Agências
norte-americanas e a difusão do neoliberalismo
Esses
dias, e pouco importa o local e as circunstâncias, ouvi uma defesa apaixonada
do jornalismo. Surgía como persona. Antropomorfizado. Ente ahistórico.
Como tivesse vida própria, singular, independentemente da sociedade. Ator, a
caminhar pelo mundo, permanentemente atacado pela direita e pela esquerda. Na
visão do formulador, o jornalismo era um ator necessário, nem de direita, nem
de esquerda. Para, quem sabe, regular o mundo. Precisava ser salvo.
De
cara, quero acentuar a natureza subordinada da atividade jornalística. Nasce
como necessidade da Revolução Burguesa. Ao nascer assim, tão atraente,
cheio de viço, possibilidades, atrai muitos revolucionários. Surpreenderemos
Marx, Lênin, Gramsci como jornalistas, para citar três, todos memoráveis. Cada
um a seu modo e situado, marcado pelo tempo histórico, pelas circunstâncias em
que viviam.
Marx,
um tempo como jornalista liberal, revela-se incapaz de suportar por muito tempo
as vacilações da burguesia quando na condição de editor-chefe da Gazeta Renana.
Seguirá como jornalista vida inteira, mas não mais dirigindo qualquer
órgão de comunicação burguês, como fizera antes, porque aí já rompido com o
jornalismo liberal, embora vida inteira escrevendo para grandes publicações,
modo a ganhar uns trocados.
Lênin,
fazendo da atividade ferramenta revolucionária. Compreendeu o quanto era
importante valer-se do jornalismo para impulsionar a revolução.
Gramsci,
como crítico literário, e profunda consciência crítica, com a visão nítida de
que um conjunto de jornais, à época, configuraria um partido político. Um
precursor da crítica profunda ao jornalismo, desmontando ilusões.
Não
comungo dessa espécie de senso comum em torno do jornalismo. Colocado num
pedestal, ou num altar, espécie de defensor da verdade, acima do bem e do mal.
Talvez
ofenda a alguns liberais embevecidos, e pareça um pouco grosseiro, fora de
moda: o jornalismo é um discurso permanentemente atravessado pela luta de
classes. Condicionado por ela. Até porque nasce, já se disse, como necessidade
de uma revolução. Instrumento essencial da Revolução Burguesa. Não nasce
espontaneamente, como uma iniciativa de seres humanos virtuosos,
iluminados.
Surge
como iniciativa progressista, vinculada à burguesia nascente, disposta a
derrotar o mundo feudal. Fixou logo de saída o respeito à chamada liberdade de
imprensa, demanda importante na fase inicial, mais tarde, palavra de ordem
vazia.
A
história caminha, a nova classe se constitui como força hegemônica
descartando-se as forças do medievo. Quando a burguesia, já classe dominante,
tem de lutar para se manter no poder, o jogo muda, se torna violento. Não
pelejará com punhos de renda. O Estado burguês a serviço da burguesia, usa toda
força para massacrar o novo sujeito histórico, o proletariado.
Atravessado
pela luta de classes, e a serviço da burguesia, o jornalismo torna-se
instrumento essencial da contrarrevolução, condição da qual jamais saiu, ao
menos jamais escapou de ser cão de guarda dos interesses do capitalismo,
serviçal do mundo do dinheiro. Não teve dúvidas disso quando de
movimentações insurrecionais na Europa, no século XIX, quando, por exemplo, da
Comuna de Paris, vale-se de violência brutal contra trabalhadores, homens e
mulheres dispostos a assaltar os céus. Diante das insurreições, revoluções, o
jornalismo é posto à prova.
A
modernização da atividade, a padronização, o surgimento do lead, a chamada
objetividade, o situa de modo mais nítido no âmbito do capitalismo na fase
superior, logo ao final do século XIX, o imperialismo batendo às portas. Como
tudo, a notícia também se transforma em mercadoria, menos valor de uso, mais
valor de troca.
Há os
que pretendem levar o jornalismo ao altar: atividade sagrada, infensa às
contradições do mundo, separada do movimento real das classes sociais. Produziu
e produz coisas boas, muitas, dizem. E é verdade. Jornalistas conseguem isso,
nas brechas do sistema.
