Nos
EUA padre assume a tutela de 26 crianças de pais sob risco de deportação
Da
noite para o dia, o padre Vidal Rivas poderá ficar encarregado de cuidar de um
bebê de 12 meses ou de um adolescente de 17 anos, que precisaria acolher em sua
casa, alimentar, vestir e criar até que ele termine o ensino médio.
Ele
também poderá precisar se encarregar dos trâmites para que diversas crianças
possam viajar para o país de origem dos seus pais e acompanhá-los até seu
reencontro.
O
carismático sacerdote, que comanda a Igreja Episcopal de São Mateus em
Hyattsville, no Estado americano de Maryland, se comprometeu a assumir a tutela
temporária de 26 menores, caso seus pais sejam deportados.
"É
uma responsabilidade muito grande, que mudaria completamente a vida da minha
família", reconhece ele à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
"Minha esposa e eu temos consciência disso, sabemos o que isso
significa."
Religiosos
episcopais podem se casar segundo a tradição anglicana.
O
presidente americano Donald Trump iniciou seu segundo mandato em janeiro, com a
promessa de realizar "a maior deportação da história do país". E,
desde então, muitos imigrantes sem documentos trataram de deixar tudo
resolvido, caso sejam detidos e expulsos dos Estados Unidos.
Eles
procuraram, no seu entorno mais próximo, pessoas de confiança, como o padre
Rivas, para que cuidem dos seus filhos durante a sua ausência.
Esta
medida faz parte do que organizações e especialistas judiciais chamam de
"plano de preparação familiar", algo cada vez mais praticado por
famílias com situações migratórias mistas, em que pelo menos um dos seus
membros não tem documentos.
"Isso
implica manter conversas incômodas e tomar decisões dolorosas", explica
Kristina Lovato, diretora do Centro de Imigração e Bem-Estar Infantil (CICW, na
sigla em inglês) da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos.
"Mas ser precavido facilita tudo na hora de lidar com uma emergência e
suas consequências."
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'Minha filha não ficará no limbo'
Existem
atualmente mais de seis milhões de famílias em condições migratórias mistas nos
Estados Unidos. Este número representa cerca de 5% do total, segundo números da
organização Pew Research Center.
Segundo
os dados do CICW, pelo menos um dos progenitores de 5,9 milhões de crianças não
tem documentos.
A este
número, é preciso somar mais de 500 mil crianças que têm pais amparados pelo
Status de Proteção Temporal (TPS, na sigla em inglês), que o atual governo
tenta revogar para cidadãos de diversos países, e pela Ação Diferida para os
Chegados na Infância (Daca, na sigla em inglês).
Especialistas
defendem que este programa, criado durante o governo do ex-presidente americano
Barack Obama (2009-2017), atualmente está "se enfraquecendo".
Desde o
início do ano até o mês de setembro, mais de 400 mil pessoas foram deportadas
dos Estados Unidos, segundo os últimos números publicados pelo Departamento de
Segurança Nacional do país (DHS, na sigla em inglês).
E os
dados oficiais mais recentes indicam que, em 16 de novembro, o Serviço de
Imigração e Alfândega dos Estados Unidos (ICE, na sigla em inglês) mantinha
65.135 pessoas em centros de detenção espalhados pelo país. Este é o maior
número registrado pela agência desde a sua criação, em 2003.
Dentre
as pessoas detidas, 48% não tinham acusação, nem condenação penal nos Estados
Unidos. Elas permaneciam em custódia por violações civis das leis americanas de
imigração.
Esta
situação vem preocupando os fiéis da Igreja Episcopal de São Mateus, segundo
seu pároco.
O
município de Hyattsville, ao qual pertence a igreja, é um subúrbio da capital
americana, Washington.
Mais de
40% dos seus quase 21 mil moradores são latinos e um terço deles nasceu em
outro país. Por isso, a cidade não está livre das detenções.
"As
pessoas têm muito medo, mas dizer isso é pouco", destaca o padre Rivas.
"Na verdade, é terror de sair e até de ficar no templo."
Vidal
Rivas é oriundo de El Salvador e chegou aos Estados Unidos em 1998.
"Eu
mesmo sou imigrante e, embora tenha vindo com residência pelos sacerdotes que
me trouxeram para trabalhar neste país, acompanhei a dor do meu povo [durante a
guerra civil salvadorenha, 1980-1992] e agora vejo isso aqui. Olho as pessoas
em sofrimento todos os dias."
