Terras
raras e soberania: o elo invisível entre ciência, indústria e poder
Embora
não sejam escassas na crosta terrestre, as terras raras tornaram-se sinônimo de
disputa estratégica no século XXI. A designação inclui dezessete elementos
químicos – do lantânio ao lutécio, além do ítrio e do escândio – fundamentais à
produção de ímãs permanentes, turbinas eólicas, motores elétricos, sensores,
lasers e dispositivos de comunicação.
O
caráter “raro” desses elementos não se deve à escassez na natureza, e sim à
complexidade de separá-los entre si devido à semelhança química que apresentam.
A extração e o refino exigem processos caros, complexos e de alto impacto
ambiental, marcados pelo uso intensivo de ácidos e solventes e pela geração de
rejeitos tóxicos e radioativos (Hurst, 2010). É justamente aí que reside o
poder geopolítico: poucos países dominam essas etapas críticas.
Nos
anos 1980, os Estados Unidos eram o maior produtor mundial, concentrando suas
operações em Mountain Pass, na Califórnia. A partir da década seguinte, a China
consolidou um domínio quase absoluto sobre a cadeia, integrando mineração,
separação química e manufatura (Mancheri, 2012). O país construiu esse controle
combinando planejamento estatal, investimento em pesquisa e políticas
industriais de longo prazo.
O
exemplo de Bayan Obo, na Mongólia Interior, é emblemático. Em 1992, ao visitar
a região, local de uma das maiores minas de terras raras da China, Deng
Xiaoping declarou: “O Oriente Médio tem petróleo; a China tem terras raras.” A
frase aludia ao fato de o país deter mais de 30% das reservas mundiais desses
minérios (Seth, 2024). Ali, o governo chinês passou a estruturar um complexo
industrial completo – da extração mineral ao refino e à fabricação de ligas,
ímãs e dispositivos de alta tecnologia – e formou técnicos e engenheiros
especializados (Mancheri et al., 2019). O resultado foi um monopólio de fato:
hoje, a China responde por cerca de 70 % da produção mundial de óxidos de
terras raras e por mais de 90 % dos ímãs de alto desempenho.
A
dependência externa de grandes economias industriais – como Estados Unidos,
Japão e países da União Europeia – tornou-se evidente em 2019, quando Pequim
restringiu a exportação de metais usados em ímãs de defesa em meio às tensões
comerciais com Washington. Naquele ano, cerca de 88% das exportações chinesas
de terras raras destinaram-se a apenas cinco países – Estados Unidos, Japão,
Holanda, Coreia do Sul e Itália, evidenciando a forte concentração e a
interdependência assimétrica que marcam o setor. Essa configuração torna os
importadores vulneráveis a choques comerciais ou geopolíticos – pelo risco de
desabastecimento – e a própria China dependente de poucos compradores
estratégicos.
Em
2025, a China ampliou o controle com uma diretiva que impôs licença prévia para
exportações não só de terras raras, mas também de produtos fabricados no
exterior que utilizem insumos de origem chinesa – estendendo seu poder
regulatório a toda a cadeia global. Controlar as terras raras é, em última
instância, controlar o ritmo da inovação tecnológica – dos motores elétricos e
turbinas eólicas aos chips, sensores e sistemas de defesa que definem a
economia do século XXI.
No
Brasil, a história começou cedo, mas foi interrompida – e, em certos momentos,
sabotada. Já nos anos 1940, a Orquima S.A., fundada em São Paulo por imigrantes
austríacos liderados pelo químico Pawel Krumholz, iniciou o tratamento
industrial de areias monazíticas ricas em tório, lantânio e európio [i]
(Rosental, 2005).
A
empresa dominou, com recursos essencialmente nacionais, processos de separação
e purificação por precipitação fracionada e troca iônica, alcançando feitos
notáveis: em 1951, Krumholz e sua equipe conseguiram produzir óxido de európio
com pureza superior a 99%, algo que nem mesmo os laboratórios americanos e
franceses haviam obtido na época (Serra, 2011). Isso colocou o Brasil, ainda
que por breve período, na vanguarda mundial da química das terras raras. No
entanto, a falta de apoio estatal e o interesse geopolítico estrangeiro nos
minerais radioativos da monazita levaram à desativação gradual da planta.
