segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

O mundo após o declínio estadunidense

Ao descrever o estado atual do mundo, ficou mais difícil evitar clichês. A guerra econômica desencadeada por Donald Trump, a crescente recusa da China em aceitar suas provocações e a guerra em curso na Ucrânia geraram níveis de incerteza sistêmica nunca vistos desde o período entreguerras, se não antes. O medo de outra grande crise, ou mesmo de outra grande guerra, é compreensivelmente generalizado — talvez em nenhum lugar mais do que na Europa, a região que mais tem a perder com a emergente Guerra Fria. Quanto dessa turbulência pode ser atribuída a um líder estadunidense errático e quanto é resultado de transformações estruturais mais profundas? O surgimento de potências capazes de rivalizar com os Estados Unidos aponta para a possibilidade de uma ordem global mais justa, ou uma hegemonia está simplesmente sendo substituída por outra? E, mais importante, o que tudo isso significa para a vida e as perspectivas políticas dos trabalhadores?

LEIA A ENTREVISTA:

·        Os deslocamentos geopolíticos que presenciamos atualmente são inconcebíveis sem considerar o segundo governo de Donald Trump. Desde que ele retornou ao poder, tanto a política interna quanto a externa dos Estados Unidos mudaram de rumo inegavelmente — e, dado o papel dos Estados Unidos como ator hegemônico global, isso inevitavelmente afeta o resto do mundo. Afastando-se do caos cotidiano, você vê algo que se aproxime de uma estratégia consistente na política econômica de Trump? Existe um método nessa loucura — e, em caso afirmativo, qual é exatamente?

MICHAEL ROBERTS - Primeiro, Donald Trump é um indivíduo seriamente disfuncional, cuja autoexaltação, arrogância intensa e falta de empatia humana são óbvias para todas as pessoas razoáveis. Suas declarações públicas e seus ziguezagues em relação a políticas (tarifas, conflitos internacionais e todo tipo de questões culturais e sociais) demonstram isso. Mas há método nessa loucura. A estratégia de Trump visa restaurar a base industrial dos Estados Unidos, reduzir o déficit comercial em bens e reafirmar a hegemonia global dos EUA, particularmente contra a China. Trump e seus acólitos do MAGA estão convencidos de que os Estados Unidos foram privados de seu poder econômico e status hegemônico por outras grandes economias, que roubaram sua base industrial e impuseram todo tipo de bloqueio à capacidade das corporações estadunidenses (particularmente as empresas de manufatura) de dominar o mercado. Para Trump, isso se expressa no déficit comercial geral dos Estados Unidos com o resto do mundo. Donald Trump frequentemente se refere ao presidente dos EUA, William McKinley, ao anunciar suas tarifas. Em 1890, McKinley, então membro da Câmara dos Representantes, propôs uma série de tarifas para proteger a indústria estadunidense, que foram posteriormente adotadas pelo Congresso. Mas as medidas tarifárias não funcionaram bem. Elas não evitaram a grave depressão que começou em 1893 e durou até 1897. Em 1896, McKinley tornou-se presidente e presidiu um novo conjunto de tarifas, a Lei Tarifária Dingley de 1897. Como este era um período de expansão, McKinley alegou que as tarifas ajudariam a impulsionar a economia. Chamado de “Napoleão Protecionista”, ele vinculou sua política tarifária à tomada militar de Porto Rico, Cuba e Filipinas para estender a “esfera de influência” dos Estados Unidos, algo que Trump ecoa hoje com seus comentários sobre o Canadá, a Groenlândia ou Gaza. No início de seu segundo mandato como presidente, McKinley foi assassinado por um anarquista que ficou furioso com o sofrimento dos trabalhadores rurais durante a recessão de 1893-97, atribuindo a McKinley a culpa por isso. Agora temos outro “Napoleão Protecionista” na figura de Trump, que afirma que suas tarifas ajudarão os fabricantes estadunidenses. O objetivo de Trump é claro: ele quer restaurar a base industrial estadunidense. Grande parte das importações que chegam aos Estados Unidos de países como China, Vietnã, Europa, Canadá, México, etc., são de empresas estadunidenses que vendem produtos de volta aos Estados Unidos a um custo menor do que se fossem produzidos no país. Nos últimos quarenta anos de “globalização”, empresas multinacionais nos Estados Unidos, Europa e Japão transferiram suas operações de manufatura para o Sul Global para aproveitar os baixos custos de mão de obra, a ausência de sindicatos ou regulamentações e o acesso à tecnologia mais recente. Mas, como resultado, esses países na Ásia industrializaram drasticamente suas economias e, assim, ganharam participação de mercado na manufatura e nas exportações, deixando os Estados Unidos recorrendo a marketing, finanças e serviços.

