Ricardo
Queiroz Pinheiro: Sobre corruptos, sonegadores e hipocrisias
Até
meados de 2025, a crítica dominante ao governo Lula orbitava sempre o mesmo
ponto: faltava movimento, falta embate. A sensação de imobilismo se espalhava
com rapidez, impulsionada por uma oposição estridente, lacradora e por uma
imprensa que, há anos, se acostumou a narrar o país pelo brilho das
conveniências de classe. Esse quadro só começou a se equilibrar quando a
tentativa de rearticulação golpista — estimulada por Eduardo Bolsonaro e
respaldada por Donald Trump — produziu um choque político capaz de reorganizar
tensões internas e deslocar prioridades. Os algozes abriram um caminho.
A
mudança ficou evidente quando a Polícia Federal começou a iluminar os
bastidores financeiros onde se acumulam fraudes bilionárias, sonegação em
escala industrial, lavagem de dinheiro e conexões silenciosas entre
empresários, operadores políticos e grupos criminosos. As operações revelaram
ainda redes de auditorias privadas usadas para mascarar desvios estruturais,
consultorias internacionais contratadas para deslocar ativos ao exterior e
sistemas paralelos de logística que funcionavam como corredores de escoamento
para produtos sem lastro fiscal. Vieram à tona também vínculos com plataformas
digitais de pagamento que serviam de ponte para ocultar transações, além de
protocolos internos em grandes grupos econômicos criados especificamente para
dificultar o rastreamento contábil. O que antes parecia fragmentado passou a
compor um mapa coerente de interesses articulados, capaz de atravessar
fronteiras setoriais e instituições com a mesma fluidez.
À
medida que avançam, as investigações colocam em xeque a ladainha confortável
que reduz o problema nacional à corrupção política. O moralismo anticorrupção
prosperou porque oferece inimigos claros, cenas fotográficas, gabinetes
revirados — um drama fácil de consumir. Mas ao ocupar o centro da explicação,
desviou o olhar de onde o impacto realmente se produz: nos arranjos que
combinam evasão fiscal, manobras financeiras, engenharia contábil e mecanismos
de lavagem preparados para drenar recursos antes mesmo de chegarem ao
orçamento. A engrenagem que desidrata o país não age na explosão do escândalo;
opera com discrição, movida pela habilidade dos grandes agentes econômicos de
se manterem sempre alguns passos adiante do Estado.
A malha
que a PF vem desfiando revela a lógica desses grupos. Empresas surgem e
desaparecem em semanas; refinarias improvisadas criam fluxos paralelos de
combustível; redes interestaduais embaralham trajetos e origens; offshores
abertas em cascata ocultam patrimônio; escritórios jurídicos transformam
fraudes fiscais em disputas administrativas; doleiros e consultorias funcionam
como corredores para limpar valores e recolocá-los no circuito formal. A
lavagem é o eixo que sustenta tudo isso: absorve recursos, apaga rastros,
devolve liquidez e expande a influência desses agentes sobre a economia e a
política.
O
contraste entre essa engenharia e a indulgência institucional que a cerca
também se impõe. Enquanto o discurso anticorrupção desperta indignação
imediata, a evasão bilionária e a lavagem são empurradas para o terreno
asséptico das tecnicalidades. A pedagogia pública se inverteu: as pessoas
aprendem a responsabilizar o Estado pelo posto de saúde sem gaze, pela escola
que cai aos pedaços, pelo ônibus lotado — mas raramente conectam esse cotidiano
à sangria que antecede qualquer discussão sobre orçamento. A precariedade que
marca a vida brasileira nasce ali, no momento em que o dinheiro público é
desviado de sua própria possibilidade.
No
sistema jurídico, o contraste é ainda mais evidente. Um pequeno comerciante que
atrasa impostos enfrenta consequências imediatas; grandes devedores prolongam
litígios por anos, num rosário de recursos projetados para travar qualquer
tentativa de cobrança. Quando os riscos aumentam, entram em cena os mecanismos
de lavagem: compra de ativos, contratos fictícios, consultorias que funcionam
como caixas de passagem, laranjas usados como escudo. O direito não opera com a
mesma intensidade para todos — e essa assimetria define o terreno sobre o qual
a vida social se organiza.
No
setor empresarial, o padrão se repete com crescente sofisticação: triangulações
interestaduais calculadas para não deixar rastro, cadeias logísticas paralelas,
notas fiscais produzidas como névoa, estruturas feitas para viver pouco e
circular muito. A lavagem é o instrumento que permite que esse movimento ganhe
escala, oferecendo circulação a valores que não sobreviveriam a um exame
público. Operações como Poço de Lobato, Carbono Oculto e Cadeias de Delaware
apenas tornaram visível um funcionamento que, até então, habitava a penumbra.
