O
colapso da mediação e a forma em ruínas
Vivemos
um momento em que a crise deixou de ser acontecimento para tornar-se atmosfera.
Ela infiltra-se nas práticas mais ordinárias, desgastando instituições,
corroendo vínculos, dissolvendo garantias e comprimindo horizontes. A fadiga
estrutural permeia a vida cotidiana, instaurando uma instabilidade que
dificulta organizar a experiência e construir sentido duradouro. É nesse
cenário de esgarçamento que Imediatez: ou o estilo do capitalismo tardio
demais, de Anna Kornbluh, oferece uma chave para compreender a sensibilidade
dominante do presente, uma sensibilidade moldada justamente pelo colapso das
mediações que antes sustentavam o mundo social.
Kornbluh
descreve um capitalismo operando sob um regime de exaustão estrutural: a
produção perde centralidade, a financeirização se intensifica, a circulação de
mercadorias, dados e fluxos logísticos acelera a níveis quase totais, e o
futuro se contrai. A cultura que emerge desse conjunto privilegia intensidade,
presença e imersão. A autora chama esse regime sensível de imediatez, uma forma
de experienciar que reduz distâncias, comprime o tempo, elimina filtros, impede
elaboração e encurta a vida à superfície do instante. A imediatez organiza o
sentir, o pensar e o criar segundo a lógica de um presente saturado e
vertiginoso.
Para
compreender a profundidade desse movimento, é necessário recolocar a questão da
forma e da mediação. Na tradição crítica de Lukács, Adorno e Jameson, a forma
estética é entendida como trabalho que abre distância entre subjetividade e
mundo, permitindo reconectar fragmentos com a totalidade social. Para Lukács, a
forma fornece inteligibilidade ao vivido ao organizar o disperso em
configuração. Adorno radicaliza essa função ao pensar a forma como negatividade
que resiste ao mundo administrado, fazendo emergir o que não se ajusta à lógica
da equivalência geral. Jameson, por sua vez, mostra que o capitalismo tardio
tende a demolir essas capacidades, impondo um regime de superfície,
fragmentação e crise da historicidade.
A
imediatez descrita por Kornbluh representa a intensificação extrema dessa
tendência. A forma, que antes criava intervalo e mediação, se dissolve no fluxo
contínuo. As obras já não instauram desvio nem resistência, mas aderem ao ritmo
da circulação. Narrativas que renunciam à estrutura, estéticas de imersão
total, práticas artísticas que simulam a temporalidade dos feeds, escritas que
confundem impacto com elaboração: tudo isso expressa uma sensibilidade
conformada à velocidade da circulação, na qual a forma deixa de ser forma e
converte-se em fluxo, impacto e presentificação.
O
colapso formal e a hegemonia da circulação têm consequências diretas para a
subjetividade e para o modo como o mundo se organiza. A circulação — e não a
produção — torna-se o eixo estruturante do capitalismo tardio demais.
Plataformas digitais, cadeias logísticas hiperaceleradas, sistemas de
vigilância e algoritmos de distribuição moldam o cotidiano. A vida é arrastada
por fluxos que não permitem pausa, demora, sedimentação. Franco Berardi ajuda a
esclarecer esse ponto ao mostrar como o semiocapitalismo esgota a atenção,
fragmenta o tempo e produz um sujeito simultaneamente hiperestimulado e
exaurido. Já Mark Fisher descrevia como o realismo capitalista naturaliza essa
temporalidade, convertendo a compressão do futuro em normalidade psíquica e
social.
Esse
regime produz o que Sianne Ngai chama de “afetos menores”: irritação leve,
ansiedade difusa, frustração contínua, cansaço. São afetos que não se convertem
em ação nem elaboram conflito, mas apenas acompanham a circulação incessante. A
imediatez é a estética dessa textura afetiva contínua, que impede que o
sentimento se transforme em forma ou que o tempo se organize em horizonte.
Expandir
o foco sobre a circulação permite compreender algo mais profundo: não estamos
diante de mera aceleração, mas de um reordenamento material da vida social. O
capitalismo tardio demais desloca seu centro para a logística, para a
infraestrutura, para os fluxos que conectam mercados, informações e corpos em
ritmos que anulam mediações coletivas. A vida cotidiana torna-se parte de um
regime que privilegia velocidade e sincronização, e no qual a cultura passa a
reproduzir a temporalidade da operação incessante. A forma colapsa porque o
mundo social que a sustentava também colapsou.
Apesar
desse diagnóstico rigoroso e sombrio, Kornbluh não recai em niilismo. Ao
contrário, ela insiste na possibilidade de recomposição das mediações: a forma
artística, a ficção, o intervalo, a crítica, a imaginação de temporalidades
longas e o fortalecimento de estruturas coletivas. São práticas que introduzem
demora, distanciamento, elaboração — e, portanto, resistência. São gestos que
devolvem densidade ao mundo, desalinhando a vida do ritmo logístico e reabrindo
espaços de construção comum.
É aqui
que Ernst Bloch se torna indispensável. Bloch lembra que, mesmo em contextos de
ruína, permanece ativo o “ainda-não” que atravessa a realidade, um núcleo de
possibilidade que resiste à clausura do presente. A esperança, em seu sentido
mais forte, não é expectativa ingênua, mas prática concreta que identifica
frestas no real e as amplifica. Ler Imediatez sob a luz do colapso das
mediações permite compreender que a sensibilidade contemporânea não é destino,
mas processo histórico. E, como processo, pode ser atravessado, desviado e
reorganizado.
O
diagnóstico da imediatez é duro, mas sua leitura pode ser transformadora. Ao
explicitar a lógica da circulação e a fragilização das mediações, abrimos
espaço para inventar outras formas de vida. A reconstrução de mediações
estéticas, políticas e institucionais não é tarefa abstrata, mas necessidade
vital. Ela exige imaginação, organização e coragem.
Talvez
seja justamente nesse ponto, onde tudo parece saturado e sem pausa, que a obra
de Bloch nos interpela: o tempo não se encerra no presente. Mesmo nas noites
mais densas, há sempre um lampejo que aponta para o porvir. A tarefa é, então,
reencontrar esse lampejo e transformá-lo em prática. Reconstituir mediações é
reconstituir a própria capacidade de sonhar o mundo e de construí-lo. A crise
pode ser a moldura, mas não precisa ser o destino.
Fonte:
Por Gabriel Teles, no Blog da Boitempo

Nenhum comentário:
Postar um comentário