O
cálculo de Lula para lidar com crise entre Trump e Maduro
Usando
fones de ouvido e segurando um boné com o emblema do Movimento dos
Trabalhadores Sem-Terra (MST), o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, se
arriscou no "portunhol" para fazer um apelo em um programa de TV na
quinta-feira (4/12).
"Povo
do Brasil! Saiam às ruas para apoiar a Venezuela em sua luta pela paz e
soberania. Eu falo a vocês toda a verdade. Nós temos direito à paz com
soberania. Que viva o Brasil".
O
pedido de Maduro acontece em meio à ofensiva dos Estados Unidos em relação ao
país. Nos últimos três meses, o governo do presidente Donald Trump vem usando o
suposto combate a narcotraficantes como justificativa para o aumento da
presença militar nas proximidades da Venezuela.
Aviões
de caça, 15 mil homens e navios militares, incluindo o maior porta-aviões a
Marinha norte-americana, foram deslocados para a região do Caribe, num
movimento visto por analistas como de pressão contra o governo de Nicolás
Maduro.
Desde
então, militares dos Estados Unidos já realizaram mais de 20 ataques aéreos a
embarcações que supostamente carregavam drogas em águas próximas ao litoral
venezuelano.
Na
semana passada, o norte-americano chegou a anunciar em redes sociais o
fechamento do espaço aéreo venezuelano, mesmo sem ter autorização formal para
isso.
Mas o
apelo do líder venezuelano, no entanto, não apenas não parece ter mobilizado as
ruas brasileiras, como também não mobilizou, pelo menos publicamente, um antigo
aliado: o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Nos
últimos meses, o presidente Lula, que já defendeu Maduro pessoalmente durante
sua viagem ao Brasil, em 2023, vem adotando uma postura mais discreta em
relação ao regime do país vizinho em meio ao aumento das tensões entre a
Venezuela e os Estados Unidos.
No dia
8 de setembro, Lula criticou abertamente a presença de tropas norte-americanas
nas proximidades da Venezuela durante um discurso da cúpula virtual dos Brics,
grupo de 11 economias emergentes do qual o Brasil faz parte.
"A
presença de forças armadas da maior potência do mundo no Mar do Caribe é fator
de tensão incompatível com a vocação pacífica da região", disse ele.
Duas
semanas mais tarde, no dia 23 de setembro, foi a vez de mencionar a crise, mas
citando a Venezuela em seu discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas, em
Nova York.
"Usar
força letal em situações que não constituem conflitos armados equivale a
executar pessoas sem julgamento. Outras partes do planeta já testemunharam
intervenções que causaram danos maiores do que se pretendia evitar, com graves
consequências humanitárias. A via do diálogo não deve estar fechada na
Venezuela", disse o presidente.
Com o
passar dos meses, a situação mudou. A aproximação de Lula com Donald Trump,
iniciada justamente durante a passagem do presidente brasileiro por Nova York,
deu início a uma postura diferente. Em vez de criticar publicamente a presença
dos Estados Unidos na região, Lula trata do assunto reservadamente nas
conversas que manteve com Trump.
Duas
fontes do governo brasileiro ouvidas pela BBC News Brasil em caráter reservado
afirmam que o presidente Lula tratou da questão venezuelana tanto na conversa
presencial que teve com Trump na Malásia, em outubro, quanto nos dois
telefonemas que teve com o norte-americano mais recentemente.
Sua
passagem pela Cúpula de chefes de Estado da Comunidade dos Estados Caribenhos e
Latino-Americanos (CELAC) e da União Europeia, em novembro, na Colômbia, foi um
exemplo dessa mudança de tom.
"A
ameaça de uso da força militar voltou a fazer parte do cotidiano da América
Latina e do Caribe. Velhas manobras retóricas são recicladas para justificar
intervenções ilegais", disse Lula sem citar nem a Venezuela e nem os
Estados Unidos.
