O
mito da “Europa civilizada”: a bonança construída sobre saques e extermínios
A
narrativa dominante sobre a história da Europa costuma apresentar o continente
como berço da civilização, da razão, da ciência e dos direitos humanos. A
Modernidade europeia é frequentemente descrita como um empreendimento moral e
civilizacional, que teria irradiado luz a um mundo supostamente mergulhado na
barbárie. Essa autoimagem idealizada, contudo, entra em profundo conflito
com o passado colonial dos mesmos países que se orgulham de tal
superioridade moral. Nada como revisitar a história para refrescarmos
a nossa memória. Entre os exemplos mais chocantes estão os massacres
perpetrados por alemães, belgas e britânicos em território africano — atos que
destruíram sociedades, aniquilaram culturas, desviaram recursos e lançaram
bases para desigualdades que persistem até hoje.
A
riqueza acumulada pelos países europeus não se explica pela inventividade
europeia isolada, como muitas vezes nos querem fazer crer. Foi o resultado de
um processo sistemático de saque, expropriação e violência organizada contra
povos africanos. Examinar criticamente esses massacres é, ademais de um
exercício histórico, a desmontagem necessária de um mito que ainda sustenta
relações internacionais profundamente assimétricas. E é também um convite a
repensarmos a própria ideia de civilização, frequentemente apropriada pelas
potências europeias como justificativa para atrocidades cometidas em nome do
progresso.
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Pilar que financiou a riqueza
O
genocídio dos Herero e Nama, na atual Namíbia (que citei em texto recentemente publicado aqui na
Diálogos do Sul Global), é um dos capítulos mais mortíferos do colonialismo
europeu. Em resposta a uma revolta contra a expropriação de terras, a imposição
de trabalho forçado e o abuso sistemático, o Império Alemão iniciou uma
campanha militar que tinha como objetivo explícito o extermínio dessas
populações. Em 1904, o general Lothar von Trotha emitiu a “ordem de
extermínio”, declarando que todo Herero encontrado dentro das fronteiras da
colônia seria morto. Homens, mulheres e crianças foram perseguidos pelo deserto
de Omaheke, envenenados em poços de água e aprisionados em campos de
concentração. Estima-se que cerca de 80% dos Herero e 50% dos Nama tenham
morrido. Esse genocídio — frequentemente esquecido nas narrativas europeias —
inclusive nos livros de História — foi amplamente estruturado a partir de
ideias pseudocientíficas raciais, que viam africanos como subumanos e
descartáveis. Essa violência extrema fez parte do projeto colonial, motivado
pela ambição alemã de tornar-se uma potência global. O território e os recursos
da Namíbia foram explorados à força, e o enriquecimento resultante beneficiou
diretamente empresas, militares e burocratas alemães.
Talvez
nenhum episódio colonial seja tão emblemático quanto o reinado de horror
imposto por Leopoldo II no Estado Livre do Congo, entre 1885 e 1908. Embora se
apresentasse como filantropo e benfeitor, o referido rei europeu, mais
precisamente belga, governou o território como sua propriedade privada,
estabelecendo um regime de trabalho forçado que produziu um dos maiores
massacres da história moderna. A obra da violência belga tinha como principal
objetivo extrair borracha e marfim — commodities que alimentavam
o desenvolvimento industrial da Europa. Para aumentar a produtividade, as
forças coloniais adotaram práticas sistemáticas de terror, tais como
mutilações, execuções, destruição de aldeias inteiras e sequestro de mulheres e
crianças para forçar homens a trabalhar. Era comum que soldados tivessem de
apresentar mãos amputadas como prova de que não tinham desperdiçado
munição.
As
estimativas variam, mas calcula-se que entre oito e dez milhões de congoleses
tenham sido assassinados como resultado direto da política colonial belga. Essa
violência foi um pilar da riqueza que financiou edifícios, avenidas, museus e
monumentos que, até hoje, enfeitam Bruxelas — a capital belga e também a cidade
onde diariamente se discutem os rumos da União Europeia (e claro, novas formas
de colonizar o mundo).