Por
isso, o padre e membros da sua paróquia decidiram tomar ações para que os fiéis
e a comunidade em geral possam se sentir mais seguros.
Os
serviços religiosos, agora, são realizados a portas fechadas. Diversos
voluntários vigiam a entrada e as vizinhanças.
Eles
também começaram a incentivar os devotos a se prepararem para qualquer
eventualidade relativa à migração, procurando guardiões temporários para seus
filhos, como permite a legislação estadual.
"Com
isso, descobrimos que muitas famílias não têm membros com residência permanente
[green card] ou cidadania americana", lamenta Rivas. "É muito triste
ver que eles não encontram ninguém e entram em grande desespero."
"Foi
aí que precisamos ensiná-los a procurar pessoas de confiança que possam servir
de tutores."
Mimi
(nome fictício) é uma mulher sem documentos de 40 anos e mãe solteira de uma
adolescente de 16. E, como tantas outras pessoas, ela encontrou essa figura no
próprio padre Rivas.
"Passei
muitos dias e noites pensando nisso", contou ela à BBC News Mundo.
"E, embora seja uma decisão muito difícil, sei que é a melhor."
Ela
afirma que se sente aliviada por saber que, se for deportada, sua filha não
ficará "no limbo".
Mimi
explica que a possibilidade de que "possa vir um assistente social e
levá-la, que ela fique nas mãos do governo ou que a deem em adoção" seria
seu maior pesadelo.
O nome
verdadeiro e a nacionalidade de Mimi são omitidos para proteger sua identidade.
A mãe
combinou com o padre Rivas que ele deverá se encarregar de todo o necessário
para que a menor, diagnosticada no espectro autista, se encontre com ela no seu
país de origem.
"Gostaria
que minha filha continuasse estudando, que terminasse seus estudos, mas, com
esta situação, nunca nos separamos e não acredito que ela queira ficar sem
mim."
Esta é
a missão recebida por Rivas de alguns dos pais de outros 25 menores, para quem
foi nomeado tutor temporário. Outros pediram que seus filhos fiquem nos Estados
Unidos, pelo menos até terminarem o ensino médio.
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Revogável por até seis meses
Para
que isso seja possível e amparado pela lei, todos os fiéis preencheram e
assinaram um formulário de designação parental para o início da tutela de
reserva.
"É
a ampliação de uma figura legal existente em Maryland desde a epidemia de Aids,
nos anos 1970", explica à BBC a advogada especializada em direito de
família Cam Crockett. Ela exerce a profissão no Estado há 40 anos e foi uma das
promotoras da lei atual de tutela de emergência.
O
Congresso estadual aprovou esta lei por unanimidade em maio de 2018. Além dos
casos de incapacidade mental ou debilidade física, ela permite que os adultos
designem um tutor reserva para seus filhos, para o caso de detenção pelas
autoridades de migração ou deportação.
"Ela
é ativada quando ocorre a emergência e dura seis meses, mas os pais podem
revogá-la a qualquer momento", prossegue Crockett.
Os
progenitores não perdem o pátrio poder, mas especificam no formulário o que o
tutor pode fazer em seu nome, desde matricular os menores na escola ou
interná-los em hospitais, até reservar voos e hotéis para eles, receber
dinheiro ou tomar decisões financeiras.
"O
que sugerimos é que se pense muito bem antes de escolher o potencial tutor, já
que ele poderá precisar comparecer a um tribunal ou tomar um voo para outro
país", explica a advogada.
Caso os
pais desejem que a situação se estenda por mais de 180 dias, eles precisam
buscar a tutela permanente ou avaliar uma custódia por terceiros. Para isso, a
especialista recomenda consultar um advogado para examinar cada caso
específico.
Mas a
tutela de reserva não existe desta forma em todos os Estados americanos.
"Por
isso, é muito importante que os interessados procurem bom assessoramento
jurídico no Estado onde morem, pois as leis mudam de um Estado para
outro", destaca a advogada Sharon Balmer Cartagena, diretora do Projeto de
Defesa da Infância, Juventude e Família da organização Conselho Público.
"Existem
muitos grupos, também online, em que as pessoas aconselham sobre este tema, mas
um conselho muito bom para o Texas pode ser muito ruim na Califórnia",
explica ela.
Na
Califórnia, onde trabalha Balmer Cartagena, a tutela temporária não existe.