Nem
mesmo a ordem de fechamento do espaço aéreo venezuelano dada por Trump fez com
que o presidente se manifestasse publicamente sobre o assunto, apesar de o
assessor especial para assuntos internacionais, o embaixador Celso Amorim,
considerar o fato como grave.
"É
um ato de guerra", disse Amorim à BBC News Brasil.
Mas o
que estaria por trás dessa mudança no tom de Lula em relação às ações de Trump
em um país tão próximo ao Brasil?
Fontes
do governo brasileiro ouvidos pela BBC New Brasil em caráter reservado e
especialistas em relações internacionais afirmam que o cálculo do governo Lula
em relação à crise da Venezuela com os Estados Unidos levam pelo menos quatro
elementos em consideração: as negociações sobre o tarifaço imposto pelos
Estados Unidos ao Brasil; o desejo de manter o Brasil como um interlocutor para
evitar uma escalada militar na região; a desarticulação política na América
Latina; e as incertezas sobre os riscos de uma eventual sucessão de Maduro.
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Tarifaço na mesa
Um dos
principais motivos por trás da cautela adotada pelo Brasil no momento em
relação à ação norte-americana sobre a Venezuela são as negociações em curso
com o governo de Donald Trump sobre o tarifaço imposto pelos Estados Unidos a
produtos brasileiros.
Um
auxiliar do presidente Lula, com quem a BBC News Brasil conversou em caráter
reservado, classificou o momento como "delicado" e que o governo
brasileiro não quer correr o risco de prejudicar as negociações sobre o
tarifaço com os norte-americanos por conta da situação na Venezuela.
A
situação, no entanto, pode mudar caso haja ações militares norte-americanas
dentro do território venezuelano.
Segundo
ele, o momento pede que o Brasil seja "pragmático".
Em
julho, o governo dos Estados Unidos anunciou sobretaxas de 40% a produtos
brasileiros justificadas, em parte, pelo julgamento do ex-presidente Jair
Bolsonaro (PL) pelos crimes de tentativa de golpe de Estado e de abolição
violenta do Estado democrático de direito.
Na
época, Trump chamou o julgamento de "caça às bruxas" que deveria
acabar "imediatamente".
O
episódio instaurou o que especialistas classificam como a maior crise
diplomática entre o Brasil e os Estados Unidos nos mais de 200 anos de relações
entre os dois países.
Nos
últimos meses, porém, houve uma aproximação entre Lula e Trump, apesar da
condenação e da prisão de Jair Bolsonaro. Desde setembro, os dois presidentes,
que nunca haviam se reunido, tiveram dois encontros presenciais. O primeiro foi
em Nova York, em setembro. E o segundo em outubro, na Malásia.
Desde
então, as negociações sobre as tarifas impostas pelo governo norte-americano,
que estavam travadas, voltaram a acontecer. Em 21 de novembro, os Estados
Unidos anunciaram a retirada de tarifas de 40% sobre alguns produtos agrícolas
brasileiros.
Apesar
disso, o governo brasileiro avalia que ainda é preciso avançar nas negociações,
especialmente porque as sobretaxas norte-americanas ainda afetam uma série de
produtos manufaturados brasileiros exportados para os Estados Unidos, com
impacto significativo sobre a atividade industrial nacional.
Em
novembro, por exemplo, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e
Serviços (MDIC) anunciou que houve uma queda de 28% nas exportações do Brasil
em relação ao mesmo mês do ano passado.
A
necessidade de avançar nas negociações, aliás, foi tema do telefonema mais
recente entre Lula e Trump, que partiu da iniciativa do presidente brasileiro.
"Ainda
há outros produtos tarifados que precisam ser discutidos entre os dois países e
que o Brasil deseja avançar rápido nessas negociações", disse a nota do
governo brasileiro divulgada na semana passada sobre o telefonema.
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Interlocutor possível
Outro
motivo para a cautela do governo brasileiro em relação às investidas
norte-americanas sobre a Venezuela é a perspectiva de que o Brasil continue a
ser visto como um possível mediador da crise envolvendo o regime de Nicolás
Maduro e o governo de Donald Trump.
