocupar o centro da explicação, desviou o olhar de onde o impacto realmente se produz: nos arranjos que combinam evasão fiscal, manobras financeiras, engenharia contábil e mecanismos de lavagem preparados para drenar recursos antes mesmo de chegarem ao orçamento. A engrenagem que desidrata o país não age na explosão do escândalo; opera com discrição, movida pela habilidade dos grandes agentes econômicos de se manterem sempre alguns passos adiante do Estado.

A malha que a PF vem desfiando revela a lógica desses grupos. Empresas surgem e desaparecem em semanas; refinarias improvisadas criam fluxos paralelos de combustível; redes interestaduais embaralham trajetos e origens; offshores abertas em cascata ocultam patrimônio; escritórios jurídicos transformam fraudes fiscais em disputas administrativas; doleiros e consultorias funcionam como corredores para limpar valores e recolocá-los no circuito formal. A lavagem é o eixo que sustenta tudo isso: absorve recursos, apaga rastros, devolve liquidez e expande a influência desses agentes sobre a economia e a política.

O contraste entre essa engenharia e a indulgência institucional que a cerca também se impõe. Enquanto o discurso anticorrupção desperta indignação imediata, a evasão bilionária e a lavagem são empurradas para o terreno asséptico das tecnicalidades. A pedagogia pública se inverteu: as pessoas aprendem a responsabilizar o Estado pelo posto de saúde sem gaze, pela escola que cai aos pedaços, pelo ônibus lotado — mas raramente conectam esse cotidiano à sangria que antecede qualquer discussão sobre orçamento. A precariedade que marca a vida brasileira nasce ali, no momento em que o dinheiro público é desviado de sua própria possibilidade.

No sistema jurídico, o contraste é ainda mais evidente. Um pequeno comerciante que atrasa impostos enfrenta consequências imediatas; grandes devedores prolongam litígios por anos, num rosário de recursos projetados para travar qualquer tentativa de cobrança. Quando os riscos aumentam, entram em cena os mecanismos de lavagem: compra de ativos, contratos fictícios, consultorias que funcionam como caixas de passagem, laranjas usados como escudo. O direito não opera com a mesma intensidade para todos — e essa assimetria define o terreno sobre o qual a vida social se organiza.

No setor empresarial, o padrão se repete com crescente sofisticação: triangulações interestaduais calculadas para não deixar rastro, cadeias logísticas paralelas, notas fiscais produzidas como névoa, estruturas feitas para viver pouco e circular muito. A lavagem é o instrumento que permite que esse movimento ganhe escala, oferecendo circulação a valores que não sobreviveriam a um exame público. Operações como Poço de Lobato, Carbono Oculto e Cadeias de Delaware apenas tornaram visível um funcionamento que, até então, habitava a penumbra.

Os efeitos sobre o cotidiano são diretos. O dinheiro que falta para merenda, transporte, infraestrutura escolar, segurança pública ou política cultural não se dissolve em Brasília: ele é capturado antes. A desigualdade se alimenta desse desvio inicial, no ponto exato em que o recurso público deixa de existir. A vida precária da maioria nasce da subtração que antecede o debate político.

Nesse ambiente distorcido, a antipolítica floresce. O Estado vira inimigo, o setor privado aparece como vítima virtuosa, e a ação coletiva perde legitimidade. A extrema direita se alimenta desse vácuo, oferecendo indignação pronta e desviando a fúria dos agentes que realmente esvaziam o orçamento. A raiva é canalizada para onde há espetáculo, não para onde há impacto.

Essa história é antiga. Desde o período colonial, a elite econômica brasileira desenvolveu meios para contornar regras, influenciar autoridades, preservar e capilarizar privilégios. A modernização apenas ampliou o repertório e fortaleceu vínculos com circuitos financeiros internacionais. As operações recentes da PF expõem de maneira inédita essa herança sólida, que atravessou séculos com notável capacidade de adaptação.

Essa oposição simplificada entre o “corrupto” visível e o “sonegador” invisível também empobrece o debate público. O corrupto ocupa o papel de vilão porque deixa rastros, protagoniza cenas e fornece narrativa; já o sonegador (do crime, da lavagem) aparece como herói produtivo porque atua protegido por linguagem técnica, intermediários jurídicos e dispositivos de legitimidade econômica. Mas, na prática, essas figuras não são opostas: coexistem, se alimentam e, muitas vezes, dependem uma da outra. A engrenagem que desidrata o Estado funciona justamente quando esses papéis se embaralham, dissolvendo qualquer fronteira moral entre o crime político e o crime econômico.

•        O que se sabe sobre as acusações contra Lulinha na CPMI do INSS

A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que apura fraudes no sistema do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) rejeitou, nesta quinta-feira (4/12), a convocação do filho mais velho do presidente Lula (PT), Fábio Luís Lula da Silva, para prestar esclarecimentos sobre sua relação com pessoas investigadas no esquema.

O requerimento foi protocolado pelo partido Novo, que alegou haver indícios financeiros de uma possível conexão entre operadores da fraude e pessoas próximas ao presidente da República, entre eles Lulinha.

O pedido de convocação já estava em pauta nesta quinta, mas foi reforçado após membros da CPMI terem acesso ao depoimento de uma testemunha que acusa Lulinha de receber "mesada" do empresário Antônio Carlos Camilo Antunes, conhecido como Careca do INSS.

Antônio Carlos é apontado pela Polícia Federal como o operador do esquema de fraudes na previdência. Ele foi preso em setembro.

Segundo investigações, o "careca do INSS" agia como um intermediário dos sindicatos e associações, recebendo os recursos que eram debitados indevidamente dos aposentados e pensionistas, e repassando parte deles a servidores do instituto ou a familiares e empresas ligadas a eles.

