Feminicídios:
a incontornável dimensão colonial
O
feminicídio e a violência contra a mulher no Brasil ocuparam o topo do
noticiário nos últimos dias em função de casos recentes que impressionaram pela
brutalidade e grau de perversidade. Infelizmente, são comuns. Apenas em 2024, o
país registrou 1.450 feminicídios, um aumento de 12% em relação ao ano
anterior. A realidade é bem pior, já que os dados são subnotificados — um
padrão que se estende a outros crimes cometidos contra mulheres, refletindo o
viés de gênero no sistema de justiça.
Esse
tipo de violência reflete desigualdades históricas que atravessam raça, classe
social e território. Para a demógrafa Jackeline Ferreira Romio, que se dedica
ao estudo das relações de gênero e é autora da pesquisa Quem são as mulheres
que o Brasil não protege?, da Fundação Friedrich Ebert no Brasil, compreender
esses fatores é essencial para enfrentar a violência de forma efetiva. Como ela
afirma, “a violência feminicida é uma violência pautada no ódio; e, quando o
ódio racial se soma ao ódio de gênero, a dimensão desse ódio é muito maior”.
Em
entrevista a Outras Palavras, a pesquisadora detalha como a interseccionalidade
— no caso, a sobreposição de violências de gênero, raça e desigualdade
econômica — amplia drasticamente o risco para mulheres negras, indígenas e
periféricas. Ela lembra que, no Brasil, “68% das vítimas de feminicídio são
mulheres negras” e que essa diferença não pode ser explicada apenas pela
exposição geral à violência de gênero, mas por falhas sucessivas do Estado: “Em
que ponto a linha de atenção falhou? A denúncia não foi levada a sério? A
medida protetiva não foi fiscalizada?”
“Para
erradicar a violência de gênero, são necessárias três áreas: prevenção (que a
gente nunca faz), sanção e punição”, avalia Jackeline. “A violência é
estrutural — econômica, racial e de gênero — e organiza a sociedade. Mudar o
feminicídio implica transformar essa estrutura e enfrentar o racismo
patriarcal. O feminicídio é um sintoma, assim como a mortalidade materna, a
gravidez na adolescência ou a população vivendo em situação de rua: expressões
de uma estrutura social quebrada.”
>>>>
Confira os principais trechos da entrevista abaixo.
<><>
Interseccionalidade e desigualdades no feminicídio
O
feminicídio atinge todas as mulheres, independentemente da classe social, da
raça ou da origem. Mas, na sociedade brasileira, desigualdades se relacionam e
aumentam a chance de uma violência ter um agravamento maior para mulheres mais
vulneráveis. Os dados mostram maior incidência entre vítimas negras, indígenas
e da periferia — negras no sentido de pardas e pretas, que juntas formam a
população negra brasileira. As indígenas, embora representem apenas 1% da
população, são entre 2% e 4% das vítimas de feminicídio.
As
mulheres da periferia, brancas e negras, compõem o grupo de maior incidência e
são as maiores vítimas, por causa da interseccionalidade das violências. Elas
não estão expostas apenas à violência por serem mulheres, mas simultaneamente à
violência racial e à violência econômica. A soma dessas violências aumenta o
risco. Muitas moram longe de equipamentos de segurança pública, e a dificuldade
de acessar esses serviços eleva o risco de morte.
<><>
América Latina e grupos racializados
Na
América Latina, onde a agressão física e doméstica contra as mulheres é muito
alta, a desigualdade se repete em diversos países. Na Colômbia, por exemplo,
mulheres negras, palenqueras e raizales [grupos étnicos afro-colombianos]
formam um grupo de maior vulnerabilidade: representam 10% a 11% da população,
mas 30% das vítimas de feminicídio. Isso se repete em vários territórios.