Nunca
deixou, no entanto, de ter um núcleo duro, o das cláusulas pétreas – situadas
no mundo econômico, o mundo da extração da mais-valia, do lucro, atualmente
incluído o da austeridade fiscal, mundo da garantia dos juros a serem pagos aos
rentistas. Este mundo, o jornalismo empresarial defende como autêntico cão de
guarda.
Sempre
teve lado, o lado dos dominantes, por mais que se constatem os esforços
cotidianos, quase heroicos, de jornalistas, a buscar brechas o quanto possam,
já acentuei isso. Nunca deixei de ser jornalista, sempre em busca de caminhos
de uma atividade em busca da verdade, utopia do jornalismo, indispensável.
São
aproximações de minha visão sobre o jornalismo. Com tal compreensão, quero
chegar ao recente e fundamental trabalho desenvolvido pelo jornalista Bob
Fernandes, um dos mais argutos e preparados repórteres presentes no jornalismo
brasileiro, uma densa série documental em torno da construção do discurso
neoliberal no Brasil.
Discurso
assumido com gosto pelas redes e meios de comunicação empresariais, todos
envolvidos com essa nova razão do mundo, o neoliberalismo, assim chamado por
Pierre Dardot e Christian Laval num livro imprescindível: “A nova razão do
mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal”. Nada acontece como um raio caído
num dia de céu azul. Como disse, construção. Série editada no Canal Bob
Fernandes, no YouTube. https://youtu.be/n6F2kjLnN3g Essencial para
quem quiser compreender como se constrói na sociedade e no jornalismo o
discurso hegemônico em torno do neoliberalismo.
Jornalismo,
no senso comum, aparece como verdade. Como se o discurso neoliberal, presente
de modo avassalador nas redes de comunicação empresariais, surgisse assim, de
surpresa. Os dogmas dessa fase do capitalismo, dogmas neoliberais, se
disseminam, como se naturais fossem. Como se não dependessem de uma construção
político-cultural-ideológica, capaz de se impor como visão de mundo,
naturalizada. Dependem.
Podem
acontecer surpresas, como a resistência de áreas da grande mídia ao
negacionismo desse ou daquele chefe de Estado, como ocorreu no Brasil. Nenhuma
mudança acontece, no entanto, com os dogmas, com as cláusulas pétreas da grande
mídia empresarial. Ao assegurar a vigência de tais cláusulas, acontece a defesa
do capitalismo neoliberal, com toda a violência dele emanada, a desigualdade
produzida, a precariedade das condições de vida reafirmadas e aprofundadas.
Só
olhar a cobertura recente da economia brasileira: diante de números
positivos do governo Lula, do quase pleno emprego, crescimento da economia,
inflação controlada, distribuição de renda, e até dólar em baixa e bolsa em
alta, há sempre lamento, crítica.
Nessa
cobertura, o discurso gira em torno de manter os juros altos, diminuir o ritmo
de crescimento, não permitir o desemprego em níveis tão baixos, tirar recursos
do Bolsa Família, do BPC, não permitir aumento do salário mínimo.
Tais
meios de comunicação sequer se escondem. Quando há alguma desaceleração do
ritmo de crescimento, ou indícios disso, a mídia comemora, como se agora sim,
as coisas estivessem entrando no eixo. Os juros altos estão ajudando, celebram.
Tudo,
no fundo, e não é preciso muita perspicácia nem inteligência para perceber
isso, gira em torno da garantia dos rendimentos do grande capital, a quem tal
mídia deve obediência, não fosse pela condição de participante do clube, pela
formação ideológica quase ancestral, reforçada, construída, reconstruída, como
vamos demonstrar a partir do trabalho de Bob Fernandes, por agências
internacionais, desde os EUA. A construção da hegemonia das classes dominantes
não nasce do céu.
Com tal
trabalho, Bob Fernades deixa o rei nu. Produzirei uma pequena série, com o
objetivo de botar no papel, no dizer de jornalistas antigos, o documentário
produzido por ele, modo a desmascarar a ideia de um jornalismo pairando sobre a
sociedade, imparcial e verdadeiro, e não como parte de um grande projeto
político, como autêntico partido político, como Gramsci um dia, já faz um
século, localizou.
O
documentário, apresentado em alguns capítulos, demonstra como a atividade de
agências norte-americanas voltadas ao trabalho de influenciar povos e governos
constituem pontes para golpes. E, também, para reforçar a tendência de
mídias já vinculadas a classes dominantes locais, sempre prontas a reverberar o
pensamento do império. Tais agências interferem decisivamente na vida política
dos povos, nesse caso especialmente na América Latina.
