A
nova orientação do papa sobre sexo no casamento
Documento
divulgado pela Igreja no fim de novembro reconhece que há uma "finalidade
unitiva da sexualidade", enfatizando que os atos sexuais "não se
limitam a assegurar a procriação, mas contribuem para enriquecer e fortalecer a
união única e exclusiva e o sentimento de pertencimento mútuo".
Assinada
pelo Dicastério para a Doutrina da Fé — nome atual do antigo Tribunal do Santo
Ofício —, a nota doutrinal divulgada com a aprovação do papa Leão 14 é uma
defesa católica da união monogâmica entre homem e mulher. Mas apresenta nas
entrelinhas esse entendimento de que o ato sexual tem uma função além da
geração de descendentes.
Publicado
apenas em italiano, o texto afirma que "nas últimas décadas" devido
ao "contexto do individualismo consumista pós-moderno", diversos
problemas se originaram da "busca excessiva e descontrolada pelo sexo ou
da simples negação da finalidade procriativa da sexualidade".
Ao
mesmo tempo, a nota lembra que também houve uma "negação explícita da
finalidade unitiva da sexualidade e do próprio casamento" e incentiva
"o desejo de troca emocional, pelas próprias relações sexuais, mas também
pelo diálogo e pela cooperação".
O
documento diz que uma "visão integral da caridade conjugal" é aquela
que "não nega a sua fecundidade". Mas que "a união sexual, como
forma de expressão da caridade conjugal", ainda que "deva
naturalmente permanecer aberta à comunicação da vida", não precisa ter
nesse fim o "objetivo explícito de cada ato sexual".
Nesse
sentido, o texto apresenta três possibilidades. A primeira é a vida sexual de
casais que não podem ter filhos. A segunda é "que um casal não procure
conscientemente um determinado ato sexual como meio de procriação". Por
fim, o terceiro item fala sobre respeitar "os períodos naturais de
infertilidade" — "isso pode servir não só para regular as taxas de
natalidade, mas também para escolher os momentos mais adequados para acolher
uma nova vida", observa o documento.
A nota
enfatiza que "o casal pode aproveitar esses períodos como manifestação de
afeto e para salvaguardar a fidelidade mútua". "Fazendo isso,
demonstram um amor verdadeira e completamente honesto", afirma.
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Da abstenção ao prazer
Tal
postura não é completamente inédita em documentos do catolicismo. Mas foi
apresentada com destaque neste texto, repleto de citações que transcendem os
círculos da cúpula do catolicismo por abarcarem, entre outros, versos de amor
do poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973), trechos de escritos do poeta
italiano Eugenio Montale (1896-1981) e pensamentos sobre a ética do matrimônio
deixados pelo filósofo existencialista dinamarquês Soren Kierkegaard
(1813-1855) — que também era teólogo cristão, aliás.
"Embora
não se trate de uma novidade, de fato há uma evolução no pensar da Igreja
enquanto instituição em relação ao sexo, para além dessa dimensão da
reprodução", observa à BBC News Brasil o teólogo Raylson Araujo,
pesquisador na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Ele
lembra que em manuais antigos, como os que orientavam padres confessores nos
século 16 e 17, havia muitas recomendações para a abstenção das práticas
sexuais, mesmo dentro do matrimônio.
Araujo
recorda que predominava uma visão do sexo como "algo pecaminoso,
sujo". O teólogo lembra que eram comuns abordagens que instruíam casais a
não transarem em períodos como a quaresma ou mesmo aos domingos.
"Do
século 20 para cá, sobretudo depois do Concílio Vaticano 2º [que ocorreu entre
os anos de 1962 e 1965], essa ideia passou a ser revisitada.
O atual
texto do Catecismo da Igreja Católica, por exemplo, publicado em 1992, já
aborda também o chamado "caráter unitivo" das relações sexuais dentro
do matrimônio.
"A
função unitiva do sexo, além da procriativa, é tradicional no magistério da
Igreja", destaca à BBC News Brasil o sociólogo da religião Francisco Borba
Ribeiro Neto, ex-coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.
Ele
lembra que no magistério do papa João Paulo 2º (1920-2005) esta postura era
recorrente. "[Ele] insistiu na necessidade de que os casais cristão
reconhecessem esse aspecto da sexualidade", pontua.
"O
que aconteceu foi uma redução moralizante da mensagem cristã, que inclusive vai
contra uma concepção integral da moral cristã", observa. "O documento
atual apenas recorda algo que deveria ser sabido e reconhecido por todos que se
interessam pela doutrina católica."
O
Catecismo aborda a questão nos parágrafos 2360, 2361 e 2362. "No
matrimônio, a intimidade corporal dos esposos torna-se sinal e penhor da
comunhão espiritual", diz um deles.
"Os
atos pelos quais os esposos se unem íntima e castamente são honestos e dignos;
realizados de modo autenticamente humano, exprimem e alimentam a mútua entrega
pela qual se enriquecem um ao outro com alegria e gratidão", pontua o
conjunto de regras. "A sexualidade é fonte de alegria e de prazer."
O
livro, contudo, ressalta que tais relações precisam sempre ser movidas pelo
amor.