Cito um
terceiro exemplo de violência extrema que tem como protagonista a Grã-Bretanha,
frequentemente vista como paradigma de democracia, de legalidade e de tradição
constitucional. Possuidora de um dos mais extensos históricos de violência
colonial em África, o país dizimou comunidades, confiscou terras e submeteu
populações inteiras à fome, à deportação e ao trabalho forçado. Um dos casos
mais ilustrativos é o da organização Mau Mau, no Quênia, na década de
1950.
A
revolta Mau Mau foi uma resposta à expropriação de terras férteis pelos colonos
brancos e às políticas de segregação que subordinavam os povos Kikuyu, Embu e
Meru. Em resposta, o governo britânico instaurou um regime de campos de
detenção, tortura e execuções sumárias. Prisioneiros eram sistematicamente
espancados, queimados, castrados e submetidos a privação extrema de alimentos.
Estudos recentes estimam que mais de 100 mil quenianos foram detidos em
condições desumanas, e milhares morreram devido à violência estatal.
Antes
disso, na transição do século 19 para o 20, políticas britânicas contribuíram
para fomes devastadoras em diversas partes do continente, incluindo regiões da
atual Zâmbia e do Malawi, por exemplo. Em muitos casos, a prioridade dada ao
comércio imperial, ao transporte de mercadorias e à imposição de tributos
coloniais impediu a resposta adequada a crises alimentares. O resultado foram
mortes em massa (silenciosas, mas não menos brutais).
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Mentalidade imperialista
Dito
isso, temos que nos perguntar algumas coisas. Como conciliar tamanha crueldade
com a suposta racionalidade e progresso europeus? Que espécie de civilidade
legitima o extermínio de povos inteiros para abrir espaço a plantações
coloniais e concessões mineradoras?
A
resposta, embora incômoda, é que a própria ideia de civilização europeia foi
construída sobre violência colonial. Quando observamos esses episódios em
conjunto — o genocídio alemão na Namíbia, o regime de massacre belga no Congo,
os campos de tortura britânicos no Quênia — torna-se impossível sustentar
a visão idealizada da Europa como continente pacífico, moral e
civilizador. A riqueza desses países não pode ser separada das pilhagens
coloniais, da extração de recursos por meio do terror e da destruição deliberada
de sociedades africanas. A industrialização europeia só foi possível porque
recursos africanos — borracha, cobre, diamantes, ouro, algodão, mão de obra
escravizada — foram sistematicamente desviados para o Norte Global. A
acumulação primitiva que alimentou bancos, fábricas, universidades e
infraestruturas não foi um processo natural ou espontâneo.
É
inegável que a arrogância europeia, refletida em discursos soberbos e
minimizadores do impacto do colonialismo, ainda ecoa nas declarações de figuras
públicas, mesmo em tempos modernos. Um exemplo recente foi a fala proferida
pelo mandatário alemão Friedrich Merz, que, ao comentar sobre o estado do Pará,
no Brasil, fez uma observação condescendente e etnocêntrica, revelando a
persistente mentalidade imperialista de algumas lideranças europeias. Merz, que
ocupa posição de destaque no cenário político alemão, causou polêmica ao se
referir ao Brasil com um tom de superioridade, ignorando os séculos de
exploração colonial europeia que contribuíram para a desigualdade que ainda
marca regiões como a Amazônia.
A
crítica implícita, que minimiza as dificuldades locais, revela a continuidade
da visão de que países fora da Europa estão em um estágio de desenvolvimento
inferior, necessitando da orientação do Ocidente para prosperar. Esse tipo de
discurso, por mais disfarçado que seja, carrega consigo resquício de uma lógica
colonial que ainda associa o desenvolvimento ao projeto de dominação e de
intervenção europeia. Essa postura de minimização da brutalidade colonial
faz parte de um padrão histórico.
Em
2002, o então primeiro-ministro britânico Tony Blair, ao reconhecer o tráfico
de escravizados, tentou suavizar o impacto do colonialismo, afirmando que o
Império Britânico trouxe “instituições importantes” para as ex-colônias. Essa
afirmação buscava justificar o legado imperial, sugerindo que as populações
africanas, asiáticas e caribenhas se beneficiaram de uma civilização europeia,
ignorando os massacres, as pilhagens e a destruição de culturas indígenas. Esse
raciocínio reduz as atrocidades coloniais a um “preço” pela modernidade
europeia, minimizando os danos causados pela imposição de modelos de governança
e pela destruição de sociedades autênticas.
