Extrema
direita, frentes democráticas e socialismo
A
ascensão global da extrema direita e como enfrentá-la tem sido objeto de
inúmeros autores e agentes políticos. Urgência e precisão se impõem. É
exatamente nesse registro que se insere o pequeno livro de Roberto
Robaina, A ascensão da extrema direita e o freio de emergência (Movimento,
2025). Que não nos enganemos, porém: se se trata de um volume compacto, os
problemas de que se ocupa são extremamente complexos. Primeiramente, Robaina se
debruça sobre o fenômeno da extrema direita global e busca um diagnóstico exato
sobre ele, de modo a se instrumentalizar para enfrentá-la politicamente, o que
inclui uma exploração das teorias da personalidade e da psicanálise que a
analisaram. Finalmente, sua resposta política e estratégica retoma debates
antigos e contemporâneos sobre o que envolve organizar frentes políticas que a
confrontem e derrotem. O autor é dirigente do PSOL e do Movimento de Esquerda
Revolucionária (MES), o que implica consequências práticas relevantes para seu
esforço intelectual.
Será
hoje a extrema direita que ascendeu desde o início do milênio o mesmo que o
fascismo clássico? Seria uma espécie de neofascismo ou pós-fascismo ou, ainda,
de maneira mais ampla, uma extrema direita simplesmente neoliberal e
autoritária? A resposta de Robaina segue duas vertentes, uma delas mais
analítica, a outra mais diretamente política.
A
primeira dessas vertentes se vincula à análise de alguns autores relevantes
internacionalmente no debate atual, principalmente Cas Mudde e Enzo Traverso,
assim como algumas de algumas discussões clássicas, incluindo Theodor Adorno.
De Mudde ele retira sobretudo elementos descritivos sobre o que este autor
define como a “quarta onda” internacional da extrema direita, com sua
“desmarginalização”, que também lhe permitem situar essa ascensão da partir dos
atentados terroristas de 11 de setembro em diante, da recessão de 2008 e da
“dita” crise da imigração nos anos 2010. Com Traverso seu confronto é mais
conceitual e político, uma vez que este autor aceita analogias entre
a extrema direita atual sem supor uma homologia direta com o fascismo dos anos
1920-1930. Ou seja, Traverso entende que há muitos elementos em comum entre
ambos, mas prefere falar em pós-fascismo, uma vez que não há propriamente um
movimento fascista em evolução e como base de sustentação a governos de extrema
direita, embora haja em ambos os fenômenos polarização social e política, bem
como a busca de bodes expiatórios.
De
Adorno Robaina retém basicamente as ideias de que o fascismo anterior resulta
dos processos de concentração do capital, com a consequente desclassificação e
decorrente desamparo de setores importantes das massas; de que tem ideologia
frouxa e eclética, que abusa da “mentira tosca”, cultiva um pedantismo
pseudocientífico e inclui uma personalidade de base fixada na autoridade, assim
como apela exclusivamente às emoções, descartando a inteligência. Além disso,
Robaina explora a vasta literatura da psicologia e filosofia dos anos 1920-1930
que buscou entender que mecanismos intrapsíquicos subjazem ao apoio de massas
ao fascismo (ou seja, as obras do próprio Adorno e de Sigmund Freud, Georg
Bataille, Gustave Le Bon e Wilhelm Reich). A entrega ao “homem providencia”,
tal qual destacada por Antonio Gramsci, completa o rol dos diagnósticos.
Enfim,
se não há movimento de massa, nem em contrapartida um movimento revolucionário
pujante, ao contrário do que ocorria nos anos 1920-1920, um Estado ainda mais
poderoso repressivamente está disponível para essa extrema direita. Ademais,
aqueles elementos de cunho analógico estão presentes e a austeridade, ontem e
hoje, são parte do ideário fascista, variações não obstante. Reprimir e
disciplinar a classe dos trabalhadores se acha no centro da agenda dessas
forças. Elas devem ser, por essas razões, definidas como neofascistas. Na
verdade, Robaina acredita que já se formularam as ideias fundamentais desde o
século passado para entender o fascismo –
Mas há
uma segunda vertente argumentativa que dá sustentação à argumentação de que,
como diz Robaina ao abrir as 15 teses que concluem o livro, “a extrema direita
é o neofascismo”: ela é política. A “analogia” aqui é “recomendável” porque
existe, a despeito de sua dificuldade em aprender historicamente, uma “memória”
das massas sobre os horrores produzidos pelo fascismo, o que facilita sua
mobilização, em particular de seus setores “mais ilustrados”, como a juventude
estudantil. Ora, Robaina não quer simplesmente entender a extrema direita de
nossos dias, mas combatê-la. É o que veremos em seguida.