Ribeiro
Neto lembra que, de acordo com a doutrina da Igreja, "o prazer sem amor é
como um orgasmo", pode "ser maravilhoso, mas termina no amargor da
solidão".
"Na
relação sexual, a Igreja não é contra o prazer, mas sim contra o prazer sem
amor. Pois o sexo, na sua plenitude, é uma celebração do amor",
contextualiza o sociólogo.
"Assim,
não há nada contra os católicos praticarem sexo por prazer. O problema é
praticarem sexo sem amor", esclarece ele. "Talvez o maior problema
cultural da prática sexual seja o sexo sem um amor responsável. Quando dou ou
recebo prazer de outra pessoa, me torno responsável por ela, pois o prazer
sexual é a doação da intimidade do ser. Quando queremos ter prazer e amor sem
responsabilidade, aí fracassamos, pois não há amor verdadeiro sem
responsabilidade pelo outro."
Para o
historiador e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade
Presbiteriana Mackenzie, o mais importante a ser enfatizado sobre a nota é que
a Igreja "não foge da discussão", abordando a sexualidade sob um
prisma contemporâneo.
Em
conversa com a BBC News Brasil, ele lembra que no passado havia uma ênfase à
chamada "continência matrimonial", mas que nunca foi negado o
exercício da sexualidade dentro do matrimônio.
"O
que me parece é que há uma consolidação da visão da Igreja sobre a importância
do casamento", avalia ele.
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Erotismo na Bíblia
Autora
do livro O Amor Não Está À Venda, em que analisa as menções a interações
sexuais na Bíblia, a linguista Ana Bezerra Felicio aponta que na quase
totalidade dos casos em que isso ocorre ou tem a ver com filhos e família ou
está em contexto negativo.
"São
abusos, estupros, práticas condenáveis, mostrando a realidade mais cruel da
vida humana", diz ela, à BBC News Brasil. Felicio é integrante da
Associação Brasileira de Cristãos na Ciência.
Para a
especialista, a exceção está no livro Cântico dos Cânticos, que faz parte do
Antigo Testamento.
Trata-se
de um poema erótico que celebra o encontro sexual. Não há consenso sobre a
autoria do texto, mas a maior parte dos especialistas acredita que os versos
tenham sido criados entre os anos 450 a.C. e 330 a.C.
"Sem
ele, não haveria conotação positiva do sexo na Bíblia", frisa Felicio.
"Nele há a exaltação da beleza dos corpos, corpos que se desejam muito um
ao outro."
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Em livro, beijos sensuais
Nos
bastidores da Santa Sé, uma nuance adicional merece ser ressaltada. O texto foi
produzido pelo cardeal Victor Manuel Fernández, ex-arcebispo de La Plata,
alçado ao comando do dicastério dois anos atrás.
Além de
conterrâneo, Fernández era amigo próximo do papa Francisco (1936-2025) e foi
ghost writer de diversos documentos assinados por ele. Ao longo de sua carreira
na Argentina, contudo, o religioso vivenciou episódios polêmicos justamente
ligado à moral sexual.
Ele é
autor do livro Sáname con Tu Boca - El Arte de Besar, no qual incentiva que
casais a se esmerarem na prática dos beijos eróticos.
Quando
ele foi nomeado prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, o mais antigo dos
16 organismos que funcionam nas esferas de poder do Vaticano, setores mais
conservadores da Igreja criticaram a decisão de Francisco. No diário católico
La Croix International, o vaticanista Robert Mickens classificou a nomeação
como "uma bomba" para os tradicionalistas.
Curiosamente,
entre 2009 e 2011, sob o pontificado de Bento 16 (1927-2022), Fernández foi
inquirido pelo mesmo órgão que hoje ele chefia. Viam-no como autor de discursos
"modernos" demais e solicitaram explicações.
Em sua
trajetória, o hoje cardeal, sempre demonstrou uma maior abertura ao acolhimento
às populações LBTQIA+ e aos chamados casais em segunda união — temas estes que
costumam acender polêmicas pela falta de consenso entre diferentes setores do
catolicismo.
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Pílula, camisinha e outros métodos?
Sempre
que há uma sinalização da Igreja no sentido de reconhecer o valor do sexo como
prazer para os casais, acende-se nos setores mais progressistas do catolicismo
a expectativa de uma mudança histórica da instituição quanto aos métodos
contraceptivos.
Para os
especialistas, ainda é cedo para vislumbrar uma mudança nesse ponto. A Igreja
Católica não aceita o uso de contraceptivos vistos como artificiais. A
recomendação é para que casais que não queiram filhos se apoiem em estratégias
como o método de ovulação Billings.
"Há
paróquias que oferecem cursos para quem queira aprender mais sobre isso",
lembra o teólogo Araujo.
O
historiador e teólogo Moraes, contudo, reconhece que tradicionalmente "a
Igreja vai mudando lentamente" em alguns posicionamentos. E qualquer
atualização costuma levar muito tempo. "O importante é que os temas estão
em debate", argumenta. "Que a Igreja segue avaliando as questões
conforme seus valores."
Fonte:
BBC News Brasil

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