segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

A fábula da sociedade que leiloa carne humana

É preciso destacar que o Estado está ensinando a matar e autorizando novos mestres; a misoginia só faz o resto...

Era uma vez em que eu trabalhava como PJ em um emprego que me obrigava 40 horas semanais e presença física todos os dias. Quando eu cansei dos gritos diários e me demiti, meu chefe ficou muito irritado. Não sabia como conduzir a finalização de um projeto que eu coordenava (mas cuja liderança ele minava diariamente). Em um ímpeto de raiva, ele empurrou com força a cadeira que estava do meu lado na parede. Eu fiquei tão nervosa que acabei propondo ficar mais algumas semanas neste emprego – contanto que fosse home office. Eu sigo acumulando muitos empregos para ter condições de vida minimamente decentes, enquanto ele é um pesquisador renomado que dificilmente ficará desempregado um dia. Em outra situação, a nível pessoal, em uma das repúblicas que morei, precisei ouvir, durante uma festa, que o problema da violência de gênero já estava superado, não era mais interessante pesquisar sobre isso. Alguns dias depois, um dos caras quem morava foi racista comigo em um evento público, e indignado que eu apontei o fato, gritou e me ofendeu na frente de outras pessoas. Ele pediu desculpas, mas esses episódios de rompante se repetiriam por mais vezes, até que eu cansei e também fui embora – pesa o fato de que a mulher que morava comigo ficou inconformada quando apontei o erro, e eles seguem melhores amigos até hoje, enquanto eu fui a maluca.

Não é um texto para acusar homens e nomeá-los – embora ambos continuem beneficiados pelo sistema, aqui eu os deixo no anonimato não só por proteção jurídica, mas é que é o lugar que devemos colocar o agressor, ao contrário das manchetes que seguem nomeando os autores, e impondo destaque, aos terríveis autores dos últimos casos de feminicídio das últimas semanas.

Eu me formei como jornalista em 2016, no auge da era dos textões, do destaque midiático ao feminismo, em que muitas figuras ganharam destaque e renome pela causa. Uma década depois, este feminismo foi importante para furar a bolhar e letrar novas gerações (como eu), mas infelizmente não foi o bastante para frear governos conservadores e que ajudam a sustentar uma violência de gênero que segue em diversas instâncias: na religião que condena o aborto e prega a submissão de mulheres, no enfraquecimento das leis trabalhistas que permitem situações como a que eu vivi e relatei (ser PJ com obrigações de CLT), na ausência de mulheres negras no STF.

Mas a nossa Lei Maria da Penha é considerada uma das melhores do mundo… E é o ponto que quero chegar. Endurecer a criminalidade sobre civis é a única e maior solução?

Nos últimos dias, o Brasil assistiu ao assassinato de duas funcionárias do CEFET-RJ, Allane de Souza Pedrotti Matos e Layse Costa Pinheiro, baleadas por um colega de trabalho dentro da instituição de ensino, em pleno expediente. No mesmo fim de semana, ficamos sabendo do caso de Taynara Souza Santos, de 31 anos, atropelada e arrastada por cerca de um quilômetro na Marginal Tietê, sofreu múltiplas cirurgias e teve as pernas amputadas. É um crime brutal, um ato extremo de desumanização, mas cometido por um civil. Só que antes dela, em 2014, Cláudia Silva Ferreira, mulher negra, trabalhadora, mãe de quatro filhos, foi baleada por policiais e arrastada por mais de 300 metros por uma viatura do Rio de Janeiro. As imagens correram o mundo. Dez anos depois, os policiais envolvidos foram absolvidos.

Eis a diferença crucial: no caso de Taynara, a violência aponta para a barbárie de um indivíduo; no caso de Cláudia, ela revela a barbárie de uma instituição. Quando um país se acostuma a ver um corpo negro sendo arrastado pelo Estado sem que isso produza responsabilização, ele aprende coletivamente que certos corpos podem ser violados. É um aprendizado que abre caminho para que a misoginia também aja com ferocidade, inclusive quando as vítimas são mulheres brancas. É como se estivéssemos presenciando uma disseminação pedagógica da crueldade.

Enquanto algumas mortes ganham cobertura frenética, outras seguem despercebidas. A advogada Camilla Santos Silva, mulher negra, 32 anos, presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB em Piraju (SP), foi vítima de feminicídio, morta a facadas pelo marido, um policial militar, que também assassinou o pai dela.

