O
mundo após o declínio estadunidense
Ao
descrever o estado atual do mundo, ficou mais difícil evitar clichês. A guerra
econômica desencadeada por Donald Trump, a crescente recusa da China em aceitar
suas provocações e a guerra em curso na Ucrânia geraram níveis de incerteza
sistêmica nunca vistos desde o período entreguerras, se não antes. O medo de
outra grande crise, ou mesmo de outra grande guerra, é compreensivelmente
generalizado — talvez em nenhum lugar mais do que na Europa, a região que mais
tem a perder com a emergente Guerra Fria. Quanto dessa turbulência pode ser
atribuída a um líder estadunidense errático e quanto é resultado de
transformações estruturais mais profundas? O surgimento de potências capazes de
rivalizar com os Estados Unidos aponta para a possibilidade de uma ordem global
mais justa, ou uma hegemonia está simplesmente sendo substituída por outra? E,
mais importante, o que tudo isso significa para a vida e as perspectivas
políticas dos trabalhadores?
LEIA A
ENTREVISTA:
·
Os deslocamentos geopolíticos que presenciamos atualmente
são inconcebíveis sem considerar o segundo governo de Donald Trump. Desde que
ele retornou ao poder, tanto a política interna quanto a externa dos Estados
Unidos mudaram de rumo inegavelmente — e, dado o papel dos Estados Unidos como
ator hegemônico global, isso inevitavelmente afeta o resto do mundo.
Afastando-se do caos cotidiano, você vê algo que se aproxime de uma estratégia
consistente na política econômica de Trump? Existe um método nessa loucura — e,
em caso afirmativo, qual é exatamente?
MICHAEL
ROBERTS - Primeiro, Donald Trump é um indivíduo seriamente disfuncional, cuja
autoexaltação, arrogância intensa e falta de empatia humana são óbvias para
todas as pessoas razoáveis. Suas declarações públicas e seus ziguezagues em
relação a políticas (tarifas, conflitos internacionais e todo tipo de questões
culturais e sociais) demonstram isso. Mas há método nessa loucura. A estratégia
de Trump visa restaurar a base industrial dos Estados Unidos, reduzir o déficit
comercial em bens e reafirmar a hegemonia global dos EUA, particularmente
contra a China. Trump e seus acólitos do MAGA estão convencidos de que os
Estados Unidos foram privados de seu poder econômico e status hegemônico por
outras grandes economias, que roubaram sua base industrial e impuseram todo
tipo de bloqueio à capacidade das corporações estadunidenses (particularmente
as empresas de manufatura) de dominar o mercado. Para Trump, isso se expressa
no déficit comercial geral dos Estados Unidos com o resto do mundo. Donald
Trump frequentemente se refere ao presidente dos EUA, William McKinley, ao
anunciar suas tarifas. Em 1890, McKinley, então membro da Câmara dos
Representantes, propôs uma série de tarifas para proteger a indústria
estadunidense, que foram posteriormente adotadas pelo Congresso. Mas as medidas
tarifárias não funcionaram bem. Elas não evitaram a grave depressão que começou
em 1893 e durou até 1897. Em 1896, McKinley tornou-se presidente e presidiu um
novo conjunto de tarifas, a Lei Tarifária Dingley de 1897. Como este era um
período de expansão, McKinley alegou que as tarifas ajudariam a impulsionar a
economia. Chamado de “Napoleão Protecionista”, ele vinculou sua política
tarifária à tomada militar de Porto Rico, Cuba e Filipinas para estender a
“esfera de influência” dos Estados Unidos, algo que Trump ecoa hoje com seus
comentários sobre o Canadá, a Groenlândia ou Gaza. No início de seu segundo
mandato como presidente, McKinley foi assassinado por um anarquista que ficou
furioso com o sofrimento dos trabalhadores rurais durante a recessão de
1893-97, atribuindo a McKinley a culpa por isso. Agora temos outro “Napoleão
Protecionista” na figura de Trump, que afirma que suas tarifas ajudarão os
fabricantes estadunidenses. O objetivo de Trump é claro: ele quer restaurar a
base industrial estadunidense. Grande parte das importações que chegam aos
Estados Unidos de países como China, Vietnã, Europa, Canadá, México, etc., são
de empresas estadunidenses que vendem produtos de volta aos Estados Unidos a um
custo menor do que se fossem produzidos no país. Nos últimos quarenta anos de
“globalização”, empresas multinacionais nos Estados Unidos, Europa e Japão
transferiram suas operações de manufatura para o Sul Global para aproveitar os
baixos custos de mão de obra, a ausência de sindicatos ou regulamentações e o
acesso à tecnologia mais recente. Mas, como resultado, esses países na Ásia
industrializaram drasticamente suas economias e, assim, ganharam participação
de mercado na manufatura e nas exportações, deixando os Estados Unidos recorrendo
a marketing, finanças e serviços.
