segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Terras raras e soberania: o elo invisível entre ciência, indústria e poder

Embora não sejam escassas na crosta terrestre, as terras raras tornaram-se sinônimo de disputa estratégica no século XXI. A designação inclui dezessete elementos químicos – do lantânio ao lutécio, além do ítrio e do escândio – fundamentais à produção de ímãs permanentes, turbinas eólicas, motores elétricos, sensores, lasers e dispositivos de comunicação.

O caráter “raro” desses elementos não se deve à escassez na natureza, e sim à complexidade de separá-los entre si devido à semelhança química que apresentam. A extração e o refino exigem processos caros, complexos e de alto impacto ambiental, marcados pelo uso intensivo de ácidos e solventes e pela geração de rejeitos tóxicos e radioativos (Hurst, 2010). É justamente aí que reside o poder geopolítico: poucos países dominam essas etapas críticas.

Nos anos 1980, os Estados Unidos eram o maior produtor mundial, concentrando suas operações em Mountain Pass, na Califórnia. A partir da década seguinte, a China consolidou um domínio quase absoluto sobre a cadeia, integrando mineração, separação química e manufatura (Mancheri, 2012). O país construiu esse controle combinando planejamento estatal, investimento em pesquisa e políticas industriais de longo prazo.

O exemplo de Bayan Obo, na Mongólia Interior, é emblemático. Em 1992, ao visitar a região, local de uma das maiores minas de terras raras da China, Deng Xiaoping declarou: “O Oriente Médio tem petróleo; a China tem terras raras.” A frase aludia ao fato de o país deter mais de 30% das reservas mundiais desses minérios (Seth, 2024). Ali, o governo chinês passou a estruturar um complexo industrial completo – da extração mineral ao refino e à fabricação de ligas, ímãs e dispositivos de alta tecnologia – e formou técnicos e engenheiros especializados (Mancheri et al., 2019). O resultado foi um monopólio de fato: hoje, a China responde por cerca de 70 % da produção mundial de óxidos de terras raras e por mais de 90 % dos ímãs de alto desempenho.

A dependência externa de grandes economias industriais – como Estados Unidos, Japão e países da União Europeia – tornou-se evidente em 2019, quando Pequim restringiu a exportação de metais usados em ímãs de defesa em meio às tensões comerciais com Washington. Naquele ano, cerca de 88% das exportações chinesas de terras raras destinaram-se a apenas cinco países – Estados Unidos, Japão, Holanda, Coreia do Sul e Itália, evidenciando a forte concentração e a interdependência assimétrica que marcam o setor. Essa configuração torna os importadores vulneráveis a choques comerciais ou geopolíticos – pelo risco de desabastecimento – e a própria China dependente de poucos compradores estratégicos.

Em 2025, a China ampliou o controle com uma diretiva que impôs licença prévia para exportações não só de terras raras, mas também de produtos fabricados no exterior que utilizem insumos de origem chinesa – estendendo seu poder regulatório a toda a cadeia global. Controlar as terras raras é, em última instância, controlar o ritmo da inovação tecnológica – dos motores elétricos e turbinas eólicas aos chips, sensores e sistemas de defesa que definem a economia do século XXI.

No Brasil, a história começou cedo, mas foi interrompida – e, em certos momentos, sabotada. Já nos anos 1940, a Orquima S.A., fundada em São Paulo por imigrantes austríacos liderados pelo químico Pawel Krumholz, iniciou o tratamento industrial de areias monazíticas ricas em tório, lantânio e európio [i] (Rosental, 2005).

A empresa dominou, com recursos essencialmente nacionais, processos de separação e purificação por precipitação fracionada e troca iônica, alcançando feitos notáveis: em 1951, Krumholz e sua equipe conseguiram produzir óxido de európio com pureza superior a 99%, algo que nem mesmo os laboratórios americanos e franceses haviam obtido na época (Serra, 2011). Isso colocou o Brasil, ainda que por breve período, na vanguarda mundial da química das terras raras. No entanto, a falta de apoio estatal e o interesse geopolítico estrangeiro nos minerais radioativos da monazita levaram à desativação gradual da planta.

