segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

O colapso da mediação e a forma em ruínas

Vivemos um momento em que a crise deixou de ser acontecimento para tornar-se atmosfera. Ela infiltra-se nas práticas mais ordinárias, desgastando instituições, corroendo vínculos, dissolvendo garantias e comprimindo horizontes. A fadiga estrutural permeia a vida cotidiana, instaurando uma instabilidade que dificulta organizar a experiência e construir sentido duradouro. É nesse cenário de esgarçamento que Imediatez: ou o estilo do capitalismo tardio demais, de Anna Kornbluh, oferece uma chave para compreender a sensibilidade dominante do presente, uma sensibilidade moldada justamente pelo colapso das mediações que antes sustentavam o mundo social.

Kornbluh descreve um capitalismo operando sob um regime de exaustão estrutural: a produção perde centralidade, a financeirização se intensifica, a circulação de mercadorias, dados e fluxos logísticos acelera a níveis quase totais, e o futuro se contrai. A cultura que emerge desse conjunto privilegia intensidade, presença e imersão. A autora chama esse regime sensível de imediatez, uma forma de experienciar que reduz distâncias, comprime o tempo, elimina filtros, impede elaboração e encurta a vida à superfície do instante. A imediatez organiza o sentir, o pensar e o criar segundo a lógica de um presente saturado e vertiginoso.

Para compreender a profundidade desse movimento, é necessário recolocar a questão da forma e da mediação. Na tradição crítica de Lukács, Adorno e Jameson, a forma estética é entendida como trabalho que abre distância entre subjetividade e mundo, permitindo reconectar fragmentos com a totalidade social. Para Lukács, a forma fornece inteligibilidade ao vivido ao organizar o disperso em configuração. Adorno radicaliza essa função ao pensar a forma como negatividade que resiste ao mundo administrado, fazendo emergir o que não se ajusta à lógica da equivalência geral. Jameson, por sua vez, mostra que o capitalismo tardio tende a demolir essas capacidades, impondo um regime de superfície, fragmentação e crise da historicidade.

A imediatez descrita por Kornbluh representa a intensificação extrema dessa tendência. A forma, que antes criava intervalo e mediação, se dissolve no fluxo contínuo. As obras já não instauram desvio nem resistência, mas aderem ao ritmo da circulação. Narrativas que renunciam à estrutura, estéticas de imersão total, práticas artísticas que simulam a temporalidade dos feeds, escritas que confundem impacto com elaboração: tudo isso expressa uma sensibilidade conformada à velocidade da circulação, na qual a forma deixa de ser forma e converte-se em fluxo, impacto e presentificação.

O colapso formal e a hegemonia da circulação têm consequências diretas para a subjetividade e para o modo como o mundo se organiza. A circulação — e não a produção — torna-se o eixo estruturante do capitalismo tardio demais. Plataformas digitais, cadeias logísticas hiperaceleradas, sistemas de vigilância e algoritmos de distribuição moldam o cotidiano. A vida é arrastada por fluxos que não permitem pausa, demora, sedimentação. Franco Berardi ajuda a esclarecer esse ponto ao mostrar como o semiocapitalismo esgota a atenção, fragmenta o tempo e produz um sujeito simultaneamente hiperestimulado e exaurido. Já Mark Fisher descrevia como o realismo capitalista naturaliza essa temporalidade, convertendo a compressão do futuro em normalidade psíquica e social.

Esse regime produz o que Sianne Ngai chama de “afetos menores”: irritação leve, ansiedade difusa, frustração contínua, cansaço. São afetos que não se convertem em ação nem elaboram conflito, mas apenas acompanham a circulação incessante. A imediatez é a estética dessa textura afetiva contínua, que impede que o sentimento se transforme em forma ou que o tempo se organize em horizonte.

Expandir o foco sobre a circulação permite compreender algo mais profundo: não estamos diante de mera aceleração, mas de um reordenamento material da vida social. O capitalismo tardio demais desloca seu centro para a logística, para a infraestrutura, para os fluxos que conectam mercados, informações e corpos em ritmos que anulam mediações coletivas. A vida cotidiana torna-se parte de um regime que privilegia velocidade e sincronização, e no qual a cultura passa a reproduzir a temporalidade da operação incessante. A forma colapsa porque o mundo social que a sustentava também colapsou.

Apesar desse diagnóstico rigoroso e sombrio, Kornbluh não recai em niilismo. Ao contrário, ela insiste na possibilidade de recomposição das mediações: a forma artística, a ficção, o intervalo, a crítica, a imaginação de temporalidades longas e o fortalecimento de estruturas coletivas. São práticas que introduzem demora, distanciamento, elaboração — e, portanto, resistência. São gestos que devolvem densidade ao mundo, desalinhando a vida do ritmo logístico e reabrindo espaços de construção comum.

É aqui que Ernst Bloch se torna indispensável. Bloch lembra que, mesmo em contextos de ruína, permanece ativo o “ainda-não” que atravessa a realidade, um núcleo de possibilidade que resiste à clausura do presente. A esperança, em seu sentido mais forte, não é expectativa ingênua, mas prática concreta que identifica frestas no real e as amplifica. Ler Imediatez sob a luz do colapso das mediações permite compreender que a sensibilidade contemporânea não é destino, mas processo histórico. E, como processo, pode ser atravessado, desviado e reorganizado.

O diagnóstico da imediatez é duro, mas sua leitura pode ser transformadora. Ao explicitar a lógica da circulação e a fragilização das mediações, abrimos espaço para inventar outras formas de vida. A reconstrução de mediações estéticas, políticas e institucionais não é tarefa abstrata, mas necessidade vital. Ela exige imaginação, organização e coragem.

Talvez seja justamente nesse ponto, onde tudo parece saturado e sem pausa, que a obra de Bloch nos interpela: o tempo não se encerra no presente. Mesmo nas noites mais densas, há sempre um lampejo que aponta para o porvir. A tarefa é, então, reencontrar esse lampejo e transformá-lo em prática. Reconstituir mediações é reconstituir a própria capacidade de sonhar o mundo e de construí-lo. A crise pode ser a moldura, mas não precisa ser o destino.

 

Fonte: Por Gabriel Teles, no Blog da Boitempo

 

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