Em
2007, durante um discurso no Senegal, Nicolas Sarkozy afirmou que o “homem
africano não entrou suficientemente na História”, uma frase racista e
paternalista que afirmava, implicitamente, que os africanos não haviam
contribuído para o desenvolvimento da humanidade. Essa declaração do então
presidente francês ignorava os milênios de história e de civilização africanas
antes da invasão dos europeus, reduzindo o continente a um estágio primitivo
que só se tornaria relevante com a “intervenção civilizatória” europeia. O
comentário foi amplamente criticado, pois perpetuava a narrativa eurocêntrica
que coloca as potências coloniais como protagonistas da história global.
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Negação dos danos
Há oito
anos, em 2017, durante sua campanha presidencial, o atual presidente francês,
Emmanuel Macron, afirmou que a colonização da Argélia teve “elementos de
civilização”. Embora tenha se retratado depois, reconhecendo o colonialismo
como um “crime contra a humanidade”, sua declaração inicial tentou suavizar a
brutalidade da colonização, tratando-a como uma “missão civilizatória”. Essa
fala, que causou repulsa e muitas reações dentro da África, ignorou os
massacres, as torturas e a destruição cultural que marcaram a ocupação da
Argélia, refletindo uma tendência de revisionismo histórico ainda presente no
discurso político europeu. Macron, ao minimizar os horrores do colonialismo,
revelava uma visão ambígua, que reconhecia a violência, mas ainda justificava a
“superioridade” cultural europeia.
Esses
discursos são demonstrações explícitas de uma contínua negação do impacto
devastador do colonialismo. Ao tratarem os países colonizados como eternos
receptores de uma “benéfica intervenção”, esses europeus minimizam os horrores
que milhões de africanos, asiáticos e latino-americanos sofreram, e também
buscam perpetuar a ideia de que a história mundial deve ser escrita a partir de
uma perspectiva eurocêntrica. Este revisionismo histórico, que tenta suavizar a
opressão e a violência dos impérios coloniais, é, sem dúvida, um obstáculo à
verdadeira reconciliação e compreensão entre o Ocidente e as ex-colônias.
Esses
discursos — como os de Blair, de Sarkozy e de Macron (aliados ao de Merz) —
refletem um espírito imperialista ainda presente no imaginário coletivo da
maioria das “potências europeias”. Em grande parte, isso se deve a um processo
de negação dos danos historicamente persistente nesses países, e também à busca
por impor uma visão eurocêntrica de progresso. Essa distorção da história tem
ressonância em muitas partes do mundo, inclusive no Brasil, onde persiste um
certo espírito de subserviência, um complexo de inferioridade que alimenta a
crença de que a cultura e os valores europeus são superiores aos
locais.
¨ União Europeia adia
novamente lei antidesmatamento
A
presidência do Conselho da União Europeia (UE) e
representantes do Parlamento Europeu chegaram nesta quinta-feira (05/12) a um
acordo político provisório para revisar e adiar novamente a entrada em vigor da
lei contra o desmatamento , que proíbe a venda no bloco europeu
de produtos cultivados em áreas que
foram devastadas depois
de dezembro de 2020.
O
objetivo é simplificar a implementação das regras existentes e adiar sua
aplicação para permitir que operadores, comerciantes e autoridades se preparem
adequadamente, disseram em comunicado. O novo adiamento prevê que a lei só
entre em vigor no final de 2026. Para micro e pequenas empresas, a regra
só será aplicada em meados de 2027.
Além
disso, serão introduzidas medidas adicionais de simplificação, com foco na
redução da burocracia. Pelo acordo, apenas as empresas que colocarem um produto
no mercado da UE pela primeira vez serão obrigadas a apresentar uma declaração
de diligência. Varejistas e empresas situadas mais abaixo na cadeia de
suprimentos ficam isentos dessa obrigação.