Não é coincidência: como lembra Sueli Carneiro, a desumanização de populações negras é um dos fundamentos da nossa formação social, e isso se reflete em quem a sociedade considera uma vítima “universal”, e quem é chorada apenas em círculos específicos.

Como repórter de segurança pública, eu cobri a Operação Escudo e a Operação Verão, no litoral paulista, que deixaram dezenas de mortos na Baixada Santista. Em uma das reportagens, contei a história de dois irmãos, Luiz Gustavo e Matheus, mortos pela polícia em operações diferentes, sob denúncias de execução. Depois, o Ministério Público de São Paulo arquivou a maior parte das investigações sobre mortes decorrentes da Operação. Em 2025, um procedimento que apurava as mortes nas operações Escudo e Verão foi encerrado, o que levou entidades como a Comissão Arns a manifestarem “profunda preocupação” com o arquivamento dos inquéritos. A mensagem que fica para as periferias é que a morte negra é administrável.

Aqui encontramos uma forma racializada de pensar a pedagogia da crueldade cunhada por Rita Segato, sobre a espetacularização midiática da violência que nos isenta de refletir sobre suas vítimas, em especial mulheres e pessoas racializadas. A sociedade aprende a assistir à dor de certas pessoas sem estremecer. Judith Butler chama isso de vidas “não passíveis de luto”: existências que não são plenamente reconhecidas como vidas e, por isso, não despertam o mesmo horror quando são interrompidas. Quando o Estado naturaliza a morte de jovens negros em operações policiais, quando arquiva investigações, quando trata execuções como dano colateral, ele está ensinando todos nós sobre quais corpos podem ser violados.

Não se trata apenas de policiais que atiram. Trata-se também dos que estupram e seguem absolvidos. Em 2021, a Justiça Militar de São Paulo absolveu policiais acusados de estuprar uma jovem de 19 anos dentro de uma viatura em Praia Grande. A sentença sustentava que a vítima “nada fez para impedir” o ato, que poderia ter “dito não” ao policial armado ou pedido ajuda ao colega dele. Recentemente, a Defensoria Pública conseguiu um recurso revertendo a absolvição, mais quando um tribunal toma uma decisão como a de 2021, ele não está apenas inocentando dois homens. Ele está ensinando à sociedade que a palavra de uma mulher vale menos do que o poder armado do Estado; que o corpo dela é um território disponível desde que ela “não resista o suficiente”.

Sara Ahmed lembra que emoções políticas, como medo, repulsa, desprezo, são produzidas racialmente. A quem se acredita? De quem se tem medo? Quem aparece como ameaça? Quem é visto como exagerada, histérica, maluca? Hortense Spillers mostra que o corpo feminino negro foi o laboratório inicial desse regime de controle: escravizado, estuprado, punido, transformado em recurso reprodutivo. Essa gramática de controle não desaparece quando olhamos para mulheres brancas; ela apenas se reorganiza, mantendo a lógica de que o corpo feminino é sempre negociável, mas alguns são mais negociáveis que outros.

Diante dos feminicídios no CEFET-RJ, da morte de Camilla, da crueldade com Taynara, a resposta mais imediata costuma ser a mesma: pedir leis mais duras, penas mais longas, mais polícia na rua. Mas a Lei Maria da Penha já é considerada uma das melhores do mundo, e a tipificação do feminicídio não impediu o crescimento desse tipo de crime. Se bastasse punir, não estaríamos aqui.

Uma perspectiva abolicionista penal não significa ignorar a dor das vítimas nem deixar agressores impunes. Significa reconhecer que o mesmo sistema penal que absolve policiais acusados de estupro, que arquiva mortes em operações policiais, que seleciona quem merece viver e quem pode morrer, não vai ser o instrumento que vai nos salvar da misoginia. Como diz Crenshaw, não dá para enfrentar um eixo de opressão reforçando outros. Não é possível combater a violência de gênero fortalecendo um Estado que, todos os dias, administra a morte racializada.

Quando o Estado ensina a matar, a misoginia faz o resto. Enquanto não desmontarmos essa pedagogia da crueldade, seguiremos contando as mesmas histórias com nomes diferentes. E, em um país que leiloa carne humana, sempre haverá mais um corpo disponível para a próxima narrativa de horror.

 

Fonte: Por Agnes Sofia Guimarães, no Le Monde

 

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