Ensaio
sobre a interiorização do crime organizado
O Rio
produz a marca, a disciplina, a narrativa. É o território-escola,
território-marca, território-sacrifício. Mato Grosso oferece fluxos que o Rio
não tem: corredores, silos, armazéns, fazendas, garimpos, pistas clandestinas,
rios e zonas de sombra regulatória...
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Mito, deslocamento e o olhar da fronteira
Sou uma
carioca vivendo na fronteira com a Bolívia e, desse deslocamento, aprendi a
olhar o Rio por contraste: a favela continua a pulsar como coração simbólico do
crime brasileiro, mas já não reúne sua infraestrutura operacional. Em Mato
Grosso a distância entre mito e logística aparece com nitidez desarmante.
Manifesta-se no imaginário juvenil, nos corredores universitários, nas
conversas em que “ir à favela” figura como um rito estético e identitário.
Muitos que visitam o Rio escolhem ver uma favela não como estudo, mas como
experiência: ingresso num santuário de mitos que confere pertencimento.
Vejo
jovens quilombolas, ribeirinhos e filhos do agronegócio jurando fidelidade ao
Comando Vermelho num gesto quase litúrgico, embalados por funks que circulam
como evangelhos profanos e que sedimentam uma estética bélica transformada em
pertença. O Rio produz a marca, a disciplina, a narrativa; é território-escola,
território-marca, território-sacrifício. O Estado, por sua vez, usa esse palco
para encenar soberania: corpos matáveis se tornam moeda política.
Em
contrapartida, Mato Grosso oferece o que o Rio não tem: corredores, silos,
armazéns, fazendas, garimpos, pastos, estradas, pistas clandestinas, rios e
zonas de sombra regulatória. Sem o Rio não há mito; sem Mato Grosso não há
expansão. É neste atrito, entre território simbólico e regime dos fluxos, que
se coloca a urgência de devolver à segurança pública uma leitura menos teatral
e mais logística.
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A falência da narrativa da “guerra urbana”
A
narrativa da guerra urbana ainda serve como lente fácil porque casa com a
história espacial do Rio: cidade segregada, dividida por classe e cor, em que a
disputa por morros e territórios foi sempre tradução material de um conflito
social mais amplo.
Mas a
guerra que o Estado encena nas favelas hoje é sobretudo uma ficção moral que
legitima execuções e massacres, que naturaliza a política de morte sob o verniz
de manutenção da ordem.
O
massacre de 28 de outubro de 2025, na Penha e no Alemão, mostrou essa
dissonância: enquanto corpos eram arrastados na Serra da Misericórdia e o
teatro estatal repetia sua liturgia letal, as estruturas logísticas das facções
permaneceram operantes. O Estado alvejou o mito e deixou intacto o motor; a
guerra foi encenada no palco errado.
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A mutação logística: do território ao regime dos fluxos
O
Comando Vermelho já não opera prioritariamente pela lógica da ocupação de
favelas; em vários eixos da Amazônia e do Centro-Oeste a facção deslocou sua
energia para rotas, modais e infraestruturas de circulação. Mato Grosso é a
epifania dessa transmutação: aqui não há morros cinematográficos, mas BR-163,
BR-070, silos, armazéns, caminhões, portos secos, pistas clandestinas, garimpos
mecanizados, estradas vicinais, rios navegáveis e fazendas que recentemente
eram floresta. O crime, portanto, disputa circulação mais que chão.
As
facções funcionam como correias de transmissão encaixadas na infraestrutura do
agronegócio: onde se abre mata, abrem-se rotas; onde há silo, desdobra-se
fluxo; onde há desmatamento, instala-se corredor. Operações e apreensões
comprovam essa hibridização entre logística legal e ilegal (Operação Ágata 2024
e Gefron/PRF 2024–2025).
A
violência deixou de ser essencialmente geográfica e passou a ser hidráulica: o
crime não mora mais, circula.
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Franquias criminais: expansão, marca e autonomia
A
dinâmica de expansão do CV hoje tem a forma da franquia. O Rio exporta códigos,
estética e rito; o interior absorve e adapta esses elementos conforme suas
economias locais. Há evidências jornalísticas dessa capilaridade: reportagens
mostram atuação do CV em diversos estados (Metrópoles e Diário de Cuiabá).
O
levantamento da PNBonline aponta presença de facções criminosas em 92
municípios de Mato Grosso. Esse número é chave: não evidencia 92 territórios
ocupados no sentido carioca, mas 92 nós logísticos, células autônomas
conectadas por identidade e fluxo.
O CV,
aqui, não replica a centralização empresarial do PCC, mas opera por difusão
simbólica e flexibilidade logística, mantém lealdade e estética comuns, mas
delega autonomia operacional. O Rio fornece mito; o interior fornece corredor.
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Garimpo, deslocamentos e a complexidade que a imprensa do Sudeste simplifica
A
concepção midiática do garimpo como unidade homogênea controlada integralmente
pelo tráfico é um atalho analítico que falseia a realidade.
No
campo há múltiplos arranjos: garimpos tradicionais, garimpos articulados ao
tráfico e zonas híbridas onde a facção infiltra logística sem dominar
completamente.
A
matéria da Repórter Brasil esclarece um ponto fundamental para corrigir
equívocos: o que vemos em Mato Grosso não é efeito direto de operações urbanas
no Sudeste, muitas vezes é consequência das próprias operações federais de
“desintrusão” nas terras indígenas do Norte.