Isso
importa? Trump e sua equipe acham que sim. Seu objetivo estratégico final é
enfraquecer, estrangular e implementar uma “mudança de regime” na China, ao
mesmo tempo em que assumem o controle hegemônico total sobre a América Latina e
o Pacífico. Portanto, a indústria manufatureira dos EUA deve ser restaurada
internamente. Joe Biden estava ansioso para fazer isso por meio de uma
“política industrial” que subsidiasse empresas de tecnologia e infraestrutura
manufatureira, mas isso significou um enorme aumento nos gastos do governo que,
por sua vez, elevou o déficit fiscal a níveis recordes. Trump considera que
impor tarifas para forçar as empresas manufatureiras estadunidenses a voltarem
para casa e as empresas estrangeiras a investirem nos Estados Unidos é um
caminho melhor. Ele acredita que pode impulsionar a manufatura, gastar mais em
armas e reduzir impostos para as empresas, ao mesmo tempo em que corta os
gastos sociais e, assim, manter o orçamento do governo e o dólar estáveis —
tudo por meio de aumentos de tarifas.
·
Quais são as chances dessa aposta dar certo?
MR - Isso
não vai acabar bem. Na década de 1930, a tentativa dos Estados Unidos de
“proteger” sua base industrial com as Tarifas Smoot-Hawley só levou a uma nova
contração na produção, à medida que a Grande Depressão envolvia a América do
Norte, a Europa e o Japão. As grandes empresas e seus economistas condenaram as
medidas Smoot-Hawley e veementemente fizeram campanha contra elas. Henry Ford
tentou convencer o então presidente Herbert Hoover a vetar as medidas,
chamando-as de “estupidez econômica”. Palavras semelhantes agora vêm da voz das
grandes empresas e finanças: o Wall Street Journal chamou as tarifas de
Trump de “a guerra comercial mais idiota da história”. A Grande Depressão da
década de 1930 não foi causada pela guerra comercial protecionista que os
Estados Unidos provocaram em 1930, mas as tarifas adicionaram força à contração
global, à medida que se tornou “cada país por si”. Entre os anos de 1929 e
1934, o comércio global caiu aproximadamente 66%, à medida que países em todo o
mundo implementaram medidas comerciais retaliatórias. “Isso não vai acabar
bem.”
Embora
Trump tenha rompido com as políticas neoliberais de “globalização” e livre
comércio para “tornar a América grande novamente” às custas do resto do
mundo, ele não abandonou o neoliberalismo para a economia doméstica.
Os impostos serão cortados para as grandes empresas e os ricos, mas também
o objetivo será reduzir a dívida do governo
federal e cortar os gastos públicos (exceto para
armas, é claro). Este ano, o déficit orçamentário
dos EUA será de quase US$ 2 trilhões, dos quais mais da
metade são juros líquidos — quase o mesmo que os EUA gastam com
suas forças armadas. A dívida pública total pendente agora é de mais de US$ 30
trilhões ou 100% do PIB. A dívida dos EUA como porcentagem do PIB em breve
excederá seu pico na Segunda Guerra Mundial. O Escritório de Orçamento do
Congresso estima que, até 2034, a dívida governamental dos EUA excederá US$ 50
trilhões — 122,4% do PIB. Os EUA gastarão US$ 1,7 trilhão por ano apenas em
juros. Para evitar esse cenário, Trump pretende “privatizar” o máximo possível
do governo. “Nós o encorajamos a encontrar um emprego no setor privado assim
que desejar”, disse o Escritório de Gestão de Pessoal do governo Trump. Na
visão de Trump, o setor público é improdutivo, mas o setor financeiro, é claro,
não. “O caminho para uma maior prosperidade estadunidense é encorajar as
pessoas a migrar de empregos de menor produtividade no setor público para
empregos de maior produtividade no setor privado.” No entanto, esses “ótimos
empregos” não foram identificados. Além disso, se o setor privado parar de
crescer à medida que a guerra comercial se intensifica, esses empregos de maior
produtividade podem não se materializar de forma alguma.