Esse
esforço jornalístico demonstra como agências norte-americanas conseguiram
plasmar uma visão de mundo, intervir em tantos países latino-americanos,
influenciar o desenvolvimento, crescimento da extrema-direita, ser essencial
para o surgimento dos Bolsonaro, Milei e tantos outros. Dar lastro às novas e
cruéis formas de exploração do trabalho. Foi, é, uma gigantesca operação,
inegavelmente bem-sucedida até agora. E o mundo empresarial-jornalístico não é
ator inocente, ao contrário.
O
documentário desmonta qualquer tentativa de caracterizar tal intervenção como
parte de teorias conspiratórias. Revela a prática dos meios empresariais de
comunicação inteiramente, completamente vinculada à ideologia defendida por
aquelas agências. Vamos combinar uma coisa: na alma desse mundo midiático,
inequivocamente, já estava presente o espírito do capitalismo. A afirmação do
neoliberalismo como nova razão de mundo se deu sem nenhuma dificuldade.
Antes
da primeira entrevista, Bob Fernandes faz uma introdução. Revela provas em
profusão, dispostas em 143 caixas, a evidenciar como foi articulado e expandido
o projeto neoliberal no Brasil. As caixas estão no Instituto Hoover,
Universidade Stanford, EUA. Ele faz um breve histórico.
Em
1982, surge a Fundação Atlas Network, criada pelo empresário britânico Sir
Anthony Fisher, e dirigida por Alejandro Chafuen até 2018, quando então ele
passa a ser membro executivo sênior do Action Institute. Tal fundação foi
decisiva para o desenvolvimento da operação neoliberal no Brasil e mundo afora.
E não
foi apenas difusão do pensamento, absolutamente essencial ao reforço da
ideologia neoliberal. Também atuação direta, presença de Chafuen no Brasil
várias vezes, articulador de manifestações pela queda de Dilma. Discurso e
prática. Atuação política e ideológico-cultural.
As
agências norte-americanas nunca brincaram.
Só de
passagem, lembrar de Primavera Árabe: tudo articulado para a chegada de
governos de extrema-direita.
As
manifestações de 2013, no Brasil, às vezes celebrada por uma parte do
pensamento de esquerda, não eram outra coisa. Articuladas desde fora, de modo a
derrubar Dilma, e derrubaram. Houvesse gente bem-intencionada, e havia, foram
usadas para o propósito de tirar a presidente do caminho, e abrir a estrada
para a chegada de Bolsonaro, como abriu.
O
objetivo da Atlas Network, nítido: construir uma rede mundial de institutos
liberais de modo a acelerar a chegada da doutrina liberal ao maior número
possível de países mundo afora.
Não
custa recordar: tal rede estava apoiada no ideário de Friedrich Hayek e Milton
Friedman, notórios teóricos do neoliberalismo.
O
primeiro, seguramente o mais consistente e disciplinado defensor do pensamento
neoliberal, inimigo do socialismo, partidário do livre mercado. Inspirador, em
1947 da criação da Mont Pèlerin Society, organização a agrupar intelectuais
alinhados à luta contra a visão socialista. Nessa sociedade, já estava Milton
Friedman.
Hayek
nunca escondeu a tendência autoritária. Democracia devia ser considerada um
meio, nunca um fim em si mesmo. Após visitar o Chile sob ditadura, chegou a
dizer não ter encontrado uma única pessoa no país que não concordasse “que a
liberdade pessoal estava muito maior sob Pinochet que sob Allende”. Acreditava
nisso, era a forma como ele enxergava a liberdade.
Não por
acaso, o Chile foi o primeiro país a experimentar o modelo neoliberal, ancorado
assim numa das mais violentas ditaduras daquele período histórico.
No
primeiro ano de atuação, Atlas Network opera com um orçamento de 350 mil
dólares. No último orçamento conhecido, de 2023, a Fundação recebeu nada menos
que 28 milhões de dólares, quantia 80 vezes superior ao primeiro aporte. Entre
1998 e 2018, a organização teve os cofres recheados com 139 milhões de dólares.