Um
auxiliar do governo brasileiro ouvido pela BBC News Brasil afirmou que o Brasil
não foi apontado pelos Estados Unidos e nem pela Venezuela como mediador do
conflito, mas o entendimento é de que, ao evitar um confronto retórico direto
com os norte-americanos neste momento, o Brasil conseguiria manter canais de
comunicação abertos para discutir a situação do país vizinho com os Estados
Unidos e poderia tentar evitar um conflito armado no país, principal temor do
governo brasileiro neste momento.
Na
avaliação dele, apesar de as ameaças de intervenções terrestres dos Estados
Unidos sobre a Venezuela ainda não terem se concretizado e de também não estar
claro se elas irão se materializar ou não, esta "arma" ainda estaria
"engatilhada e apontada" para a região.
A
situação na Venezuela também foi tema do encontro entre Lula e Trump durante o
encontro na Malásia. Na ocasião, Lula defendeu que a saída para a crise
venezuelana deveria ser diplomática e pacífica.
Durante
o encontro, Lula comentou que não falava com Maduro desde as eleições
presidenciais no país, em maio do ano passado. Até hoje o Brasil não reconheceu
o resultado das eleições.
As
autoridades eleitorais da Venezuela anunciaram Maduro como vencedor, mas a
oposição liderada por Maria Corina Machado alega que as atas das urnas apontam
a vitória do candidato oposicionista Edmundo Gonzalez, que agora vive no exílio
na Espanha.
Apesar
de, oficialmente, o governo brasileiro não atuar como mediador da crise na
Venezuela, o país já exerceu papel semelhante em outras situações. A mais
recente delas aconteceu em 2023, quando o Brasil foi um dos principais
articuladores dos chamados "Acordos de Barbados", em que o governo
Maduro se comprometeu a promover condições justas durante as eleições de 2024.
A
confiança do Brasil em Maduro, no entanto, ficou abalada depois que o
presidente venezuelano deixou de cumprir a promessa de apresentar as atas das
urnas das eleições do ano passado.
A
postura do Brasil fez com que o assessor da Presidência da República para
assuntos internacionais, o embaixador Celso Amorim, fosse criticado pelo
presidente da Assembleia Nacional da Venezuela, Jorge Rodriguez, que pediu que
o diplomata brasileiro fosse declarado "persona non grata" — termo
usado para dizer que alguém não é bem-vindo e, na linguagem diplomática, é um
procedimento considerado drástico.
O
presidente da Comissão de Relações Exteriores (CRE) do Senado, Nelsinho Trad
(PSD-MS), disse que a quebra de confiança gerada pelas eleições na Venezuela
afetaram a postura do governo brasileiro na defesa do país vizinho.
"O
governo começou a se distanciar quando Maduro não cumpriu a promessa de
apresentar as atas das urnas. Naquele momento, houve um ponto de inflexão e a
gente percebe que, hoje, as relações são muito distantes, apesar de o Itamaraty
manter nosso pessoal lá", disse o parlamentar à BBC News Brasil.
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América Latina desarticulada
O
terceiro motivo pelo qual o Brasil vem evitando uma postura mais assertiva em
relação à Venezuela é o atual cenário político na América Latina.
Segundo
um auxiliar do presidente Lula, a região estaria vivendo um momento de
"desarticulação política" que impede uma posição mais contundente do
país em relação à crise venezuelana.
Essa
desarticulação seria resultado de uma espécie de "racha ideológico"
na região a partir da eleição de diversos presidentes de direita em países
latino-americanos como na Argentina (Javier Milei), no Paraguai (Santiago
Peña), Bolívia (Rodrigo Paz), Equador (Daniel Noboa) e em El Salvador (Nayib
Bukele). Alguns deles, como Milei e Bukele, têm demonstrado proximidade com o
presidente Trump.
A
professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp), Carol Pedroso, disse concordar com a avaliação do auxiliar de Lula.