Pressões
internacionais, especialmente dos Estados Unidos, que buscavam controlar o
fornecimento global de tório para fins nucleares, acabaram por restringir a
continuidade das operações. Nos anos seguintes, milhares de toneladas de
concentrados de monazita foram contrabandeadas para os Estados Unidos e o Reino
Unido, com conivência de intermediários privados e inércia das autoridades
(Lopes; Bourguignon, 2015). O episódio, amplamente denunciado à época pelo
Almirante Álvaro Alberto, então presidente do Conselho Nacional de Pesquisas,
revelou a falta de visão estratégica e a fragilidade do Estado brasileiro em
proteger recursos de alto valor científico e militar (Saraiva, 2007).
A
Orquima acabou incorporada à Nuclemon – Minérios Monazíticos S.A., estatal
criada em 1958 e vinculada à Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). A
Nuclemon chegou a dominar a extração e parte da separação de terras raras e
tório, mas a ausência de uma política industrial consistente levou à sua
desativação no fim dos anos 1980 – encerrando um dos raros esforços nacionais
de verticalização tecnológica e domínio autônomo nessa área.
Entre
1993 e 1996, a Indústrias Nucleares do Brasil (INB) e o Instituto de Engenharia
Nuclear (IEN/CNEN) criaram a Unidade de Desenvolvimento de Solventes, para
recuperar o conhecimento perdido sobre processos de separação (CETEM, 2015). A
iniciativa ocorreu num contexto de forte dependência tecnológica: as patentes
das principais empresas japonesas – Shin-Etsu, Sumitomo, Showa Denko,
Mitsubishi – concentravam os extratantes e as modelagens cinéticas. Como
observou Paulo Sérgio Moreira Salles, do CETEM, “operar não é dominar” – uma
síntese do dilema brasileiro entre a execução técnica e a autonomia científica
(Salles, 2015).
Nas
últimas décadas, o Brasil voltou a reconhecer o potencial estratégico de suas
reservas – nos carbonatitos de Araxá e Catalão, em Minas Gerais e Goiás, e nas
areias monazíticas do Nordeste. Essas formações têm composição geológica
complementar à das jazidas chinesas, dominadas por argilas iônicas: enquanto a
China concentra terras raras leves em depósitos rasos, o Brasil reúne minérios
ricos em elementos pesados, de maior valor tecnológico (USGS, 2024).
Abre-se
hoje uma oportunidade geopolítica singular: sob a liderança dos Estados Unidos,
os países do bloco ocidental buscam reduzir sua dependência crítica da China no
ciclo produtivo das terras raras. Com reservas expressivas, matriz energética
limpa e estabilidade institucional, o Brasil reúne condições únicas para firmar
parcerias que não apenas ampliem sua inserção internacional, mas também lhe
permitam alcançar novos patamares tecnológicos e de soberania produtiva (de
Melo, 2025).
Nosso
desafio é romper o ciclo histórico de exportar concentrados brutos e importar
produtos de alto valor agregado. Isso exige reconstruir a cadeia produtiva
completa, da prospecção ao produto final, o que inclui o domínio de quatro
tecnologias-chave: a abertura química (cracking), a separação elementar por
extração líquido-líquido, a metalurgia das ligas e a fabricação de ímãs e
componentes. São nessas etapas – e não na mineração em si – que se concentram o
conhecimento, o valor e a autonomia.
Alguns
passos recentes apontam para uma retomada institucional. Em 2024, foi
apresentado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 2780/2024, que propõe a
criação da Política Nacional de Minerais Críticos e Estratégicos e de um Comitê
Interministerial para coordenar o tema (Silva et al., 2024). No ano seguinte, o
Conselho Nacional de Política Mineral (CNPM) foi instalado, ligado diretamente
à Presidência da República. Essas medidas são ainda iniciais, mas sinalizam uma
compreensão mais ampla de que a soberania tecnológica depende da governança dos
recursos materiais.
O caso
norte-americano reforça a lição. Desde 1939, os Estados Unidos mantêm um
programa de estoques estratégicos de minerais críticos (National Defense
Stockpile), hoje avaliado em cerca de US$ 1,3 bilhão (Keys, 2023). O objetivo é
reduzir a vulnerabilidade em caso de ruptura nas cadeias de suprimento
(Coughlan, 2024) – um reconhecimento explícito de que a segurança industrial é
parte inseparável da defesa nacional.