·
Olhando para além das tarifas, o contexto mais amplo é o
de mal-estar econômico global. Desde o início da crise financeira global em
2007, o capitalismo global tem vivido o que você chama de uma longa depressão,
caracterizada por baixa lucratividade, crescimento estagnado, crises
recorrentes e recuperações fracas. Como resultado, os governos dos países
ocidentais, e dos Estados Unidos em particular, vêm intervindo mais diretamente
nos processos econômicos e protegendo certos interesses. Ao mesmo tempo, você
enfatiza que o neoliberalismo continua muito vivo nos Estados Unidos. Isso
contradiz as alegações de alguns especialistas de que o neoliberalismo está
morto. Você mudou sua opinião?
MR - As
principais economias capitalistas têm experimentado um ritmo de crescimento
econômico muito mais lento desde a crise financeira global de 2008 e a
subsequente Grande Recessão. A economia dos EUA tem se saído melhor, mas o
crescimento real do PIB não ultrapassou, em média, 2% ao ano nos últimos
dezessete anos, em comparação com mais de 3% ao ano antes de 2008. As outras
economias do chamado G7 tiveram um desempenho pior; sua taxa média de
crescimento real do PIB tem sido de 1% ao ano, na melhor das hipóteses.
Alemanha, França e Reino Unido estão estagnados, enquanto Japão, Canadá e
Itália estão se saindo apenas marginalmente melhor. A estagnação da produção
nacional se deve à desaceleração dos investimentos produtivos, à medida que a
lucratividade média do capital global se aproxima de mínimas históricas. Como
isso pode ser verdade quando sabemos que as mega-gigantes da tecnologia, energia
e indústria farmacêutica nos Estados Unidos estão obtendo lucros enormes? Essas
empresas são a exceção à regra, em comparação com vastas faixas de negócios nos
Estados Unidos, Europa e Japão. De fato, cerca de 20% a 30% das empresas em
todo o mundo não obtêm lucro suficiente para pagar suas dívidas e são forçadas
a tomar mais empréstimos para sobreviver. Como resultado, até agora neste
século, os lucros têm sido cada vez mais investidos não em inovação e
tecnologia, mas em especulação imobiliária e financeira. Wall Street prospera
enquanto a Main Street enfrenta dificuldades. As políticas neoliberais
baseavam-se na hegemonia dos EUA. Internacionalmente, sempre foi um disfarce
para o que costumava ser chamado de Consenso de Washington, ou seja, que os
Estados Unidos e seus parceiros menores na Europa e na Ásia-Pacífico decidiriam
as regras sobre o livre comércio e os fluxos de capital de acordo com os
interesses dos bancos e multinacionais do chamado Norte Global. Trump mudou
tudo isso. Agora, o governo estadunidense age sozinho, não apenas às custas dos
países pobres do chamado Sul Global, mas também de seus parceiros menores na
“aliança” liderada pelos EUA. O Estado trumpista também intervém na economia e
na estrutura social dos EUA. O setor público e muitas de suas agências foram
dizimados. Trump busca até mesmo assumir o controle do Federal Reserve (Fed, o
banco central estadunidense). Ele governa por decreto, ignorando o Congresso e
os tribunais. O livre comércio foi substituído pela proteção; e a imigração foi
substituída pela deportação. Ainda assim, sob Trump, o neoliberalismo — no
sentido da desregulamentação dos controles ambientais, das salvaguardas
sanitárias, dos riscos financeiros e dos cortes nos gastos públicos e nos
impostos para os ricos — continua.
·
Vamos nos voltar para os “parceiros menores” dos Estados
Unidos. A UE enfrenta uma humilhação sem precedentes, consentindo efetivamente
em sua total subordinação aos Estados Unidos. Isso sinaliza uma clara fraqueza
econômica e política. Ao mesmo tempo, a UE tenta conter seu declínio
fortalecendo indústrias-chave por meio de iniciativas protecionistas e
lideradas pelo Estado, como a Lei dos Chips, o Acordo Verde, etc. O senhor vê
alguma chance realista de a Europa interromper sua relevância decrescente no mercado
mundial?