"A
total desmobilização regional frente a esse avanço mais agressivo do governo
Trump acaba sendo outro determinante para essa postura mais discreta do
presidente brasileiro, porque na prática não há respaldo institucional em nível
regional para qualquer posição um pouco mais 'afrontosa'", disse à BBC
News Brasil.
Segundo
Pedroso, esse "racha" fica evidenciado na Comunidade de Estados
Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), do qual o Brasil faz parte.
"[A
Celac], basicamente, só consegue produzir alguns pronunciamentos, mas nenhuma
ação efetiva. Um exemplo foi a tímida reação à crise dos deportados no começo
do ano, quando boa parte das agressões nem tinham começado", complementa.
Na
última reunião da cúpula, realizada em conjunto com a União Europeia, em
novembro, o comunicado final não fez nenhuma menção à Venezuela.
Lula,
que também participou da cúpula de chefes de Estado da Celac-União Europeia fez
menções veladas à crise, mas não citou diretamente nem os Estados Unidos e nem
a Venezuela.
"A
ameaça de uso da força militar voltou a fazer parte do cotidiano da América
Latina e do Caribe. Velhas manobras retóricas são recicladas para justificar
intervenções ilegais. Somos uma região de paz e queremos permanecer em paz.
Democracias não combatem o crime violando o direito internacional", disse.
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Riscos da sucessão
O
quarto motivo que vem fazendo o Brasil adotar o que a professora Carol Pedroso
classificou como "cautela ativa" em relação à Venezuela é a incerteza
sobre o futuro da Venezuela diante de uma eventual queda ou renúncia de Nicolás
Maduro.
Uma
fonte do governo brasileiro com a qual a BBC News Brasil conversou e que pediu
anonimato afirmou que há "enorme" preocupação sobre os cenários para
o "dia seguinte" da Venezuela sem Maduro.
Segundo
essa fonte, o governo brasileiro não chegou a oferecer asilo e nem a defender a
tese de renúncia de Maduro.
Essa
tese passou a circular com mais força nos últimos dias depois que a agência
Bloomberg noticiou que o empresário brasileiro Joesley Batista se encontrou com
Maduro na Venezuela para tentar convencê-lo a renunciar.
Procurado,
o governo brasileiro não se pronunciou sobre o caso e não confirmou à BBC News
Brasil se tinha conhecimento da viagem.
Para o
governo brasileiro, não estaria claro quem teria condições políticas de liderar
o país após a saída de Maduro.
Ela
afirma que, apesar de ser considerado autoritário, Maduro atuaria como uma
espécie de "ponto de equilíbrio" das forças políticas venezuelanas e
que sua saída sem planejamento poderia levar a um cenário de caos social no
país com riscos de extravasar para o lado brasileiro da fronteira.
Ela
mencionou que um "vácuo de poder" na Venezuela poderia gerar uma
situação de conflagração semelhante à vista na Líbia após a queda do ditador
Muammar Khadafi, morto por rebeldes em 2011.
Ela
disse ainda não acreditar que a líder da oposição venezuelana, Maria Corina
Machado, que venceu o prêmio Nobel da Paz neste ano, tenha condições de liderar
o país de forma estável caso seja colocada no lugar de Maduro.
Carol
Pedroso faz uma avaliação semelhante. De acordo com ela, não estaria sequer
claro que os Estados Unidos irão intervir militarmente para a derrubada de todo
o regime de Maduro.
Com um
histórico de idas e vindas, a política externa de Trump poderia trabalhar para
uma solução intermediária, tirando Maduro, mas deixando alguém com ligações com
o atual governo e com condições materiais de manter as rédeas do país.
Em meio
à toda essa incerteza, o Brasil assumiria um risco ao tomar uma posição neste
momento.
"Por
conta da enorme incerteza, me parece que o governo brasileiro tem sido
excessivamente cauteloso, a ponto inclusive de gerar esse desconforto em parte
da esquerda brasileira e latino-americana, por exemplo, que entende que abrindo
a 'porteira' da Venezuela, não haveria nada que impedisse os EUA de avançarem
para os demais países", conclui a professora.
Fonte:
BBC News Brasil

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