Isso importa? Trump e sua equipe acham que sim. Seu objetivo estratégico final é enfraquecer, estrangular e implementar uma “mudança de regime” na China, ao mesmo tempo em que assumem o controle hegemônico total sobre a América Latina e o Pacífico. Portanto, a indústria manufatureira dos EUA deve ser restaurada internamente. Joe Biden estava ansioso para fazer isso por meio de uma “política industrial” que subsidiasse empresas de tecnologia e infraestrutura manufatureira, mas isso significou um enorme aumento nos gastos do governo que, por sua vez, elevou o déficit fiscal a níveis recordes. Trump considera que impor tarifas para forçar as empresas manufatureiras estadunidenses a voltarem para casa e as empresas estrangeiras a investirem nos Estados Unidos é um caminho melhor. Ele acredita que pode impulsionar a manufatura, gastar mais em armas e reduzir impostos para as empresas, ao mesmo tempo em que corta os gastos sociais e, assim, manter o orçamento do governo e o dólar estáveis ​​ tudo por meio de aumentos de tarifas.

·        Quais são as chances dessa aposta dar certo?

MR - Isso não vai acabar bem. Na década de 1930, a tentativa dos Estados Unidos de “proteger” sua base industrial com as Tarifas Smoot-Hawley só levou a uma nova contração na produção, à medida que a Grande Depressão envolvia a América do Norte, a Europa e o Japão. As grandes empresas e seus economistas condenaram as medidas Smoot-Hawley e veementemente fizeram campanha contra elas. Henry Ford tentou convencer o então presidente Herbert Hoover a vetar as medidas, chamando-as de “estupidez econômica”. Palavras semelhantes agora vêm da voz das grandes empresas e finanças: o Wall Street Journal chamou as tarifas de Trump de “a guerra comercial mais idiota da história”. A Grande Depressão da década de 1930 não foi causada pela guerra comercial protecionista que os Estados Unidos provocaram em 1930, mas as tarifas adicionaram força à contração global, à medida que se tornou “cada país por si”. Entre os anos de 1929 e 1934, o comércio global caiu aproximadamente 66%, à medida que países em todo o mundo implementaram medidas comerciais retaliatórias. “Isso não vai acabar bem.”

Embora Trump tenha rompido com as políticas neoliberais de “globalização” e livre comércio para “tornar a América grande novamente” às ​​custas do resto do mundo, ele não abandonou o neoliberalismo para a economia doméstica. Os impostos serão cortados para as grandes empresas e os ricos, mas também o objetivo será reduzir a dívida do governo federal e cortar os gastos públicos (exceto para armas, é claro). Este ano, o déficit orçamentário dos EUA será de quase US$ 2 trilhões, dos quais mais da metade são juros líquidos — quase o mesmo que os EUA gastam com suas forças armadas. A dívida pública total pendente agora é de mais de US$ 30 trilhões ou 100% do PIB. A dívida dos EUA como porcentagem do PIB em breve excederá seu pico na Segunda Guerra Mundial. O Escritório de Orçamento do Congresso estima que, até 2034, a dívida governamental dos EUA excederá US$ 50 trilhões — 122,4% do PIB. Os EUA gastarão US$ 1,7 trilhão por ano apenas em juros. Para evitar esse cenário, Trump pretende “privatizar” o máximo possível do governo. “Nós o encorajamos a encontrar um emprego no setor privado assim que desejar”, disse o Escritório de Gestão de Pessoal do governo Trump. Na visão de Trump, o setor público é improdutivo, mas o setor financeiro, é claro, não. “O caminho para uma maior prosperidade estadunidense é encorajar as pessoas a migrar de empregos de menor produtividade no setor público para empregos de maior produtividade no setor privado.” No entanto, esses “ótimos empregos” não foram identificados. Além disso, se o setor privado parar de crescer à medida que a guerra comercial se intensifica, esses empregos de maior produtividade podem não se materializar de forma alguma.