Apesar da mobilização, a base do governo conseguiu se articular para derrubar o pedido de convocação do filho de Lula. Foram 19 votos contra e 12 a favor.

O ex-ministro da Secretaria de Comunicação, deputado Paulo Pimenta (PT-RS), afirmou que o pedido de convocação estava "fora de propósito" e que não havia provas sobre a suposta ligação entre "Lulinha" e Antônio Carlos Camilo Antunes.

Em outubro, a CPMI já havia rejeitado a convocação de José Ferreira da Silva, o Frei Chico, irmão do presidente Lula.

Ele foi vice-presidente do Sindnapi, entidade investigada no esquema bilionário de fraudes, mas não é alvo das apurações da Polícia Federal.

Lulinha também não é investigado pela PF no esquema de descontos fraudulentos em aposentadorias e pensões.

Ao Poder 360, o ex-advogado e amigo de Lulinha, Marco Aurélio Carvalho, disse que não conseguiu falar com ele, mas que a acusação "é absolutamente pirotécnica e improvável. É mais uma tentativa de desgastar a imagem de Fábio Luís".

<><> Acusação

Na terça-feira (2/12), o presidente da CPMI do INSS, senador Carlos Viana (Podemos-MG) anunciou, em uma publicação nas redes sociais, que colocaria em votação um requerimento para convocar Lulinha.

Ele afirmou: "Quem não deve, não teme. O Brasil quer respostas".

O pedido, assinado pelos deputados Marcel van Hattem (Novo-RS), Eduardo Girão (Novo-CE), Adriana Ventura (Novo-SP) e Luiz Lima (Novo-RJ), alegava que ouvir Lulinha era essencial para esclarecer "eventual uso de sua estrutura contábil ou possível ligação indireta com o esquema".

Segundo o jornal O Globo, o gatilho para o pedido foi a revelação de que Ricardo Bimbo, dirigente nacional do PT, recebeu dinheiro de uma das empresas investigadas.

No mesmo período, ele teria quitado um boleto do contador João Muniz Leite, responsável pelas contas de Lulinha.

A pressão para convocar o filho de Lula aumentou após a CPMI tomar conhecimento do depoimento de Edson Claro, ex-funcionário do INSS, à Polícia Federal.

Segundo o portal Poder360, que teve acesso ao depoimento, Claro acusa Lulinha de manter uma relação de proximidade e até uma sociedade empresarial com Antônio Carlos.

Ele teria dito que o filho de Lula recebeu uma cifra de 25 milhões (sem especificar em qual moeda) do "careca do INSS", além de uma "mesada" de R$ 300 mil.

Ainda, de acordo com o depoimento de Claro, Lulinha atuava como uma espécie de lobista para Antônio Carlos e eles teriam viajado juntos várias vezes para Portugal.

Edson Claro é um dos alvos da investigação da Polícia Federal. Ele prestou depoimento em 29 de outubro de 2025.

De acordo com o Portal360, não fica claro o tipo de sociedade que Lulinha tem ou pode ter mantido com o Careca do INSS com base no que diz Edson Claro.

Apesar disso, o veículo pontua que as citações ao filho de Lula na investigação são fartas. Ele é citado em conversas de WhatsApp em situações que poderia ajudar, de alguma forma, os acusados de fraudar o INSS.

<><> Quem é Lulinha

Fábio Luis, mais conhecido como Lulinha, é o filho mais velho de Lula com Marisa Letícia. Ele é formado em biologia e chegou a trabalhar como estagiário em um zoológico em São Paulo. Hoje ele tem empresas no ramo de tecnologia.

Nos anos 2000, o filho de Lula se tornou sócio da empresa Gamecorp, que atuava no ramo de jogos eletrônicos, e viu seu nome envolvido em investigações.

Em 2019, o Ministério Público Federal denunciou Lulinha e outras 10 pessoas por suposto recebimento de vantagens indevidas da Oi/Telemar, entre 2004 e 2016.

Em 2020, ele foi alvo da Operação Lava Jato, investigado por suspeita de receber repasses de mais de R$ 100 milhões do grupo Oi/Telemar para suas empresas, em troca de decisões favoráveis do governo durante as gestões petistas.

O caso foi arquivado.

Em julho, o portal Metrópoles divulgou que Lulinha se mudou para a Espanha e só voltaria ao Brasil após o fim do mandado de Lula. Ele teria sido contratado para trabalhar para uma empresa em Madri.

<><> Fraude no INSS

Em abril, uma investigação conjunta da Controladoria-Geral da União (CGU) e da Polícia Federal (PF) revelou uma fraude bilionária no INSS, que roubou centenas de milhares de aposentados por meio de descontos não autorizados em seus benefícios.

Segundo a polícia, sindicatos e associações de aposentados conseguiam, por meio de convênios com o INSS, descontar mensalidades de aposentados e pensionistas sem autorização.

Estima-se que o esquema envolva R$ 6,3 bilhões em descontos, entre valores legais e ilegais, no período de 2019 a 2024.

Entre os investigados na primeira fase da Operação estavam seis servidores públicos, incluindo o então presidente do INSS, Alessandro Stefanutto. Ele foi demitido do cargo após a operação e preso em novembro.

Em setembro, foi realizada uma segunda fase da operação que prendeu o empresário Antônio Carlos Camilo Antunes, conhecido como Careca do INSS.

Ele é apontado pelas investigações como facilitador do esquema que desviou recursos de aposentados e pensionistas.

Segundo a Polícia Federal, empresas ligadas a ele teriam operado como intermediárias financeiras das associações investigadas na fraude.

 

Fonte: Outras Palavras/BBC News Brasil

 

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