Naquele Estado americano, a tutela outorga à pessoa designada a custódia legal
e física completa da criança.
Para
recuperar o pátrio poder, os pais da Califórnia precisam apresentar um pedido
ao juiz, que irá decidir qual é a melhor opção para o menor.
"Pode
ser uma boa alternativa se os pais concordarem que a pessoa designada
praticamente se transforme em progenitora dos seus filhos", prossegue a
especialista.
"Mas
o que acontece se o tutor, digamos que um primo, decidir que já não é benéfico
para o menor que ele mantenha contato com seus pais? Ele estará no seu direito
se decidir desta forma."
"A
tutela se destina a crianças que ficarão com outra pessoa de forma
permanente", explica Balmer Cartagena.
"Não
a recomendamos para quem desejar que seus filhos se reúnam algum dia com eles
no país de origem. Eles deveriam optar por uma declaração juramentada de
autorização de cuidadores."
Por
meio deste acordo mais simples, cada vez mais famílias sem documentos ou de
status misto residentes na Califórnia deixam a cargo dos seus irmãos, primos,
padrinhos ou amigos decisões escolares ou médicas que afetam seus filhos.
A
advogada reconhece que, durante suas apresentações à comunidade, explicando
como fazer um plano de preparação familiar, muitas pessoas afirmam não terem
ninguém nos Estados Unidos que possa desempenhar esse papel.
"O
que fazemos é incentivá-los a pensar de forma mais ampla, pois tivemos casos em
que uma professora ou a família para quem a cliente trabalhava como cuidadora
ofereceram seu breve apoio para facilitar a reunificação após a
deportação", ela conta.
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Mais consciência e preparação
Da
mesma forma que o Conselho Público, outros grupos, voluntários e ativistas de
praticamente todos os Estados americanos oferecem há meses oficinas sobre como
preparar um plano de emergência familiar, além de sessões de divulgação com o
título "Conheça seus Direitos".
Nelas,
eles reiteram aos participantes que eles podem omitir informações pessoais e se
negar a assinar qualquer documento. Eles distribuem folhetos e oferecem
assistência jurídica por telefone.
E
também divulgam o chamado "cartão vermelho", disponível em 19
idiomas, relembrando aos imigrantes seus direitos constitucionais e resumindo
as medidas a serem tomadas ao interagir com os agentes do ICE.
Patrulhas
comunitárias percorrem bairros e presenciam batidas, para garantir o
cumprimento de todos os protocolos ou documentá-los em caso de violação de
direitos. Os vídeos gravados por estes voluntários são publicados diariamente
nas redes sociais.
Funcionários
do governo Donald Trump atacaram essas ONGs e seus voluntários. Eles afirmam
que suas ações "ajudam" os imigrantes sem residência legal a
"desafiar" os agentes do ICE e "se esconder".
"Eles
dizem 'Conheça seus Direitos', eu chamo de 'Como Escapar da Prisão'",
declarou, certa vez, Thomas D. Homan, o "czar da fronteira" de Donald
Trump, que chefia as operações de deportação.
De
qualquer forma, todos estes esforços também destacam a consciência cada vez
maior da necessidade de se antecipar, sobretudo mantendo pronto um plano que
inclua os cuidados com as crianças.
"Existe
uma campanha relativamente bem sucedida na comunidade imigrante e, quando falo
com meus clientes, encontro perguntas mais estudadas e específicas, pois eles
já conhecem as questões básicas", declarou em março à BBC News Mundo a
advogada de imigração Kate Lincoln-Goldfinch, que trabalha na região central do
Estado americano do Texas.
"Toda
pessoa sem documentos precisa consultar sua situação com um advogado de
imigração", destaca ela, e deve também ficar bem preparada para uma
eventual emergência.
"Porque,
quando há uma detenção, é como um incêndio: ninguém tem tempo de pensar e,
depois, agir."
"Por
isso, é fundamental reservar o tempo antecipadamente, por mais desagradável que
seja, e pensar em quem irá recolher as crianças; se a escola tem as
autorizações necessárias; se juntamos os documentos em uma pasta, incluindo as
informações sobre contas bancárias; se sabemos onde estão as chaves do carro e
o seguro... E ter tudo isso claro em um mesmo lugar, para que alguém que
precise possa vir recolher e administrar nossas vidas por nós", explica
Lincoln-Goldfinch.
Fonte:
Por Leire Ventas, correspondente em Los Angeles (EUA), BBC News Mundo

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