·        Olhando para além das tarifas, o contexto mais amplo é o de mal-estar econômico global. Desde o início da crise financeira global em 2007, o capitalismo global tem vivido o que você chama de uma longa depressão, caracterizada por baixa lucratividade, crescimento estagnado, crises recorrentes e recuperações fracas. Como resultado, os governos dos países ocidentais, e dos Estados Unidos em particular, vêm intervindo mais diretamente nos processos econômicos e protegendo certos interesses. Ao mesmo tempo, você enfatiza que o neoliberalismo continua muito vivo nos Estados Unidos. Isso contradiz as alegações de alguns especialistas de que o neoliberalismo está morto. Você mudou sua opinião?

MR - As principais economias capitalistas têm experimentado um ritmo de crescimento econômico muito mais lento desde a crise financeira global de 2008 e a subsequente Grande Recessão. A economia dos EUA tem se saído melhor, mas o crescimento real do PIB não ultrapassou, em média, 2% ao ano nos últimos dezessete anos, em comparação com mais de 3% ao ano antes de 2008. As outras economias do chamado G7 tiveram um desempenho pior; sua taxa média de crescimento real do PIB tem sido de 1% ao ano, na melhor das hipóteses. Alemanha, França e Reino Unido estão estagnados, enquanto Japão, Canadá e Itália estão se saindo apenas marginalmente melhor. A estagnação da produção nacional se deve à desaceleração dos investimentos produtivos, à medida que a lucratividade média do capital global se aproxima de mínimas históricas. Como isso pode ser verdade quando sabemos que as mega-gigantes da tecnologia, energia e indústria farmacêutica nos Estados Unidos estão obtendo lucros enormes? Essas empresas são a exceção à regra, em comparação com vastas faixas de negócios nos Estados Unidos, Europa e Japão. De fato, cerca de 20% a 30% das empresas em todo o mundo não obtêm lucro suficiente para pagar suas dívidas e são forçadas a tomar mais empréstimos para sobreviver. Como resultado, até agora neste século, os lucros têm sido cada vez mais investidos não em inovação e tecnologia, mas em especulação imobiliária e financeira. Wall Street prospera enquanto a Main Street enfrenta dificuldades. As políticas neoliberais baseavam-se na hegemonia dos EUA. Internacionalmente, sempre foi um disfarce para o que costumava ser chamado de Consenso de Washington, ou seja, que os Estados Unidos e seus parceiros menores na Europa e na Ásia-Pacífico decidiriam as regras sobre o livre comércio e os fluxos de capital de acordo com os interesses dos bancos e multinacionais do chamado Norte Global. Trump mudou tudo isso. Agora, o governo estadunidense age sozinho, não apenas às custas dos países pobres do chamado Sul Global, mas também de seus parceiros menores na “aliança” liderada pelos EUA. O Estado trumpista também intervém na economia e na estrutura social dos EUA. O setor público e muitas de suas agências foram dizimados. Trump busca até mesmo assumir o controle do Federal Reserve (Fed, o banco central estadunidense). Ele governa por decreto, ignorando o Congresso e os tribunais. O livre comércio foi substituído pela proteção; e a imigração foi substituída pela deportação. Ainda assim, sob Trump, o neoliberalismo — no sentido da desregulamentação dos controles ambientais, das salvaguardas sanitárias, dos riscos financeiros e dos cortes nos gastos públicos e nos impostos para os ricos — continua.

·        Vamos nos voltar para os “parceiros menores” dos Estados Unidos. A UE enfrenta uma humilhação sem precedentes, consentindo efetivamente em sua total subordinação aos Estados Unidos. Isso sinaliza uma clara fraqueza econômica e política. Ao mesmo tempo, a UE tenta conter seu declínio fortalecendo indústrias-chave por meio de iniciativas protecionistas e lideradas pelo Estado, como a Lei dos Chips, o Acordo Verde, etc. O senhor vê alguma chance realista de a Europa interromper sua relevância decrescente no mercado mundial?