Antes
disso, vale sublinhar que os riscos que nos impõe a extrema direita neofascista
se agudizam uma vez que a crise climática, que se anuncia devastadora, potencia
seus impactos negativos. Robaina crê que nenhum avanço científico é capaz de,
por si, superá-la: não é possível resolver essa crise sem acabar com o
capitalismo. Por sua vez, a extrema direita é o baluarte ao menos potencial,
senão de fato já em muitos lugares ou parcialmente em outros, dos capitalistas,
em um momento claro de crise e decadência do capitalismo, o que inclui o
declínio dos Estados Unidos. Assim, é preciso “acionar o freio de emergência”,
como disse Walter Benjamin há um século, para o que a derrota do fascismo é
essencial.
Há, crê
Robaina, obstáculos dados ao progresso da extrema direita, tais como sua
aplicação de políticas neoliberais, que decepcionam seus apoiadores, e a
importância massiva de pessoas com vínculos com a imigração. Afinal,
apoiando-se em texto de Luciana Genro, Robaina afirma que não é possível
construir um “capitalismo com rosto humano”. Por outro lado, mudanças na
“morfologia do mundo do trabalho” complicam o projeto antifascista e
anticapitalista. No frigir dos ovos, o que importa mesmo é como se articula a
política da esquerda. E é então que Robaina vai buscar insumos na história da
Terceira Internacional – Comunista –, sobretudo com Leon Trotsky – para
articular uma estratégia contemporânea, seja no Brasil, seja no mundo de modo
geral.
Robaina
faz então um rasante nas históricas discussões sobre como combater o fascismo
que tiveram lugar naquela organização. Trata-se de debate extremamente
intrincado, o qual não podemos aprofundar aqui. Ele busca em Trotsky aquele que
teria formulado adequadamente a política de “frente única” operária – mas,
curiosamente, o faz com referência sobretudo a suas propostas anteriores à
ascensão do fascismo e em especial do nazismo alemão. Ora, nos argumentos
iniciais de Trotsky (“Sobre a frente única”, de 1922) sobre a política de
frente única tratava-se sobretudo de ganhar a base socialdemocrata para
posições avançadas, movendo-se de modo a respeitar sua maneira de ver a
conjuntura e sua aceitação do reformismo da Socialdemocracia, principalmente na
Alemanha, sem, deve-se acrescentar, realmente, abrir espaço para o crescimento
da contrarrevolução. Será posteriormente que a questão da frente única contra o
fascismo se colocará, defendida por Trotsky a partir de 1930 (com A
virada na Internacional Comunista e a situação alemã), em um momento em
que, já defenestrado ele da Internacional e expulso da União Soviética. Naquele
momento o stalinismo dominava aquela organização e sustentava uma visão que
culminou em 1928 na política de “classe contra classe”, denunciando a socialdemocracia
de forma ensandecida como “social fascismo”, apenas outra forma de domínio
burguês, no fundo semelhante ao fascismo. Sim, foi de fato após a ascensão do
nazismo que a Terceira Internacional, sob a liderança de Giorgi Dimitrov (com
seu Informe ao VII Congresso de 1935) antes que de Stalin nesse sentido, adotou
a política de “frentes populares”, estendendo-a a setores democráticos liberais
burgueses, o que inclui da Frente Popular francesa com o governo de Leo Blum em
1936 aos governos de coalizão que se seguiram a libertação da Europa do jugo do
fascismo, mas também muitas outras vezes no futuro.
Robaina
critica inclusive Leandro Konder – intelectual destacado do Partido Comunista
Brasileiro durante os anos 1960-1980 – por defender a extensão da política de
frente aos liberais burgueses ao mesmo tempo que criticava Trotsky por recusar
essa estratégia – ou tática, dependendo de como se a vê. A discussão é
intrincada e as políticas de Trotsky deixaram uma marca forte na evolução do
trotskismo, com muitas vezes grande sectarismo mútuo na relação com os partidos
comunistas stalinistas e pós-stalinistas, inclusive quando convertidos ao
eurocomunismo, mas também face a forças socialistas e liberal-democráticas.
Para Robaina, por outro lado, com a situação de Trotsky e a conjuntura da
época, a política do líder dos sovietes de 1905 não pode se provar. De qualquer
modo, vale sublinhar que Trotsky (assim como Ernest Mandel, que Robaina cita
posteriormente) sempre defendeu que as forças comunistas por assim dizer “puro
sangue” se mantivessem independentes em relação a essas frentes, quaisquer que
fossem, para manterem-se também capazes de fazer a classe em seu conjunto
avançar.