Micro e
pequenas empresas apresentarão ainda apenas uma declaração simplificada única e
receberão um identificador de declaração, que será suficiente para fins de
rastreabilidade.
O novo
adiamento ocorre após pressão do setor
industrial e de parceiros comerciais da UE.
Anteriormente, a lei foi criticada pelos Estados Unidos, Brasil e Indonésia.
A lei
da União Europeia para cadeias de suprimentos livres de desmatamento proíbe a
venda de produtos cultivados em áreas que foram desmatadas depois de dezembro
de 2020. As regulamentações afetam carne bovina, couro, cacau, café , óleo de
palma, soja, madeira e borracha, incluindo derivados como chocolate e móveis.
Ela
estava originalmente programada para entrar em vigor em 30 de novembro de 2024
e, pouco antes disso, já havia sido adiada em um ano.
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Reações
A lei
visa acabar com os 10% do desmatamento global alimentado pelo consumo de
produtos importados pela UE, mas é uma parte muito contestada da agenda verde
europeia.
A
eurodeputada alemão Anna Cavazzini, do Partido Verde, estima que o novo
adiamento levará à destruição de centenas de milhares de hectares adicionais de
floresta. Ela destaca que a Amazônia está à beira de
um ponto de não retorno e que as crises climática e de biodiversidade continuam
se intensificando.
Já o
eurodeputado alemão Markus Ferber, do conservador Grupo do Partido Popular
Europeu, aprovou a mudança e disse que a lei em sua forma original era um
"monstro burocrático".
O
acordo alcançado nesta quinta também tirou do escopo da lei determinados
produtos impressos, como livros e jornais, afirmando que há um risco limitado
de desmatamento associado a esses itens. Essa alteração beneficia,
principalmente, indústria de papel e celulose dos EUA.
A
mudança ainda precisa ser aprovada formalmente pelo Parlamento Europeu e pelos
Estados-membros da UE.
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O que diz a lei
O
objetivo da regulamentação é combater o desmatamento dentro da União Europeia e
também em outras regiões do planeta. De acordo com a legislação, produtos só
podem ser vendidos na UE se nenhuma floresta tiver sido desmatada para sua
produção após dezembro de 2020. A lei foi elaborada e negociada em 2023.
Empresas
que queiram vender seus produtos na UE – incluindo soja, carne bovina e óleo de
palma – terão que comprovar que eles não provêm de terras recentemente
desmatadas. Para isso deverão usar dados de geolocalização nos países
produtores, combinados com fotos de satélite, e transmitir essas informações a
Bruxelas.
Muitas
empresas e também governos da UE criticaram tanto as exigências como os custos
para cumprir com as regras de rastreabilidade. Diversos setores econômicos,
incluindo o alimentício e as editoras de jornais, também criticaram a proposta
de lei pela falta de tempo para se preparar. Vários países-membros da UE
pressionaram pela revisão ou adiamento da legislação, incluindo Itália, Áustria
e Alemanha.
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Pressão de parceiros comerciais
No ano
passado, em meio à pressão de parceiros comerciais como o Brasil, a Indonésia,
os Estados Unidos, a Austrália, a Nova Zelândia e o Canadá, a Comissão Europeia
já havia concordado com uma extensão inicial de pouco mais de um ano, até o fim
de dezembro de 2025, para que as regulamentações começassem a ser aplicadas a
grandes empresas, e até junho de 2026 para pequenas empresas.
Os
países-membros e o Parlamento Europeu aceitaram essa primeira extensão, que foi
amplamente criticada pela esquerda e por ambientalistas. O regulamento também
foi criticado pelos Estados Unidos , que fechou um
acordo comercial com a UE no fim de julho com amplas concessões ao governo do
presidente Donald Trump .
Numa
declaração comercial conjunta no fim de agosto, a Comissão Europeia prometeu
abordar as preocupações dos produtores e exportadores dos EUA relacionadas à
lei antidesmatamento "para evitar impactos indevidos no comércio
EUA-UE".
Fonte:
Diálogos do Sul Global/DW Brasil

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