MR - Os líderes dos principais países da UE se automutilaram. A crise financeira global de 2008 impôs um enorme endividamento aos países mais fracos da UE. Eles impuseram medidas de austeridade draconianas aos seus cidadãos para atender às demandas dos bancos e das instituições da UE: o BCE e a Comissão Europeia. As taxas de crescimento da produtividade do trabalho, do investimento e da renda real nas principais economias desaceleraram drasticamente, e as principais economias da Europa (incluindo o Reino Unido) não conseguiram acompanhar os avanços tecnológicos mais recentes. E então veio a guerra na Ucrânia. A política de sanções contra a Rússia e o fim das importações russas de petróleo e gás elevaram os preços da energia a níveis recordes. Isso paralisou a indústria alemã e europeia. A Alemanha rapidamente deixou de ser a potência industrial da Europa e entrou em estagnação e recessão, agora pelo terceiro ano consecutivo. França e Itália não se saíram muito melhor, e a economia britânica está claramente quebrada, com poucos sinais de recuperação. Para agravar a situação, os líderes europeus tornaram-se obcecados em afirmar que a Rússia de Vladimir Putin está prestes a invadir a Europa e “acabar com a democracia”. É difícil dizer se realmente acreditam nisso, mas a solução para eles é exigir que os militares estadunidenses permaneçam na Europa. Os líderes da UE também estão aplicando sanções e tarifas sobre produtos chineses a mando dos Estados Unidos, ilustrando ainda mais sua covarde subserviência como Estados vassalos a Washington. Enquanto isso, os gastos governamentais europeus têm registrado aumentos acentuados nos gastos militares — mais que dobrando sua participação no PIB antes do final desta década — em detrimento do investimento produtivo, das medidas climáticas, dos serviços públicos e da assistência social. Não é de se admirar que as forças da reação estejam rapidamente ganhando força com suas políticas racistas, anti-imigrantes, céticas em relação ao clima e de “livre mercado” em quase todos os Estados europeus. Diante desse cenário, e do fato de não haver sinais de mudança na trajetória da UE, o declínio relativo da Europa tende a se acelerar. Charles de Gaulle, da França, Helmut Kohl, da Alemanha, e até mesmo Margaret Thatcher, da Grã-Bretanha, devem estar se revirando em seus túmulos.

·        O declínio e a subordinação da UE aos interesses estadunidenses não podem ser compreendidos isoladamente das mudanças mais amplas no poder global. Trump não está apenas buscando tarifas, mas mudando as condições sob as quais os Estados Unidos exercem seu papel de hegemonia global. Ele busca se livrar dos fardos e obrigações da liderança hegemônica e substituí-los por um sistema de dominação nua e crua. Mas, ao fazê-lo, ele intensificou um processo já em curso: o declínio relativo da hegemonia estadunidense, cujos fundamentos econômicos vêm se erodindo há algum tempo. Isso levará a uma ordem multipolar mais estável ou estamos caminhando para uma fase caótica de rivalidades entre grandes potências?