Obviamente,
seria interessante explorar a perspectiva do PCB durante os anos da ditadura
militar, em suas limitações e em seu êxito, na constituição de uma “ampla
frente democrática” com “base de massa”, frente ao “regime burocrático
autoritário” (para usar a definição precisa de Guillermo O’Donnell, embora o
epíteto de “fascista” tivesse muito mais produtividade política). Seria
interessante, enfim, confrontá-la com as estratégias da Quarta Internacional,
fundada por Trotsky e colaboradores em 1938, naquela quadra histórica
brasileira também, com ademais suas divisões posteriores e várias correntes.
Contudo, não é isso que me ocupará aqui, inclusive por limitações de espaço,
mas sim como Robaina vê as tarefas de uma esquerda revolucionária na atual
conjuntura.
Correta
e cuidadosamente, Robaina repete mais de uma vez a frase célebre de Lenin: “o
marxismo é a análise concreta da situação concreta”. Não há “fórmulas prontas”,
argumenta, sem que se deva desprezar a “experiência histórica”. É preciso, sim,
manter um polo próprio dos revolucionários, mas seria simplesmente
aventureirismo atacar governos democráticos em um momento de ascensão do
neofascismo, ainda mais em uma situação de baixa atividade das massas. A
esquerda deve ter um programa de transição adequado a suas reivindicações
concretas, imediatas, e a seu nível de consciência – e a própria ascensão
contemporânea da extrema direita, a despeito de fortes resistências, revela que
essas massas são ainda bastante atrasadas. Em suma, nem se deve permitir o que houve
com o Partido Comunista Italiano (PCI), que se autodissolveu e não foi capaz de
aproveitar a crise do sistema político do país, afundado na corrupção, ao
contrário, apostando na ação e na mobilização de modo a desenvolver a
consciência dessas massas, nem cabe sucumbir ao adesismo a governos
democráticos que não sejam capazes de avançar de forma consequente com uma
agenda popular (e muito menos ainda aceitar medidas que vão contra os
interesses dos trabalhadores). É a luta que desenvolve a consciência e a
confiança das massas. Não cabe, portanto, participar de governos da burguesia
ou de partidos de trabalhadores que não sejam dela independentes, sem que isso
signifique desprezar a unidade de ação com essas forças na medida em que se
batem contra o fascismo.
Segundo
Robaina, essa é a linha do MES-PSOL hoje, ao adotar uma política de frente que
parte da “análise concreta da situação concreta” do Brasil. A postura que se
deve ter frente à atuação do Supremo Tribunal Federal é nesse sentido um
exemplo muito expressivo. O STF tem sido, com o ministro Alexandre de Moraes,
decisivo na luta contra o bolsonarismo e a tentativa de golpe da extrema
direita, defendendo a democracia liberal que também ao menos em larga medida
serve aos trabalhadores. Nisso deve ser apoiado. Por outro lado, o STF tem
votado sempre contra o interesse dos trabalhadores, consolidando assim as
reformas trabalhistas neoliberais. Aí tem que ser criticado e devemos a ele nos
opor. Além disso, uma eleição que se joga em dois turnos para os cargos executivos,
como é o caso do Brasil, permite manter um polo mais à esquerda claro e
garantir a unidade das forças antifascistas em um segundo turno, dependendo a
tática a ser empregada no primeiro da situação específica de cada eleição.
Enfim, se e quando se deve passar dessa postura defensiva na luta contra o
fascismo a uma postura ofensiva anticapitalista tampouco está dado: é a
evolução da correlação de forças eu deve orientar a esquerda revolucionaria.
Não estamos de forma alguma em uma situação revolucionária, ao contrário dos
anos 1930 na França, por exemplo. Em contrapartida, não se deve supor que a
relação entre, por assim dizer, objetivos de curto e médio prazo e aqueles de
longo prazo, ou seja, a revolução, se deixam enquadrar por uma perspectiva “etapista”.
É a evolução da “luta” que decidirá seus desdobramentos, conclui Robaina.
Gostaria
agora de debater essas duas dimensões da reflexão de Robaina – seu diagnóstico
sobre a extrema direita contemporânea e sua visão estratégica e tática. Creio
que já em alguns momentos deixei entrever minhas concordâncias e divergências
com as suas formulações. Vou detalhá-las a seguir.