MR - Os
líderes dos principais países da UE se automutilaram. A crise financeira global
de 2008 impôs um enorme endividamento aos países mais fracos da UE. Eles
impuseram medidas de austeridade draconianas aos seus cidadãos para atender às
demandas dos bancos e das instituições da UE: o BCE e a Comissão Europeia. As
taxas de crescimento da produtividade do trabalho, do investimento e da renda
real nas principais economias desaceleraram drasticamente, e as principais
economias da Europa (incluindo o Reino Unido) não conseguiram acompanhar os
avanços tecnológicos mais recentes. E então veio a guerra na Ucrânia. A
política de sanções contra a Rússia e o fim das importações russas de petróleo
e gás elevaram os preços da energia a níveis recordes. Isso paralisou a
indústria alemã e europeia. A Alemanha rapidamente deixou de ser a potência
industrial da Europa e entrou em estagnação e recessão, agora pelo terceiro ano
consecutivo. França e Itália não se saíram muito melhor, e a economia britânica
está claramente quebrada, com poucos sinais de recuperação. Para agravar a
situação, os líderes europeus tornaram-se obcecados em afirmar que a Rússia de
Vladimir Putin está prestes a invadir a Europa e “acabar com a democracia”. É
difícil dizer se realmente acreditam nisso, mas a solução para eles é exigir
que os militares estadunidenses permaneçam na Europa. Os líderes da UE também
estão aplicando sanções e tarifas sobre produtos chineses a mando dos Estados
Unidos, ilustrando ainda mais sua covarde subserviência como Estados vassalos a
Washington. Enquanto isso, os gastos governamentais europeus têm registrado
aumentos acentuados nos gastos militares — mais que dobrando sua participação
no PIB antes do final desta década — em detrimento do investimento produtivo,
das medidas climáticas, dos serviços públicos e da assistência social. Não é de
se admirar que as forças da reação estejam rapidamente ganhando força com suas
políticas racistas, anti-imigrantes, céticas em relação ao clima e de “livre
mercado” em quase todos os Estados europeus. Diante desse cenário, e do fato de
não haver sinais de mudança na trajetória da UE, o declínio relativo da Europa
tende a se acelerar. Charles de Gaulle, da França, Helmut Kohl, da Alemanha, e
até mesmo Margaret Thatcher, da Grã-Bretanha, devem estar se revirando em seus
túmulos.
·
O declínio e a subordinação da UE aos interesses
estadunidenses não podem ser compreendidos isoladamente das mudanças mais
amplas no poder global. Trump não está apenas buscando tarifas, mas mudando as
condições sob as quais os Estados Unidos exercem seu papel de hegemonia global.
Ele busca se livrar dos fardos e obrigações da liderança hegemônica e
substituí-los por um sistema de dominação nua e crua. Mas, ao fazê-lo, ele
intensificou um processo já em curso: o declínio relativo da hegemonia
estadunidense, cujos fundamentos econômicos vêm se erodindo há algum tempo.
Isso levará a uma ordem multipolar mais estável ou estamos caminhando para uma
fase caótica de rivalidades entre grandes potências?