MR - Trump se considera um “negociador” por excelência. E, na negociação, regras e regulamentos acordados são apenas um obstáculo. Na sua visão, ele pode fechar acordos comerciais internacionais que correspondam aos interesses dos Estados Unidos por meio de negociação direta com os líderes da Europa, Japão, etc. Ele pode acabar com as guerras na Ucrânia, no Oriente Médio, na África e no Sul da Ásia por meio de barganha direta, usando incentivos e ameaças. Essa é a abordagem de Trump para tudo. Mas, por trás de seus acessos de raiva, reside uma crença racional de que os Estados Unidos estão perdendo rapidamente seu papel hegemônico global. Visto em perspectiva histórica, isso sinaliza uma mudança na ordem global. Sim, agora temos um mundo multipolar, algo não visto desde a década de 1930. Depois de 1945, desenvolveu-se uma ordem mundial bipolar, na qual o imperialismo estadunidense governava o mundo, mas enfrentava um oponente ideológico, a União Soviética. O imperialismo dos EUA acabou vencendo a “Guerra Fria” com o colapso da União Soviética e seus satélites na Europa. A partir de então, houve a Pax Americana, mas com pouca paz real, enquanto os Estados Unidos continuavam a realizar invasões e intervenções para policiar o mundo em defesa de seus interesses e nos de seus parceiros menores no crime na Europa, Oriente Médio, América Latina e Leste Asiático. Mas nada que é bom pode durar para sempre, e o capitalismo estadunidense entrou agora em um período de declínio irreversível. A indústria e as exportações dos EUA perderam a sua predominância nos mercados mundiais, primeiro para a Europa na década de 1960, depois para o Japão na década de 1970, mas decisivamente para a China no século XXI. Dito isto, não devemos exagerar o declínio relativo da hegemonia dos EUA. Os Estados Unidos ainda têm o maior e mais penetrante setor financeiro do mundo. O seu estoque de ativos estrangeiros é muito superior ao de qualquer outro país. O dólar continua sendo a principal moeda para o comércio, os fluxos de capital e as reservas cambiais nacionais. E as forças armadas dos EUA continuam todo-poderosas, com mais de setecentas bases em todo o mundo e um orçamento maior do que os orçamentos militares do resto do mundo juntos. Seus parceiros no crime estão desesperados por permanecer sob a asa protetora dos EUA, a fim de preservar a “democracia liberal”, ou seja, os interesses de suas elites capitalistas. Mas agora existem potências significativas e recalcitrantes que não estão jogando pelas regras dos EUA. Algumas delas, como a Rússia, originalmente queriam se juntar ao Ocidente — a Rússia foi até membro do chamado G8 por um tempo. A Índia faz parte do Quad-4, um órgão liderado pelos EUA projetado para mitigar a ascensão da China na Ásia. Quando o povo iraniano derrubou o corrupto e cruel Xá em 1979, até mesmo os mulás procuraram chegar a um acordo com os Estados Unidos e o Ocidente. A África do Sul pós-apartheid também estava ansiosa para se juntar ao Ocidente, apesar de décadas de apoio a governos opressivos do apartheid pelos Estados Unidos e seus aliados. Mas todos os membros do que hoje é chamado de BRICS foram rejeitados pela aliança liderada pelos EUA. O chamado Consenso de Washington, a plataforma ideológica de sucessivos governos dos EUA, visava, em vez disso, a mudança de regime na Rússia, no Irã e, acima de tudo, na China. A sorte estava lançada para um mundo multipolar. Ainda assim, os BRICS não constituem uma alternativa coerente ao domínio dos EUA. Isso significa que a ideia de um mundo multipolar substituindo a hegemonia estadunidense é prematura. É claro que a Pax Americana, como existiu após a Segunda Guerra Mundial e novamente após o colapso da União Soviética na década de 1990, não funciona mais. Mas os chamados BRICS são uma formação diversificada e flexível de potências regionais sediadas nos países mais populosos e frequentemente mais pobres do mundo, com poucos interesses em comum. Não são os BRICS como tal que representam a ameaça ao domínio dos EUA, mas sim o crescente poder econômico da China — potencialmente um inimigo muito mais poderoso e resistente do que a União Soviética jamais foi.

·        O declínio da hegemonia dos EUA também levanta a questão das alternativas progressistas e da posição que a esquerda deve assumir. Três tendências se destacam: primeiro, o apoio ao nacionalismo econômico — a ideia de que proteger a própria economia pode proteger empregos e salários da concorrência global. Segundo, um lamento surpreendentemente nostálgico pelo fim do livre comércio — reflexo, por sua vez, dos temores de um nacionalismo ressurgente. E terceiro, uma orientação em direção à multipolaridade e aos BRICS — frequentemente vista como uma alternativa progressista ao imperialismo estadunidense. Nenhuma dessas posições parece particularmente convincente. Como poderia ser uma perspectiva de esquerda que não se prenda ao nacionalismo, à nostalgia do livre comércio ou à orientação em direção a uma multipolaridade capitalista fragmentada?