Em
primeiro lugar, deve-se diferenciar movimentos fascistas
de regimes fascistas – e até certo ponto também de governos
compostos ou dominados por fascistas. Movimentos fascistas tradicionais não
existem com grande força hoje. Por isso Traverso – e de certo modo também
Robaina – identificam analogias – não homologias – entre o fascismo histórico e
o atual (Robaina inclusive reconhece que os mecanismos da “personalidade
autoritária”, como aqueles ligados à repressão da sexualidade, já não operam).
Curiosamente, ele não se refere às redes sociais, nas quais algo como a
mensagem e propaganda neofascistas junto às grandes massas se difundem, ainda
que se conte mais com dinheiro do que propriamente militância, que funciona
sobretudo na ponta, de forma frouxa. Evidentemente, a polarização, o
irracionalismo, as mentiras e a busca de bodes expiatórios – os imigrantes no
presente, os judeus no século passado, mas que podem voltar a sê-lo no futuro –
são elementos comuns às extremas direitas de ontem e hoje. Vale observar,
finalmente, que é sempre quando a esquerda é derrotada, em boa medida por seus
erros políticos, que o espaço se abre para a ascensão da extrema direita. O
caso brasileiro é, sob esse aspecto, exemplar, porém apenas um entre outros.
Do
ponto de vista dos governos atuais de extrema direita, embora sejam todos
inclinados ao autoritarismo, em nenhum lugar em que chegaram ao poder houve
mudança do regime democrático liberal representativo para um regime realmente
autocrático, para não dizer fascista. A autocracia russa de Vladmir Putin é
diferente, uma vez que não se pode dizer que em algum momento houve por lá
aquele tipo de democracia. De qualquer forma, trata-se de um regime que não
dispensa uma fachada democrática mínima. A Hungria e a Turquia são mais
autoritárias, de fato. De forma geral, porém, é mais uma espécie de oligarquia
liberal avançada, com veleidades representativas e mais repressão, com
traços autocráticos mais ou menos fortes e muita personificação do poder, o que
encontramos nesses países. Os Estados Unidos mudarão de regime, em uma direção
autocrática, para não dizer fascista, sob Donald Trump e quem venha a lhe
seguir? É muito cedo para dizer, embora a constituição liberal do país esteja
sendo lida de forma mais autoritária e a extrema direita que ocupa
posições-chave no governo projete um regime no mínimo mais duro. Javier Milei
na Argentina é intrinsicamente autoritário, mas nada indica que seja capaz de
mudar o regime político argentino e a italiana Giorgia Meloni parece mais uma
política conservadora tradicional. ao passo que Jair Bolsonaro tentou um golpe
anacrônico em busca de um regime burocrático autoritário (o qual
seria, todavia, sangrento, se levado à frente, até ser derrotado). Isto posto,
não há razão para excluir a possibilidade de que grupos de extrema direita ao
chegarem ao poder resolvam e possam ir mais longe do que até hoje foram.
Isso em
si justifica os esforços para derrotar essas correntes de extrema direita que
abrigam em si elementos do neofascismo ou sejam abertamente autoritários. No
caso brasileiro, em particular, a “análise concreta da situação concreta” nos
aconselha a realmente persistir na mobilização de uma ampla frente democrática.
Em nenhum lugar do mundo uma corrente ou presidente tão de direita como o
bolsonarismo chegou ao poder. E, se bem que derrotado em sua tentativa de
golpe, além de insistir em desperdiçar capital político – seja na maneira com
que tratou a pandemia do COVID-19, seja ao aliar-se a Trump para tentar se
defender, atuando contra a soberania nacional –, o bolsonarismo e a extrema
direita seguem incrivelmente vivos na sociedade e no sistema político.
Constitui uma espécie de neofascismo, no estilo brasileiro estatal, todavia com
mais base de massa do que outrora. Pode sem dúvida reemergir, agora ou em
futuro próximo, até com força inesperada.
Mas
modular essa ideia de frente democrática é realmente necessário. O liberalismo
assumiu ao final do século XIX e durante grande parte do XX um movimento
expansivo, em direção democrática e com relação à ampliação de direitos,
calcado em forte expansão econômica. A própria socialdemocracia foi parte desse
momento de expansão do liberalismo. Será possível retomar isso? As indicações
são negativas. Assim, é imperativo que a democracia e as políticas sociais,
para não falar da mudança climática que preocupa justamente a Robaina, sejam
capitaneadas, defendidas e expandidas forças à esquerda, à frente socialistas
de várias estirpes, embora o mundo possa seguir girando, com seus problemas e
soluções subótimas, se não reacionárias, caso isso não ocorra.
