França:
a Alternativa Mélenchon
Nos
nove anos desde sua fundação em 2016, o partido A França Insubmissa [La
France Insoumise, ou LFI) tornou-se a principal formação de esquerda na
França. Sua atual representação, de 71 parlamentares, coloca-a à frente dos
partidos tradicionais da esquerda – o Partido Socialista e o Partido Comunista.
A personalidade mais identificada com a LFI é Jean-Luc Mélenchon, que concorreu
à presidência três vezes – a última em 2022, quando obteve 21,9% dos votos,
terminando em terceiro lugar, logo após a segunda colocada Marine Le Pen, da
Reunião Nacional (Rassemblement National), e Emmanuel Macron. O La
France Insoumise descreve sua orientação como socialista democrática e
ecossocialista.
A
seguir, uma entrevista composta. Quando visitou Paris em julho de 2025, Walden
Bello entrevistou alguns dos líderes do LFI, incluindo Nadège Abomangoli,
vice-presidente da Assembleia Nacional; Aurélie Trouvé, presidente do Comitê de
Assuntos Econômicos da Assembleia; e os deputados Arnaud Le Gall, Aurélien
Taché e Aurélien Saintoul. Seguiu-se, em setembro de 2025, por uma entrevista
por e-mail com Jean-Luc Mélenchon (JLM).
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I. A Crise do Macronismo
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Vocês podem reportar a avaliação que fazem sobre a
situação política atual na França?
La
France Insoumise:
Em termos de situação estratégica, estamos vivendo o fim do macronismo. Os
macronistas estão muito divididos e, em seu desespero, estão se aliando à
extrema direita. Vamos começar apontando que no ano passado, quando a Reunião
Nacional venceu as eleições para o Parlamento Europeu, Macron estava disposto a
fazer um acordo com eles. Esse era o plano, que não se concretizou. Mas mesmo
que não tenha acontecido, a realidade é que o macronismo já absorveu muito da
ideologia e dos slogans da extrema direita. Os macronistas estão em uma aliança
com a extrema direita no governo atual. Os Republicanos, o partido de direita
tradicional, está mais do que nunca posicionado ao lado da extrema direita. O
novo chefe deste partido, um homem chamado Bruno Retailleau, é agora ministro
do interior e, portanto, da polícia. Em uma reunião, ele disse: “Abaixo o véu”.
Como você sabe, este é um slogan da extrema direita. Além disso, durante a
guerra colonial na Argélia, a comunidade colonial francesa também gritava
“Abaixo o véu”, visando mulheres muçulmanas. É algo muito antigo, mas ao mesmo
tempo muito preocupante dada a situação atual. A islamofobia representa uma
ameaça muito real, na medida em que fornece a cola ideológica de todas as
forças de direita em nosso país.
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II. Os protestos populares e a esquerda
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Quais os principais desafios que a esquerda enfrenta
neste momento?
Jean-Luc
Mélenchon:
Os capitalistas estão se apoiando na extrema direita. Você sabe por quê? Porque
há uma intensa mobilização social contra as decisões decorrentes do programa
neoliberal. Há uma atmosfera pré-revolucionária na França, como admitem os
próprios analistas favoráveis aos que estão no poder. Na verdade, em todo o
mundo, há muitos anos, há situações revolucionárias. Chamamos esses eventos de
“revoluções cidadãs”. Em meu livro Now the
People [Agora o Povo, disponível também em castelhano], tento analisá-las,
incluindo as condições que as produzem. Essa situação é o que tem preocupado
Macron e o establishment.
Na
França, houve um movimento dos coletes amarelos. No início, a esquerda
tradicional não os apoiou. Dizia-se que eram fascistas. Só 10 dias após o seu
início, a esquerda, os sindicatos e o movimento alterglobalização fizeram uma
declaração dizendo que os apoiamos. Ocorre que uma nova linha de conflito
estava surgindo: não esquerda versus direita, mas a oligarquia versus o povo.
Como
você sabe, houve protestos enormes em 2005 e 2023. O caráter foi diferente. Os
de 2005 ocorreram nos subúrbios das grandes cidades. Os de 2023 ocorreram
também em cidades menores. Eram pessoas muito jovens. Alguns sociólogos
disseram que os protestos de 2005 e 2023 tinham as mesmas causas, mas achamos
que os protestos de 2023 foram diferentes. As pessoas que participavam deles
eram muito jovens e viviam profundamente aquilo contra o quê lutavam, incluindo
o direito da polícia de matá-los, a licença para matar, especialmente jovens
homens árabes.