Pressões internacionais, especialmente dos Estados Unidos, que buscavam controlar o fornecimento global de tório para fins nucleares, acabaram por restringir a continuidade das operações. Nos anos seguintes, milhares de toneladas de concentrados de monazita foram contrabandeadas para os Estados Unidos e o Reino Unido, com conivência de intermediários privados e inércia das autoridades (Lopes; Bourguignon, 2015). O episódio, amplamente denunciado à época pelo Almirante Álvaro Alberto, então presidente do Conselho Nacional de Pesquisas, revelou a falta de visão estratégica e a fragilidade do Estado brasileiro em proteger recursos de alto valor científico e militar (Saraiva, 2007).

A Orquima acabou incorporada à Nuclemon – Minérios Monazíticos S.A., estatal criada em 1958 e vinculada à Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). A Nuclemon chegou a dominar a extração e parte da separação de terras raras e tório, mas a ausência de uma política industrial consistente levou à sua desativação no fim dos anos 1980 – encerrando um dos raros esforços nacionais de verticalização tecnológica e domínio autônomo nessa área.

Entre 1993 e 1996, a Indústrias Nucleares do Brasil (INB) e o Instituto de Engenharia Nuclear (IEN/CNEN) criaram a Unidade de Desenvolvimento de Solventes, para recuperar o conhecimento perdido sobre processos de separação (CETEM, 2015). A iniciativa ocorreu num contexto de forte dependência tecnológica: as patentes das principais empresas japonesas – Shin-Etsu, Sumitomo, Showa Denko, Mitsubishi – concentravam os extratantes e as modelagens cinéticas. Como observou Paulo Sérgio Moreira Salles, do CETEM, “operar não é dominar” – uma síntese do dilema brasileiro entre a execução técnica e a autonomia científica (Salles, 2015).

Nas últimas décadas, o Brasil voltou a reconhecer o potencial estratégico de suas reservas – nos carbonatitos de Araxá e Catalão, em Minas Gerais e Goiás, e nas areias monazíticas do Nordeste. Essas formações têm composição geológica complementar à das jazidas chinesas, dominadas por argilas iônicas: enquanto a China concentra terras raras leves em depósitos rasos, o Brasil reúne minérios ricos em elementos pesados, de maior valor tecnológico (USGS, 2024).

Abre-se hoje uma oportunidade geopolítica singular: sob a liderança dos Estados Unidos, os países do bloco ocidental buscam reduzir sua dependência crítica da China no ciclo produtivo das terras raras. Com reservas expressivas, matriz energética limpa e estabilidade institucional, o Brasil reúne condições únicas para firmar parcerias que não apenas ampliem sua inserção internacional, mas também lhe permitam alcançar novos patamares tecnológicos e de soberania produtiva (de Melo, 2025).

Nosso desafio é romper o ciclo histórico de exportar concentrados brutos e importar produtos de alto valor agregado. Isso exige reconstruir a cadeia produtiva completa, da prospecção ao produto final, o que inclui o domínio de quatro tecnologias-chave: a abertura química (cracking), a separação elementar por extração líquido-líquido, a metalurgia das ligas e a fabricação de ímãs e componentes. São nessas etapas – e não na mineração em si – que se concentram o conhecimento, o valor e a autonomia.

Alguns passos recentes apontam para uma retomada institucional. Em 2024, foi apresentado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 2780/2024, que propõe a criação da Política Nacional de Minerais Críticos e Estratégicos e de um Comitê Interministerial para coordenar o tema (Silva et al., 2024). No ano seguinte, o Conselho Nacional de Política Mineral (CNPM) foi instalado, ligado diretamente à Presidência da República. Essas medidas são ainda iniciais, mas sinalizam uma compreensão mais ampla de que a soberania tecnológica depende da governança dos recursos materiais.