MR - A “esquerda”, como você a descreve, é o que eu chamaria de esquerda reformista, liberal ou social-democrata. Essa esquerda parte da premissa de que não há alternativa ao sistema capitalista, porque qualquer ideia de socialismo há muito tempo desapareceu. O trabalho dessa esquerda, na visão deles, é fazer com que o capitalismo funcione de forma mais justa para a maioria, mas sem prejudicar significativamente os interesses do capital, porque isso mataria a galinha dos ovos. Essa esquerda perdeu força, porque a galinha dos ovos capitalista não está mais botando ovos suficientes para todos e, cada vez mais, os produz apenas para a minoria dominante. A esquerda liberal costumava elogiar o sucesso da globalização e do livre comércio no período da Grande Moderação, a partir da década de 1990. A crise financeira global e a Grande Recessão, seguidas pela Longa Depressão da década de 2010, a devastadora crise pandêmica de 2020, a consequente espiral inflacionária no custo de vida — tudo isso expôs o fracasso do capitalismo em atender às necessidades sociais da maioria nos Estados Unidos, na Europa e em todo o mundo no século XXI. O liberalismo e a reforma gradual, outrora defendidos com sucesso pela esquerda liberal, foram desacreditados em todos os lugares. Foram substituídos pelo apoio popular a um nacionalismo grosseiro, na forma de racismo anti-grandes empresas e anti-imigrantes, disseminado pelos Estados Unidos e pela Europa (por exemplo, 70% das pessoas detidas nos centros de detenção do ICE nos Estados Unidos não tinham condenações criminais, e muitas das que tinham antecedentes criminais cometeram apenas infrações menores, como infrações de trânsito). Trump e seus apoiadores do MAGA, Farage no Reino Unido e outros grupos semelhantes em toda a Europa representam um movimento em direção aos anos sombrios do fascismo da década de 1930, que eventualmente levaram a uma terrível guerra mundial. Para combater isso, a verdadeira esquerda deve partir da premissa de que o sistema capitalista, agora dominante globalmente, está irreversivelmente em crise.

·        A questão da multipolaridade parece mais complexa. Para alguns, multipolaridade significa simplesmente fortalecer os países capitalistas do Sul Global. Para outros, e esta é a perspectiva mais interessante, trata-se de romper com o domínio ocidental e criar mais espaço de manobra para projetos progressistas que, de outra forma, poderiam ser sufocados pela hegemonia estadunidense.

MR - Os BRICS podem ser uma força alternativa decisiva ao imperialismo liderado pelos EUA com sua sempre ambiciosa aliança com a OTAN? Acho que não. Economicamente, os BRICS e até mesmo os BRICS+, incluindo Indonésia, Egito e possivelmente Arábia Saudita, formam um grupo disperso, no qual a China é a economia dominante. Os outros são relativamente fracos ou excessivamente dependentes de um setor, geralmente energia e matérias-primas. A influência financeira dos BRICS, com seu Novo Banco de Desenvolvimento, é fraca em comparação com as agências do capital ocidental. Politicamente, os líderes do grupo BRICS têm interesses e ideologias diversos. A Rússia é uma autocracia de compadrio. O Irã é governado por uma elite religiosa islâmica. A China, apesar de seu sucesso econômico fenomenal, tem um regime de partido único. A Índia é governada por um partido nacionalista hindu ex-fascista que reprime qualquer dissidência. Esses não são governos que defendem o internacionalismo ou a democracia dos trabalhadores. Dentro desses países, não há margem de manobra, como você disse. O que é necessário é a remoção desses regimes pelos movimentos dos trabalhadores para estabelecer democracias socialistas genuínas que liderem a mudança internacional.

O surgimento da multipolaridade no século XXI é consequência do declínio relativo do capitalismo estadunidense, especialmente desde a crise financeira global e a consequente Grande Recessão. Mas é uma ilusão perigosa imaginar que as potências resistentes sejam uma força a favor do internacionalismo, que alcançarão uma redução da desigualdade e da pobreza globalmente, ou que deterão o aquecimento global e o iminente desastre ambiental. Precisamos de uma internacional de governos socialistas para isso. Se um governo socialista chegasse ao poder em uma grande economia, isso abriria espaço para outros países resistirem ao imperialismo. Um governo socialista poderia trabalhar com países fora do controle dos EUA, como Venezuela ou Cuba, que hoje têm opções muito limitadas. Mas, o mais importante, também inspiraria o movimento por governos socialistas democráticos em todo o mundo.

 

Fonte: Entrevista com Michael Roberts - Tradução Pedro Silva, para Jacobin Brasil

 

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