No
Brasil, Atlas Network e USAID, de modo a garantir a atuação das duas entidades
com vistas à doutrinação em favor do neoliberalismo, investiram mais de 1
bilhão e 600 mil reais, montanha de dinheiro. Com apoio direto ou indireto do
Estado norte-americano, pavimentava-se o caminho da expansão neoliberal no
Brasil, com a contribuição decisiva dos meios de comunicação.
Esse
trabalho se dava via instituições públicas, como a USAID, ou pelo caminho de
braços supostamente privados, como o National Endowment for Democracy (NED) e o
Center for International Private Enterprise (CIP).
Assim
eram irrigadas as instituições neoliberais, centenas de milhões de dólares
chegados ao Brasil para assegurar o triunfo das ideias neoliberais, a conquista
de corações e mentes, garantir a unidade dos meios de comunicação na defesa
dessa nova razão do mundo. Ao Brasil e à toda a América Latina.
O
neoliberalismo, depois de passar pelo Chile, chega, com impacto mundial, à
Inglaterra, a partir de Margareth Thatcher, 1979, antes de aportar nos EUA e
ser consolidado por 500 institutos liberais mundo afora, 121 deles só na
América Latina.
Tudo
evidencia uma coisa: o capitalismo nunca descuidou da batalha das ideias.
Empenha-se nela com disciplina, muita militância intelectual.
No caso
brasileiro, essa luta em torno dos corações e mentes de nossa gente, uns tantos
institutos trabalhando, ganhou intensidade a partir dos anos 1990, e a chegada
de Collor à presidência da República é sintomática. Após ligeiro governo
de Itamar, é eleito o príncipe do neoliberalismo, Fernando Henrique Cardoso –
por oito anos, seguiu a cartilha neoliberal sem nunca vacilar: tal mérito
ninguém lhe tirará.
Sorte
nossa Lula ter chegado à presidência, ter assumido em 2003. Isso, no entanto,
não elimina as marcas do modelo hayeckiano, a perdurar até os dias de hoje – só
observar impacto da atuação do Banco Central e a lógica da austeridade, a
garantir remuneração do capital, em qualquer situação.
A
chegada da esquerda ao poder, e por menos se queira, nas condições do mundo de
hoje, o governo de Lula era de esquerda, é, leva à intensificação da atuação da
Atlas Network e das tantas agências norte-americanas no Brasil.
A
arrancada decisiva se dará no Fórum da Liberdade, em 2010, em Porto Alegre.
Encontro anual organizado pelo Instituto de Estudos Empresariais (IEE). Numa
das caixas, em arquivos do Instituto Uber, há a prescrição de caminhos para
chegar ao poder. Não se valer de partidos políticos. Jogar dinheiro na batalha
das ideias. Batalha a ser levada na sociedade e em instituições múltiplas.
Chegar primeiro aos influenciadores, professores, intelectuais, certamente
jornalistas. Ao pensamento, à cultura.
A
documentação encontrada no Instituto Uber aponta a aceleração da batalha das
ideias três anos antes da tomada das ruas em junho de 2013. Três anos depois, o
golpe contra Dilma. Tudo se encaixa.
O
impeachment, atiçado, celebrado por institutos neoliberais, como o Instituto
Mises, cujo presidente, Eli Beltrão, atuante então, é atualmente comentarista
da CNN Brasil. Ou a atuação de Fernando Schiller, do Instituto
Millenium, articulista em veículos como Veja, Band News, Folha e Estadão, além
de curador do projeto Fronteiras do Pensamento.
O
caminho para o poder se abria. E não a golpes de baionetas. Excursionando pelas
fronteiras do pensamento. Deu-se a aliança entre Bolsonaro, autêntico
ventríloquo dos militares, e Paulo Guedes, um dos fundadores do Instituto
Millenium.
Sem
exagero, os institutos neoliberais tomaram a Fazenda, o Ministério da Economia
– 16 dirigentes de três institutos neoliberais, autodenominados liberais,
ocuparam o Estado, cargos nas equipes e ministérios de Bolsonaro. Só na
Fazenda, sete operadores dos institutos.
Mais:
14 desses neoliberais, ou liberais, como se queira, foram articuladores e
autores da Lei de Liberdade Econômica, aprovada em 2019, cujo artigo primeiro
reza: “Fica instituída a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que
estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício da
atividade econômica…” Um mundo novo se abria. Para o capital. Como se viu, um
mundo a nascer de um trabalho meticulosamente urdido e executado.
Fonte: Por
Emiliano José, em A Terra é Redonda

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