MR - Trump
se considera um “negociador” por excelência. E, na negociação, regras e
regulamentos acordados são apenas um obstáculo. Na sua visão, ele pode fechar
acordos comerciais internacionais que correspondam aos interesses dos Estados
Unidos por meio de negociação direta com os líderes da Europa, Japão, etc. Ele
pode acabar com as guerras na Ucrânia, no Oriente Médio, na África e no Sul da
Ásia por meio de barganha direta, usando incentivos e ameaças. Essa é a
abordagem de Trump para tudo. Mas, por trás de seus acessos de raiva, reside
uma crença racional de que os Estados Unidos estão perdendo rapidamente seu
papel hegemônico global. Visto em perspectiva histórica, isso sinaliza uma
mudança na ordem global. Sim, agora temos um mundo multipolar, algo não visto
desde a década de 1930. Depois de 1945, desenvolveu-se uma ordem mundial
bipolar, na qual o imperialismo estadunidense governava o mundo, mas enfrentava
um oponente ideológico, a União Soviética. O imperialismo dos EUA acabou
vencendo a “Guerra Fria” com o colapso da União Soviética e seus satélites na
Europa. A partir de então, houve a Pax Americana, mas com pouca paz
real, enquanto os Estados Unidos continuavam a realizar invasões e intervenções
para policiar o mundo em defesa de seus interesses e nos de seus parceiros
menores no crime na Europa, Oriente Médio, América Latina e Leste Asiático. Mas
nada que é bom pode durar para sempre, e o capitalismo estadunidense entrou
agora em um período de declínio irreversível. A indústria e as exportações dos
EUA perderam a sua predominância nos mercados mundiais, primeiro para a Europa
na década de 1960, depois para o Japão na década de 1970, mas decisivamente
para a China no século XXI. Dito isto, não devemos exagerar o declínio relativo
da hegemonia dos EUA. Os Estados Unidos ainda têm o maior e mais penetrante
setor financeiro do mundo. O seu estoque de ativos estrangeiros é muito
superior ao de qualquer outro país. O dólar continua sendo a principal moeda
para o comércio, os fluxos de capital e as reservas cambiais nacionais. E as
forças armadas dos EUA continuam todo-poderosas, com mais de setecentas bases
em todo o mundo e um orçamento maior do que os orçamentos militares do resto do
mundo juntos. Seus parceiros no crime estão desesperados por permanecer sob a
asa protetora dos EUA, a fim de preservar a “democracia liberal”, ou seja, os
interesses de suas elites capitalistas. Mas agora existem potências
significativas e recalcitrantes que não estão jogando pelas regras dos EUA.
Algumas delas, como a Rússia, originalmente queriam se juntar ao Ocidente — a
Rússia foi até membro do chamado G8 por um tempo. A Índia faz parte do Quad-4,
um órgão liderado pelos EUA projetado para mitigar a ascensão da China na Ásia.
Quando o povo iraniano derrubou o corrupto e cruel Xá em 1979, até mesmo os
mulás procuraram chegar a um acordo com os Estados Unidos e o Ocidente. A
África do Sul pós-apartheid também estava ansiosa para se juntar ao Ocidente,
apesar de décadas de apoio a governos opressivos do apartheid pelos Estados
Unidos e seus aliados. Mas todos os membros do que hoje é chamado de BRICS
foram rejeitados pela aliança liderada pelos EUA. O chamado Consenso de
Washington, a plataforma ideológica de sucessivos governos dos EUA, visava, em
vez disso, a mudança de regime na Rússia, no Irã e, acima de tudo, na China. A
sorte estava lançada para um mundo multipolar. Ainda assim, os BRICS não
constituem uma alternativa coerente ao domínio dos EUA. Isso significa que a
ideia de um mundo multipolar substituindo a hegemonia estadunidense é
prematura. É claro que a Pax Americana, como existiu após a Segunda
Guerra Mundial e novamente após o colapso da União Soviética na década de 1990,
não funciona mais. Mas os chamados BRICS são uma formação diversificada e
flexível de potências regionais sediadas nos países mais populosos e frequentemente
mais pobres do mundo, com poucos interesses em comum. Não são os BRICS como tal
que representam a ameaça ao domínio dos EUA, mas sim o crescente poder
econômico da China — potencialmente um inimigo muito mais poderoso e resistente
do que a União Soviética jamais foi.
·
O declínio da hegemonia dos EUA também levanta a questão
das alternativas progressistas e da posição que a esquerda deve assumir. Três
tendências se destacam: primeiro, o apoio ao nacionalismo econômico — a ideia
de que proteger a própria economia pode proteger empregos e salários da
concorrência global. Segundo, um lamento surpreendentemente nostálgico pelo fim
do livre comércio — reflexo, por sua vez, dos temores de um nacionalismo
ressurgente. E terceiro, uma orientação em direção à multipolaridade e aos
BRICS — frequentemente vista como uma alternativa progressista ao imperialismo
estadunidense. Nenhuma dessas posições parece particularmente convincente. Como
poderia ser uma perspectiva de esquerda que não se prenda ao nacionalismo, à
nostalgia do livre comércio ou à orientação em direção a uma multipolaridade
capitalista fragmentada?