Os
efeitos sobre o cotidiano são diretos. O dinheiro que falta para merenda,
transporte, infraestrutura escolar, segurança pública ou política cultural não
se dissolve em Brasília: ele é capturado antes. A desigualdade se alimenta
desse desvio inicial, no ponto exato em que o recurso público deixa de existir.
A vida precária da maioria nasce da subtração que antecede o debate político.
Nesse
ambiente distorcido, a antipolítica floresce. O Estado vira inimigo, o setor
privado aparece como vítima virtuosa, e a ação coletiva perde legitimidade. A
extrema direita se alimenta desse vácuo, oferecendo indignação pronta e
desviando a fúria dos agentes que realmente esvaziam o orçamento. A raiva é
canalizada para onde há espetáculo, não para onde há impacto.
Essa
história é antiga. Desde o período colonial, a elite econômica brasileira
desenvolveu meios para contornar regras, influenciar autoridades, preservar e
capilarizar privilégios. A modernização apenas ampliou o repertório e
fortaleceu vínculos com circuitos financeiros internacionais. As operações
recentes da PF expõem de maneira inédita essa herança sólida, que atravessou
séculos com notável capacidade de adaptação.
Essa
oposição simplificada entre o “corrupto” visível e o “sonegador” invisível
também empobrece o debate público. O corrupto ocupa o papel de vilão porque
deixa rastros, protagoniza cenas e fornece narrativa; já o sonegador (do crime,
da lavagem) aparece como herói produtivo porque atua protegido por linguagem
técnica, intermediários jurídicos e dispositivos de legitimidade econômica.
Mas, na prática, essas figuras não são opostas: coexistem, se alimentam e,
muitas vezes, dependem uma da outra. A engrenagem que desidrata o Estado
funciona justamente quando esses papéis se embaralham, dissolvendo qualquer
fronteira moral entre o crime político e o crime econômico.
• O que se sabe sobre as acusações contra
Lulinha na CPMI do INSS
A
Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que apura fraudes no sistema do
Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) rejeitou, nesta quinta-feira (4/12),
a convocação do filho mais velho do presidente Lula (PT), Fábio Luís Lula da
Silva, para prestar esclarecimentos sobre sua relação com pessoas investigadas
no esquema.
O
requerimento foi protocolado pelo partido Novo, que alegou haver indícios
financeiros de uma possível conexão entre operadores da fraude e pessoas
próximas ao presidente da República, entre eles Lulinha.
O
pedido de convocação já estava em pauta nesta quinta, mas foi reforçado após
membros da CPMI terem acesso ao depoimento de uma testemunha que acusa Lulinha
de receber "mesada" do empresário Antônio Carlos Camilo Antunes,
conhecido como Careca do INSS.
Antônio
Carlos é apontado pela Polícia Federal como o operador do esquema de fraudes na
previdência. Ele foi preso em setembro.
Segundo
investigações, o "careca do INSS" agia como um intermediário dos
sindicatos e associações, recebendo os recursos que eram debitados
indevidamente dos aposentados e pensionistas, e repassando parte deles a
servidores do instituto ou a familiares e empresas ligadas a eles.
Apesar
da mobilização, a base do governo conseguiu se articular para derrubar o pedido
de convocação do filho de Lula. Foram 19 votos contra e 12 a favor.
O
ex-ministro da Secretaria de Comunicação, deputado Paulo Pimenta (PT-RS),
afirmou que o pedido de convocação estava "fora de propósito" e que
não havia provas sobre a suposta ligação entre "Lulinha" e Antônio
Carlos Camilo Antunes.
Em
outubro, a CPMI já havia rejeitado a convocação de José Ferreira da Silva, o
Frei Chico, irmão do presidente Lula.
Ele foi
vice-presidente do Sindnapi, entidade investigada no esquema bilionário de
fraudes, mas não é alvo das apurações da Polícia Federal.
Lulinha
também não é investigado pela PF no esquema de descontos fraudulentos em
aposentadorias e pensões.
Ao
Poder 360, o ex-advogado e amigo de Lulinha, Marco Aurélio Carvalho, disse que
não conseguiu falar com ele, mas que a acusação "é absolutamente
pirotécnica e improvável. É mais uma tentativa de desgastar a imagem de Fábio
Luís".