No
Brasil, falta uma estratégia semelhante. Em 2025, o Centro de Gestão e Estudos
Estratégicos (CGEE, 2025) atualizou seu roteiro nacional para as terras raras,
originalmente dividido em três fases (CGEE, 2013). A Fase 1 (2012–2020),
dedicada à formação de capacidades científicas e institucionais, avançou pouco
por falta de coordenação e incentivos industriais. A Fase 2 (2021–2025) previa
a transição da pesquisa à produção, impulsionada pela mina Serra Verde, em
Minaçu (GO), e por investimentos externos de cerca de US$ 150 milhões, mas
permaneceu sem políticas de refino, metalurgia e manufatura local. A Fase 3
(2026–2030) projeta dobrar a produção, instalar plantas de separação e refino,
criar centros nacionais de referência e integrar o país às cadeias industriais
de energia, mobilidade e defesa.
A
entrada em operação da Serra Verde é um marco: faz do Brasil o único produtor
ativo de terras raras fora da Ásia, mas também expõe limites estruturais. O
controle acionário, privado e majoritariamente estrangeiro [ii], e a tecnologia
proprietária, baseada em processos convencionais para argilas iônicas e sem
garantias de transferência de know-how, mantêm o país dependente. A falta de
domínio tecnológico e o processamento final realizado na China mostram que o
Brasil ainda exporta minério, não inteligência mineral. O desafio é transformar
a capacidade de produzir em capacidade de compreender e inovar, alcançando o
domínio das tecnologias que geram bens de alto valor agregado.
Ainda
que existam amplas reservas conhecidas e competência científica acumulada em
instituições públicas, o país continua dependente de importações em
praticamente todas as etapas de separação e manufatura. Soberania, nesse campo,
significa integrar ciência, indústria e Estado numa política de longo prazo.
Nesse
sentido, destaca-se o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Terras
Raras, que entre 2018 e 2025 articulou universidades, centros de pesquisa e
indústria para integrar todas as etapas da cadeia produtiva – da extração ao
refino e à fabricação de superímãs (INCT, 2025). O programa desenvolveu métodos
nacionais de separação e refino, aperfeiçoou processos metalúrgicos e iniciou,
em escala piloto, a produção de ligas e ímãs de neodímio-ferro-boro (NdFeB) com
desempenho comparável a protótipos internacionais. Seu principal legado é o
LabFabITR, hoje incorporado ao CIT-Senai de Lagoa Santa (MG) – o primeiro
laboratório-fábrica nacional de ímãs de terras raras, voltado à formação de
especialistas e à redução da dependência tecnológica externa. Projetos
associados, envolvendo WEG, Vale e Stellantis, apontam para a consolidação de
um ecossistema nacional de manufatura de ímãs e motores elétricos, capaz de
marcar a transição do país da fase de operar para a de dominar a inteligência
mineral.
Iniciativas
como o CIT-Senai de Lagoa Santa ilustram o caminho para a autonomia industrial
brasileira, ao combinar produção mineral e inovação local. Essa integração – do
subsolo à indústria – é o que pode finalmente transformar o Brasil de
exportador de concentrados em produtor soberano de conhecimento e tecnologia
aplicada.
Articular
a cadeia das terras raras – da prospecção geológica ao refino, metalurgia e
fabricação de componentes de alta tecnologia – exige mais do que capital:
requer continuidade institucional, formação de quadros técnicos, planejamento
de demanda e coordenação interministerial. A experiência do ciclo nuclear
brasileiro mostra que isso é possível. O domínio do enriquecimento de urânio,
obtido após décadas de pesquisa, demonstra que o Brasil pode desenvolver
tecnologias sensíveis com autonomia e transparência (World Nuclear Association,
2025). O mesmo princípio vale para as terras raras: sem uma política de Estado
que una ciência, indústria e estratégia, a mineração continuará sendo apenas o
prólogo de nossa dependência.
Fonte:
Por Celso Pinto de Melo, em A Terra é Redonda

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