MR - A
“esquerda”, como você a descreve, é o que eu chamaria de esquerda reformista,
liberal ou social-democrata. Essa esquerda parte da premissa de que não há
alternativa ao sistema capitalista, porque qualquer ideia de socialismo há
muito tempo desapareceu. O trabalho dessa esquerda, na visão deles, é fazer com
que o capitalismo funcione de forma mais justa para a maioria, mas sem
prejudicar significativamente os interesses do capital, porque isso mataria a
galinha dos ovos. Essa esquerda perdeu força, porque a galinha dos ovos
capitalista não está mais botando ovos suficientes para todos e, cada vez mais,
os produz apenas para a minoria dominante. A esquerda liberal costumava elogiar
o sucesso da globalização e do livre comércio no período da Grande Moderação, a
partir da década de 1990. A crise financeira global e a Grande Recessão,
seguidas pela Longa Depressão da década de 2010, a devastadora crise pandêmica
de 2020, a consequente espiral inflacionária no custo de vida — tudo isso expôs
o fracasso do capitalismo em atender às necessidades sociais da maioria nos
Estados Unidos, na Europa e em todo o mundo no século XXI. O liberalismo e a
reforma gradual, outrora defendidos com sucesso pela esquerda liberal, foram
desacreditados em todos os lugares. Foram substituídos pelo apoio popular a um
nacionalismo grosseiro, na forma de racismo anti-grandes empresas e
anti-imigrantes, disseminado pelos Estados Unidos e pela Europa (por exemplo,
70% das pessoas detidas nos centros de detenção do ICE nos Estados Unidos não
tinham condenações criminais, e muitas das que tinham antecedentes criminais
cometeram apenas infrações menores, como infrações de trânsito). Trump e seus
apoiadores do MAGA, Farage no Reino Unido e outros grupos semelhantes em toda a
Europa representam um movimento em direção aos anos sombrios do fascismo da
década de 1930, que eventualmente levaram a uma terrível guerra mundial. Para
combater isso, a verdadeira esquerda deve partir da premissa de que o sistema
capitalista, agora dominante globalmente, está irreversivelmente em crise.
·
A questão da multipolaridade parece mais complexa. Para
alguns, multipolaridade significa simplesmente fortalecer os países
capitalistas do Sul Global. Para outros, e esta é a perspectiva mais
interessante, trata-se de romper com o domínio ocidental e criar mais espaço de
manobra para projetos progressistas que, de outra forma, poderiam ser sufocados
pela hegemonia estadunidense.
MR - Os
BRICS podem ser uma força alternativa decisiva ao imperialismo liderado pelos
EUA com sua sempre ambiciosa aliança com a OTAN? Acho que não. Economicamente,
os BRICS e até mesmo os BRICS+, incluindo Indonésia, Egito e possivelmente
Arábia Saudita, formam um grupo disperso, no qual a China é a economia
dominante. Os outros são relativamente fracos ou excessivamente dependentes de
um setor, geralmente energia e matérias-primas. A influência financeira dos
BRICS, com seu Novo Banco de Desenvolvimento, é fraca em comparação com as
agências do capital ocidental. Politicamente, os líderes do grupo BRICS têm
interesses e ideologias diversos. A Rússia é uma autocracia de compadrio. O Irã
é governado por uma elite religiosa islâmica. A China, apesar de seu sucesso
econômico fenomenal, tem um regime de partido único. A Índia é governada por um
partido nacionalista hindu ex-fascista que reprime qualquer dissidência. Esses
não são governos que defendem o internacionalismo ou a democracia dos
trabalhadores. Dentro desses países, não há margem de manobra, como você disse.
O que é necessário é a remoção desses regimes pelos movimentos dos
trabalhadores para estabelecer democracias socialistas genuínas que liderem a
mudança internacional.
O
surgimento da multipolaridade no século XXI é consequência do declínio relativo
do capitalismo estadunidense, especialmente desde a crise financeira global e a
consequente Grande Recessão. Mas é uma ilusão perigosa imaginar que as
potências resistentes sejam uma força a favor do internacionalismo, que
alcançarão uma redução da desigualdade e da pobreza globalmente, ou que deterão
o aquecimento global e o iminente desastre ambiental. Precisamos de uma
internacional de governos socialistas para isso. Se um governo socialista
chegasse ao poder em uma grande economia, isso abriria espaço para outros
países resistirem ao imperialismo. Um governo socialista poderia trabalhar com
países fora do controle dos EUA, como Venezuela ou Cuba, que hoje têm opções
muito limitadas. Mas, o mais importante, também inspiraria o movimento por
governos socialistas democráticos em todo o mundo.
Fonte: Entrevista
com Michael Roberts - Tradução Pedro Silva, para Jacobin Brasil

Nenhum comentário:
Postar um comentário