O caso norte-americano reforça a lição. Desde 1939, os Estados Unidos mantêm um programa de estoques estratégicos de minerais críticos (National Defense Stockpile), hoje avaliado em cerca de US$ 1,3 bilhão (Keys, 2023). O objetivo é reduzir a vulnerabilidade em caso de ruptura nas cadeias de suprimento (Coughlan, 2024) – um reconhecimento explícito de que a segurança industrial é parte inseparável da defesa nacional.

No Brasil, falta uma estratégia semelhante. Em 2025, o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE, 2025) atualizou seu roteiro nacional para as terras raras, originalmente dividido em três fases (CGEE, 2013). A Fase 1 (2012–2020), dedicada à formação de capacidades científicas e institucionais, avançou pouco por falta de coordenação e incentivos industriais. A Fase 2 (2021–2025) previa a transição da pesquisa à produção, impulsionada pela mina Serra Verde, em Minaçu (GO), e por investimentos externos de cerca de US$ 150 milhões, mas permaneceu sem políticas de refino, metalurgia e manufatura local. A Fase 3 (2026–2030) projeta dobrar a produção, instalar plantas de separação e refino, criar centros nacionais de referência e integrar o país às cadeias industriais de energia, mobilidade e defesa.

A entrada em operação da Serra Verde é um marco: faz do Brasil o único produtor ativo de terras raras fora da Ásia, mas também expõe limites estruturais. O controle acionário, privado e majoritariamente estrangeiro [ii], e a tecnologia proprietária, baseada em processos convencionais para argilas iônicas e sem garantias de transferência de know-how, mantêm o país dependente. A falta de domínio tecnológico e o processamento final realizado na China mostram que o Brasil ainda exporta minério, não inteligência mineral. O desafio é transformar a capacidade de produzir em capacidade de compreender e inovar, alcançando o domínio das tecnologias que geram bens de alto valor agregado.

Ainda que existam amplas reservas conhecidas e competência científica acumulada em instituições públicas, o país continua dependente de importações em praticamente todas as etapas de separação e manufatura. Soberania, nesse campo, significa integrar ciência, indústria e Estado numa política de longo prazo.

Nesse sentido, destaca-se o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Terras Raras, que entre 2018 e 2025 articulou universidades, centros de pesquisa e indústria para integrar todas as etapas da cadeia produtiva – da extração ao refino e à fabricação de superímãs (INCT, 2025). O programa desenvolveu métodos nacionais de separação e refino, aperfeiçoou processos metalúrgicos e iniciou, em escala piloto, a produção de ligas e ímãs de neodímio-ferro-boro (NdFeB) com desempenho comparável a protótipos internacionais. Seu principal legado é o LabFabITR, hoje incorporado ao CIT-Senai de Lagoa Santa (MG) – o primeiro laboratório-fábrica nacional de ímãs de terras raras, voltado à formação de especialistas e à redução da dependência tecnológica externa. Projetos associados, envolvendo WEG, Vale e Stellantis, apontam para a consolidação de um ecossistema nacional de manufatura de ímãs e motores elétricos, capaz de marcar a transição do país da fase de operar para a de dominar a inteligência mineral.

Iniciativas como o CIT-Senai de Lagoa Santa ilustram o caminho para a autonomia industrial brasileira, ao combinar produção mineral e inovação local. Essa integração – do subsolo à indústria – é o que pode finalmente transformar o Brasil de exportador de concentrados em produtor soberano de conhecimento e tecnologia aplicada.

Articular a cadeia das terras raras – da prospecção geológica ao refino, metalurgia e fabricação de componentes de alta tecnologia – exige mais do que capital: requer continuidade institucional, formação de quadros técnicos, planejamento de demanda e coordenação interministerial. A experiência do ciclo nuclear brasileiro mostra que isso é possível. O domínio do enriquecimento de urânio, obtido após décadas de pesquisa, demonstra que o Brasil pode desenvolver tecnologias sensíveis com autonomia e transparência (World Nuclear Association, 2025). O mesmo princípio vale para as terras raras: sem uma política de Estado que una ciência, indústria e estratégia, a mineração continuará sendo apenas o prólogo de nossa dependência.

 

Fonte: Por Celso Pinto de Melo, em A Terra é Redonda 

 

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