Não
havia um porta-voz, mas estava claro contra o que era. Era uma reação a uma
execução extrajudicial. E a polarização foi mais acentuada em 2023, em parte
devido às mídias sociais. Houve essa explosão de raiva da direita em reação aos
protestos, com algumas pessoas expressando que era certo a polícia matar esses
jovens homens árabes e negros.
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III. Capitalismo e Racismo
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Os protestos de 2023 também estavam ligados a questões
econômicas?
LFI: Sim, estavam, e
apontamos que os eventos foram causados por políticas neoliberais. Foram as
respostas das pessoas ao impacto do neoliberalismo em sua existência concreta.
Todos os outros partidos os chamaram de distúrbios. Nós não. O termo usado era
muito importante para nós. Aqueles que são vítimas do racismo também devem ser
vistos como vítimas do capitalismo. São pessoas totalmente exploradas pelo
capitalismo. Portanto, ao contrário da posição do chefe do Partido Comunista e
de alguns no Partido Socialista, não se pode separar a luta contra o racismo da
luta contra o capitalismo.
Precisamos
enfatizar isso, que o racismo não é apenas uma questão moral. Ele está ligado à
economia. Por exemplo, dizem que só temos uma certa riqueza para dividir, e
dividi-la com migrantes prejudicará nosso próprio povo. Isso serve para dividir
as pessoas. Você começa com os migrantes, depois diz que os brancos pobres
também devem ser excluídos, e assim por diante. Os macronistas estão tentando
normalizar essa divisão promovida pela extrema direita. Eles acham desejável
enquadrá-la dessa forma. É o que começaram a fazer em Mayotte [arquipélago
africano sob domínio colonial francês, situado entre Moçambique e a ilha de
Madagascar], para destruir os direitos dos migrantes. Depois, trarão essa ideia
para a França. Mayotte e outros territórios ultramarinos da França estão
servindo como laboratórios.
Mas
também há esforços semelhantes em muitos lugares, como os subúrbios ao redor de
Marselha, onde a Reunião Nacional, o partido de Marine Le Pen, exerce alguma
influência. Eles estão criando muitos estados de exceção. Por exemplo, há agora
um projeto de lei, apresentado pela Reunião Nacional, para colocar qualquer
estrangeiro preso na cadeia por pelo menos 200 dias se ele já tiver sido
condenado e sentenciado anteriormente. Isso é uma clara violação dos direitos
básicos: você não pode colocar ninguém na cadeia se ele não foi condenado e
sentenciado. Oitenta e cinco por cento das novas leis em um ano são
patrocinadas ou apoiadas pela Reunião Nacional.
Gostaríamos
de acrescentar que também estamos tentando criar um novo anti-racismo. Um
problema que enfrentamos é que, no passado, o anti-racismo foi usado como arma
pelos socialistas quando estavam no poder para perseguir seus inimigos. Por
isso, as pessoas agora estão muito, muito desconfiadas do anti-racismo,
especialmente se aqueles que o defendem são homens brancos com agendas
políticas.
Também
estamos combatendo novas formas de racismo, como a alegação de que pessoas não
brancas estão se infiltrando na sociedade e no governo para obter altos cargos,
e o fazem por meio de vantagens especiais oferecidas pelo Estado. Isso é
estranho porque, no passado, a crítica deles era que os muçulmanos não queriam
se integrar. Mas agora, quando algumas pessoas não brancas conseguem altos
cargos, como Nadège Abomangoli, que é
vice-presidente da Assembleia Nacional, eles dizem que isso é devido a
benefícios especiais de que desfrutam.
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Vocês não veem em outros setores da esquerda
solidariedade ou desejo de compreendem a situação dos migrantes?
LFI: Isso não é novidade
para os líderes comunistas porque, há 40 anos, eles já diziam que havia um
problema com os imigrantes. Mas nossas diferenças com o Partido Comunista vão
além da simples classificação dos protestos como distúrbios. Relacionam-se a diferentes
visões de sociedade. A resposta à questão sobre quem faz parte do povo evolui
com o tempo. O Partido Comunista envelheceu por prender-se a uma visão obsoleta
de quem são os “povos revolucionários”. A classe trabalhadora evoluiu de tal
modo que árabes e outras comunidades não brancas são agora a maioria em muitos
setores da classe trabalhadora. Você pode ver isso nos hospitais, onde a
própria maioria dos médicos não é branca. Portanto, é muito importante lutar
contra o racismo, porque, se não o fizer, você permite que o povo e a classe
trabalhadora sejam divididos.