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Acusação
Na
terça-feira (2/12), o presidente da CPMI do INSS, senador Carlos Viana
(Podemos-MG) anunciou, em uma publicação nas redes sociais, que colocaria em
votação um requerimento para convocar Lulinha.
Ele
afirmou: "Quem não deve, não teme. O Brasil quer respostas".
O
pedido, assinado pelos deputados Marcel van Hattem (Novo-RS), Eduardo Girão
(Novo-CE), Adriana Ventura (Novo-SP) e Luiz Lima (Novo-RJ), alegava que ouvir
Lulinha era essencial para esclarecer "eventual uso de sua estrutura
contábil ou possível ligação indireta com o esquema".
Segundo
o jornal O Globo, o gatilho para o pedido foi a revelação de que Ricardo Bimbo,
dirigente nacional do PT, recebeu dinheiro de uma das empresas investigadas.
No
mesmo período, ele teria quitado um boleto do contador João Muniz Leite,
responsável pelas contas de Lulinha.
A
pressão para convocar o filho de Lula aumentou após a CPMI tomar conhecimento
do depoimento de Edson Claro, ex-funcionário do INSS, à Polícia Federal.
Segundo
o portal Poder360, que teve acesso ao depoimento, Claro acusa Lulinha de manter
uma relação de proximidade e até uma sociedade empresarial com Antônio Carlos.
Ele
teria dito que o filho de Lula recebeu uma cifra de 25 milhões (sem especificar
em qual moeda) do "careca do INSS", além de uma "mesada" de
R$ 300 mil.
Ainda,
de acordo com o depoimento de Claro, Lulinha atuava como uma espécie de lobista
para Antônio Carlos e eles teriam viajado juntos várias vezes para Portugal.
Edson
Claro é um dos alvos da investigação da Polícia Federal. Ele prestou depoimento
em 29 de outubro de 2025.
De
acordo com o Portal360, não fica claro o tipo de sociedade que Lulinha tem ou
pode ter mantido com o Careca do INSS com base no que diz Edson Claro.
Apesar
disso, o veículo pontua que as citações ao filho de Lula na investigação são
fartas. Ele é citado em conversas de WhatsApp em situações que poderia ajudar,
de alguma forma, os acusados de fraudar o INSS.
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Quem é Lulinha
Fábio
Luis, mais conhecido como Lulinha, é o filho mais velho de Lula com Marisa
Letícia. Ele é formado em biologia e chegou a trabalhar como estagiário em um
zoológico em São Paulo. Hoje ele tem empresas no ramo de tecnologia.
Nos
anos 2000, o filho de Lula se tornou sócio da empresa Gamecorp, que atuava no
ramo de jogos eletrônicos, e viu seu nome envolvido em investigações.
Em
2019, o Ministério Público Federal denunciou Lulinha e outras 10 pessoas por
suposto recebimento de vantagens indevidas da Oi/Telemar, entre 2004 e 2016.
Em
2020, ele foi alvo da Operação Lava Jato, investigado por suspeita de receber
repasses de mais de R$ 100 milhões do grupo Oi/Telemar para suas empresas, em
troca de decisões favoráveis do governo durante as gestões petistas.
O caso
foi arquivado.
Em
julho, o portal Metrópoles divulgou que Lulinha se mudou para a Espanha e só
voltaria ao Brasil após o fim do mandado de Lula. Ele teria sido contratado
para trabalhar para uma empresa em Madri.
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Fraude no INSS
Em
abril, uma investigação conjunta da Controladoria-Geral da União (CGU) e da
Polícia Federal (PF) revelou uma fraude bilionária no INSS, que roubou centenas
de milhares de aposentados por meio de descontos não autorizados em seus
benefícios.
Segundo
a polícia, sindicatos e associações de aposentados conseguiam, por meio de
convênios com o INSS, descontar mensalidades de aposentados e pensionistas sem
autorização.
Estima-se
que o esquema envolva R$ 6,3 bilhões em descontos, entre valores legais e
ilegais, no período de 2019 a 2024.
Entre
os investigados na primeira fase da Operação estavam seis servidores públicos,
incluindo o então presidente do INSS, Alessandro Stefanutto. Ele foi demitido
do cargo após a operação e preso em novembro.
Em
setembro, foi realizada uma segunda fase da operação que prendeu o empresário
Antônio Carlos Camilo Antunes, conhecido como Careca do INSS.
Ele é
apontado pelas investigações como facilitador do esquema que desviou recursos
de aposentados e pensionistas.
Segundo
a Polícia Federal, empresas ligadas a ele teriam operado como intermediárias
financeiras das associações investigadas na fraude.
Fonte:
Outras Palavras/BBC News Brasil

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