Mas
também em relação ao socialismo revolucionário as indicações são no mínimo
problemáticas, incluindo as mudanças fragmentadoras no mundo do trabalho e as
justas reivindicações de autonomia política e horizontalidade democrática (que
os sovietes russos tampouco souberam solucionar ao ater-se a ideia de que
bastava mudar a classe social dominante para que o poder político deixasse de
ser dominação, com consequências trágicas). Um outro socialismo, que desponta
aqui e ali, com Die Linke, na Alemanha, e alguns agentes como Zohran Mandami,
candidato a prefeito de Nova York, se mostra igualmente necessário, recuperando
e atualizando a agenda histórica da esquerda, sem que se saiba onde essa
renovação vai finalmente desembocar, e sem que haja garantias de que triunfará.
É de nossa vontade e ação – e imaginação! – que isso depende.
Sem
dúvida, não há contradição entre lutar pela democracia e por um projeto
transformador radical, ainda que não haja já um desenho claro do que isso
significa, afora que queremos uma liberdade igualitária para muito além do
liberalismo, para todos, e solidariedade forte e estendida, democracia radical
e uma mudança de rumos no que toca a nosso trato com a “natureza”, com certeza
para a esta altura minimizar o câmbio climático e nos adaptar ao inevitável
Antropoceno, porém também tratar nosso “meio-ambiente” de forma mais comedida e
amigável de modo mais geral, para além do capitalismo. Passar a uma sociedade
socialista dificilmente ocorrerá, contudo, antes de um processo de longo prazo,
com uma construção de hegemonia, reformas parciais, muita mobilização e
democratização plebeia radical. É preciso em particular dar atenção à política
e evitar uma tentativa de hegemonização a todo custo que afaste aliados e
bloqueie alianças, como se vê com tanta frequência na história das esquerdas.
Em
particular, a temporalidade dilatada da transformação social radical implica,
consequentemente, que, se temos que enfrentar a mudança do clima, sobretudo o
aquecimento global, abandonando os combustíveis fósseis com a máxima urgência,
teremos de fazê-lo, inevitavelmente, dentro capitalismo e com políticas de
aliança com setores liberais racionalistas. Pode-se e deve-se mesmo entender a
luta contra a mudança climática como parte de uma luta transformadora mais
geral, implicando, por outro lado, ao mesmo tempo politicas incisivas, que vão
mais além dos desejos e interesses dos capitalistas, e alianças amplas, bem
como uma visão de longo prazo do processo. Projetos como os Green New Deals
liberais podem e devem ser parte da construção de um “bloco histórico”, como
sugeria Gramsci, com desdobramentos orientados eventualmente para o socialismo
(incluindo alguma espécie de ecossocialismo que afaste perspectivas ascéticas
para as grandes massas). Não podemos acionar o freio de emergência somente se e
quando uma agenda revolucionária, em sentido amplo, estiver em questão. É
imperativo começar, rápida e radicalmente, a implementá-la hoje.
Seja
como for, a elaboração de Robaina cumpre papel fundamental na atualização de
aspectos fundamentais da perspectiva teórica e política da esquerda
revolucionária de filiação trotskista. A valorização da democracia foi fenômeno
crucial na esquerda internacional e especialmente no Brasil na virada dos anos
1970 para os 1980. Com a derrota das manifestações de Junho de 2013, seguidas
pelo golpe parlamentar contra a presidenta Dilma Rousseff e pela ascensão da
extrema direita, esse legado tem sido com frequência desconsiderado em nosso
país e, por razões mais amplas, internacionalmente. Acertando na recusa de
ligar a luta pela democracia, e em certa medida ao menos, uma “etapa”
específica, Robaina, à sua maneira recupera aquele legado, buscando, em sua
visão estratégica e em seus movimentos táticos, mais uma vez conectá-lo ao
socialismo. Não temos como pensá-los, ambos, senão de forma inovadora e aberta.
O
quadro se completaria se Robaina procedesse, ademais, a uma reflexão sobre as
estruturas dos partidos políticos, em particular em sua versão leninista,
vertical, e sua relação com movimentos e organizações sociais (e das estruturas
destes a destas também, aliás). Elas se mostram muito desatualizadas frente às
transformações sociais contemporâneas e em particular à autonomia política dos
cidadãos, que evidenciam grande ojeriza plebeia no que se refere a estruturas
verticais e com frequência oligarquizadas. É o que se tem observado nas
mobilizações sociais mundo afora. Pode-se esperar que Robaina o faça em outro
momento?
Fonte:
Por José Maurício Domingues, em A Terra é Redonda

Nenhum comentário:
Postar um comentário