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IV. A Esquerda Dividida
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Mudando para um tópico relacionado, você pode me dizer
qual é o estado da esquerda na França?
LFI: Pode-se dizer que,
sem o France Insoumise, não haveria mais uma esquerda viável na
França. Há, é claro, outros partidos, como o Partido Socialista. Mas ele não
enfrenta os muitos desafios no país. Não combate o racismo com a força que
deveria. Especificamente, o PS está dividido. Não tem uma agenda, um programa.
E a única questão para eles é saber como ganhar cadeiras parlamentares, e se
devem ou não se aliar ao LFI. É uma situação difícil, mas devemos seguir em
frente mesmo que sejamos acusados de divisionismo. Em termos de situação
estratégica, confrontamos o macronismo, que está muito dividido porque vive seu
ocaso, e há a extrema direita. Claro, como em muitos outros países, você tem a
mídia, que é dominada por bilionários que favorecem muito uma vitória da
extrema direita.
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Os socialistas não querem uma aliança com o LFI?
LFI: Os socialistas
estão divididos em dois grupos. Um grupo não quer uma aliança conosco sob
nenhuma circunstância. O outro grupo não quer uma aliança, mas a aceitaria em
certas situações. No entanto, eles estão focados em obter o apoio dos eleitores
que apoiam Macron nas próximas eleições e, como acham que uma aliança afastaria
esses eleitores, não pensam em uma aliança conosco no momento. Mas não se
perguntam se os eleitores continuariam a votar neles no segundo turno das
eleições. Sua estratégia é típica do desejo de colocar o povo de volta sob a
autoridade da pequena burguesia, por medo da extrema direita.
Para
nós, a busca empreendida pelos socialistas, de votos entre os eleitores de
Macron, é uma ilusão, já que os macronistas são principalmente conservadores e
não apoiariam socialistas ou social-democratas, ainda que parte da mídia agrupe
os Socialistas e os Macronistas no mesmo bloco. Mas, dado seu projeto, os
socialistas tentam ao máximo se distinguir de nós. Por exemplo, quando se trata
da situação em Gaza, eles ainda não querem usar a palavra “genocídio”. Então,
dizem que estamos apoiando o Hamas e o terrorismo. O que mais a extrema direita
poderia pedir? É um presente para eles. O partido da direita estabelecida, os
Republicanos, chegou a pedir uma investigação parlamentar sobre nossos alegados
vínculos com grupos terroristas. Estamos enfrentando uma verdadeira
demonização. Eles têm esse rótulo para nós, chamando-nos de “Islamo-Marxistas”.
Usam esses rótulos para assustar as pessoas e dividi-las diante da crise do
neoliberalismo. Mas, por enquanto, eles são os mais desacreditados quando se
trata da opinião pública. Seu oportunismo enoja as pessoas comuns.
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V. Centro e Direita divididos
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Haverá eleições presidenciais em 2027. Você acha que a
esquerda será capaz de se unir para disputá-las de forma eficaz?
LFI: Em outras
circunstâncias, as coisas seriam favoráveis à esquerda. Os macronistas estão
muito divididos. Se você observar quem votou em Macron em 2017 e quem votou em
2023, verá uma grande diferença. Em 2017, seus votos vieram principalmente de
eleitores mais velhos e centristas. Em 2023, eles vieram de eleitores mais
jovens que podem ser descritos não tanto como centristas, mas como pessoas
interessadas em modernizar o conservadorismo. Não há mais ninguém que possa
unir esses dois grupos. Macron está proibido por lei de concorrer novamente.
Agora está claro que o macronismo foi um fenômeno único. A maioria dos
macronistas agora é a favor de se aliar à extrema direita.
A
direita e a extrema direita também estão divididas. Há Bruno Retailleau, o
líder dos Republicanos, o partido conservador tradicional. Há a Reunião
Nacional de Marine Le Pen. Como ela foi condenada, junto com outros líderes de
seu partido, por desvio de fundos, está proibida de concorrer a cargos
públicos. Seu protegido, Jordan Bardella, concorrerá em seu lugar. Mas Bardella
não é crível, tem um baixo nível cultural, é muito jovem, bastante preguiçoso e
muito inexperiente em comparação com Retailleau, que ocupou muitos cargos e tem
proferido a mesma retórica nos últimos 40 anos. Entre Bardella e Retailleau, o
grande capital provavelmente favoreceria Retailleau.