As
pressões em Yanomami, Kayapó ou Munduruku, por exemplo, não desparam a rede,
deslocam-na. Como relata Julia Ospina Kimbaya, coordenadora do MPI, estruturas
empresariais e criminosas do garimpo não somem com a intervenção, mas migram
para áreas com fiscalização mais frágil, como a Terra Indígena Sararé (
localizada na cidade em que moro), que em 2025 liderou os alertas de garimpo
ilegal no país com 1.814 registros do Ibama.
O
deslocamento envolve redes empresariais que fornecem máquinas, combustíveis e
logística, e também práticas de aliciamento de mão de obra indígena. A matéria
aponta, ainda, que a repressão não resolve sozinha: sem uma pós-desintrusão
permanente e políticas públicas de substituição econômica, a simples retirada
de invasores cria vácuos que são ocupados por outras frações dos mesmos
circuitos.
A
análise do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, repercutida na GaúchaZH,
confirma a presença intensa das facções na floresta amazônica e reforça que a
expansão não é local, mas regional e transnacional.
Assim,
o garimpo no Mato Grosso não é um “braço” único do tráfico carioca; é um
conjunto heterogêneo de ecologias econômicas em que o tráfico pode ser um ator
relevante entre outros, como empresários, grileiros, operadores transnacionais,
e cujo padrão de funcionamento depende da pressão estatal e das janelas de
oportunidade do mercado global por ouro, combustível e insumos.
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A fronteira como ecossistema e a conjunção entre agronegócio, desmatamento e
crime
A
fronteira contemporânea não é uma linha, é ecossistema: um entramado que
conecta insumos agrícolas, madeira, ouro, combustíveis, pessoas e drogas por
rotas que se sobrepõem. Mato Grosso deixa isso claro: a expansão agrícola abre
estradas, pistas, pontos de apoio e microportos que, uma vez estabelecidos,
servem simultaneamente aos circuitos lícitos e ilícitos. Onde há desmatamento,
abre-se um corredor; onde há corredor, instala-se circulação.
O
garimpo intensifica essa fractalidade do território: em muitos pontos a
presença policial empurra atividades para espaços mais vulneráveis,
redesenhando o mapa da ilegalidade. A malha se adensa quando alianças
interestatais e transnacionais — com operadores bolivianos, paraguaios e
colombianos — entram em cena, fazendo da fronteira um nó de circulação
complexo, difícil de ser enfrentado por respostas meramente territoriais.
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O massacre como sintoma: Estado obsoleto e violência performática
O
massacre da Penha/Alemão é, portanto, sintoma e não exceção. Um Estado preso ao
repertório do século XX responde com letalidade onde a visibilidade é
garantida, porque ali se mostra, e não onde a eficiência logística demanda
resposta.
As
operações espetaculares tornam-se espetáculo político, ritual de reafirmação da
autoridade, promessa eleitoral e catarse coletiva. Enquanto isso, as facções
diversificam suas atividades no agro, garimpo, contrabando, imobiliário,
postos, criptomoedas, e aprofundam sua capilaridade interestadual.
Assim,
o poder letal recai sempre sobre corpos classificados como descartáveis:
negros, pobres, periféricos. A necropolítica encontra na favela o palco
perfeito para se reproduzir.
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A força simbólica do território urbano na era dos fluxos
Mesmo
quando o crime migrou para os fluxos, a favela não desapareceu: transformou-se.
Hoje ela funciona como território-escola, território-marca, território-caixa,
território-teatro, território-fetiche e território-sacrifício.
É ali
que se forjam ritmos, gestos, estética e códigos que circulam e legitimam laços
de pertencimento. A disputa territorial no Rio com invasões, caveirões,
helicópteros opera cada vez mais como performance estética disciplinadora do
que como tática de contenção logística. Não é por acaso que jovens do Norte e
do Centro-Oeste estiveram na operação da Penha: o Rio mantém a função de campo
de iniciação simbólica.
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Mato Grosso como espelho: violência circulatória e o futuro da segurança
pública
Mato
Grosso mostra o que o Rio encobre: o crime brasileiro tornou-se pós-urbano,
transfronteiriço, circulatório e cada vez mais financeiro. A verdadeira arena
de disputa passou a ser as fintechs, os bancos digitais, os contratos de
fachada, as carretas de soja, os aeródromos privados e os garimpos mecanizados,
ou seja, espaços difíceis de visibilizar por quem permanece preso à estética do
morro.
A
violência metamorfoseou-se em fluxo. Enfrentar o crime, portanto, exige
abandonar o fetiche da ocupação territorial e assumir uma segurança pública
orientada para os fluxos: mercadorias, capitais, armas, pessoas, dados e
narrativas.
Os
direitos humanos, nesse contexto, não são moralismo estanque, mas tecnologia
democrática para conter o poder letal do Estado. Enquanto o país insistir em
enxergar o problema pelo prisma da ocupação, continuará sacrificando vidas e
preservando as engrenagens que verdadeiramente movem a criminalidade.
O
massacre é o barulho; os fluxos são o silêncio que governa.
Mato
Grosso oferece a cartografia do futuro: não mais a cartografia do chão, mas a
cartografia do trânsito.
Fonte:
Por Priscila Pedrosa Prisco, em Outras Palavras

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