Estamos
abertos a conversar com os socialistas, mas os socialistas estão iludidos,
buscando os macronistas. Os Verdes, Socialistas e Comunistas estão conversando
sobre uma aliança eleitoral entre si, e a única coisa que os une é evitar
conversar com a France Insoumise. Mas, dado o fato de que cada um
deles está interessado em aumentar seu número de cadeiras, o que só pode
acontecer às custas dos outros, essas conversas não irão muito longe.
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VI. Coletivismo: Programa e Visão da França Insubmissa
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Supondo que você seja candidato à presidência em 2027,
quais seriam os elementos-chave do seu programa?
JLM: Sim, haverá uma
candidatura Insoumise. Teremos um candidato para sustentar nosso
programa “L’Avenir en commun” (O Futuro em Comum). O programa vem da própria
sociedade: associações, sindicatos, coletivos, cientistas. São 831 medidas para
construir uma Nova França, rompendo com a ordem capitalista. Essas medidas são
constantemente atualizadas, orçamentadas e detalhadas em cadernos de programa.
Elas propõem partir das necessidades da própria sociedade, para fazer emergir
um novo povo.
Para
romper com os maus tratos neoliberais e afastar o produtivismo, estabeleceremos
a “regra verde”: não tirar da natureza mais do que ela é capaz de regenerar por
si mesma. Propomos proteger os bens comuns e o que chamamos de direitos das
espécies. O direito ao silêncio, à alimentação saudável, a respirar ar limpo e
a beber água que não envenene. Essas medidas estão no cerne de nosso programa,
para transformar profundamente a sociedade e construir relações harmônicas
entre os seres humanos e com a natureza. Elas também têm uma aplicação concreta
para orientar a economia, substituindo as lógicas de mercado pelas do
planejamento ecológico. Esse método possibilitará a implementação de grandes
projetos em habitação, energia, agricultura e indústria. Milhares de empregos
serão criados.
“L’Avenir
en commun”, nosso programa, é também uma ruptura com o plano de ação do governo
e a monarquia presidencial. É por isso que passaremos à Sexta República, com
medidas que permitam a intervenção popular, como o referendo revogatório para
qualquer cargo eletivo ou o referendo por iniciativa cidadã. Nos últimos anos,
nosso país foi marcado por poderosas expressões do autoritarismo da Quinta
República, como foi o caso do aumento da idade da aposentadoria para 64 anos,
sem votação na Assembleia Nacional e apesar de uma mobilização popular
histórica. Restauraremos a aposentadoria aos 60 anos, para que todos possam
recuperar o controle sobre seu tempo livre.
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Você pode descrever o tipo de socialismo que propõe para
a França?
JLM:
Prefiro falar de coletivismo. Não se trata apenas de resolver a questão social,
mas também de abordar a questão do interesse humano geral e dos direitos dos
seres vivos, que formam um coletivo sistêmico.
Um novo
mundo está surgindo: um povo urbano, organizado em redes. Essa nova França já
existe em si mesma, seu povo definido por seu conflito de interesses com a
oligarquia. Ela se apropriou das redes coletivas das quais a vida cotidiana
depende. Pensamos que este mundo está chegando ao fim e que apenas dois
resultados são possíveis: o coletivismo ou a lei do mais forte.
Tomemos
o caso da mudança climática, que é inevitável e irreversível. Como reagimos,
como propomos soluções coletivistas? A escolha do individualismo, da lei do
mais forte, significa deixar milhares de pessoas serem envenenadas por produtos
químicos eternos, apenas para manter o ciclo do dinheiro girando. Significa
deixar de planejar para impedir que mega-incêndios queimem tudo, porque os
orçamentos foram cortados.
A lei
do mais forte se expressa quando não há mais uma lógica de progresso coletivo.
Quando um em cada dois franceses é obeso ou está acima do peso, quando a
mortalidade infantil está aumentando há 10 anos, quando uma em cada quatro mães
cria seus filhos sozinha. Quando as fortunas dos bilionários dobraram desde que
Macron se tornou presidente.
O
coletivismo não é uma utopia, mas uma necessidade. Compreender o momento
significa assumir o controle sobre os processos, sermos mestres da situação. O
beco sem saída do sistema capitalista pode ser uma boa notícia, uma
oportunidade para paralisá-lo, para levá-lo aos seus limites. Cada um de nós é
responsável pelo resultado que daremos a essa ruptura.
Fonte: Entrevista
a Walden Bello, no Counterpunch | Tradução: Antonio Martins, em Outras Palavras

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