A
mulher rural e a mulher indígena têm índices de violência doméstica e
feminicídio muito superiores também na Bolívia. Mesmo que as categorias raciais
não sejam idênticas às do Brasil, a comparação entre a média nacional e a
realidade dos grupos racializados mostra médias muito superiores, 20% a 30%
maiores. Esse padrão aparece em todos os países latino-americanos que produzem
dados.
<><>
Reconhecimento estatal e visibilidade das vulnerabilidades
Nos
últimos anos, a pauta ganhou visibilidade nacional, especialmente via
Ministério da Igualdade Racial e Ministério das Mulheres, que destacam a
situação de mulheres negras e indígenas. E isso se dá por um entendimento de
que as desvantagens sociais se interconectam. A violência feminicida é uma
violência pautada no ódio. Então, se existe o ódio racial multiplicado pelo
ódio de gênero, qual é a dimensão desse ódio? É muito maior. A incidência da
violência contra corpos e vidas negras é aumentada pelo racismo patriarcal.
Temos
esse termo, racismo patriarcal, que é a interconexão entre raça e gênero e
relaciona a mulher negra a diversas imagens de controle e estereótipos,
fragilizando-a muito mais perante a sociedade.
<><>
Acesso à segurança pública e revitimização
Se há
um grupo de enquadramentos para o gênero, em que a mulher deve caber dentro da
caixa de gênero e, se sair, pode ser assassinada, essa caixa é menor ainda para
as mulheres negras, que, além da condição vulnerável, têm maior dificuldade de
acesso a equipamentos de segurança pública e de serem entendidas socialmente
como vítimas.
Existem
pesquisas de vitimização no Brasil que afirmam que a mulher negra tem maior
chance de ter suas denúncias não atendidas na área da segurança pública, por
recusa a registros. Ela chega à delegacia e é desestimulada a registrar ou
revitimizada como a própria causadora da violência que sofreu. Isso também vale
para as mulheres periféricas, chegando a um ponto em que, simplesmente, elas
não fazem a denúncia porque acreditam que ela não será levada a sério pela
instituição policial.
Tudo
isso vai agravando e aumentando as chances de essas mulheres chegarem ao ponto
máximo da violação de gênero, que é morrer por feminicídio.
<><>
Intersetorialidade das políticas públicas
O
enfrentamento exige diálogo intersetorial. Não adianta a prevenção ser feita
apenas na saúde se não houver encaminhamentos e rede de atenção funcionando. A
saúde, por ser descentralizada, está presente em todos os municípios,
diferentemente da segurança pública, que concentra serviços especializados como
delegacias da mulher, atendimentos a vítimas de violência sexual e patrulhas de
medidas protetivas em menos locais.
As
mulheres que estão nas grandes capitais têm mais chances de serem atendidas do
que aquelas em áreas rurais ou periféricas. Por isso, muitas vezes, elas serão
atendidas apenas pela saúde pública. A Lei Maria da Penha prevê o funcionamento
da atenção às mulheres sobreviventes e vítimas de violência doméstica como uma
rede complexa e integral, mas, infelizmente, ela não se implementa. Temos uma
lei complexa, universal, que não se efetiva, e que ainda necessita de
particularidades, como a atenção às mulheres negras e indígenas vítimas de
violência.
<><>
Racismo institucional e protocolos antirracistas
É
necessário enfrentar o racismo institucional por meio de políticas de
sensibilização e protocolos antirracistas, como ações para evitar a rejeição de
denúncias de mulheres negras nas delegacias e desconstruir estereótipos. Na
saúde, houve avanços recentes com programas voltados ao parto humanizado para
mulheres negras, reconhecendo práticas discriminatórias históricas.
Porque
existem práticas que não estão escritas na lei. Mas o servidor age daquela
forma porque tem um padrão mental racista, e a lei tácita autoriza que ele faça
certas discriminações negativas no atendimento à vítima negra e à vítima
branca. No caso da saúde materna, existia uma prática de menor atenção
pré-natal para mulheres negras; prescrevia-se menos anestesia porque persistia
o estereótipo de que eram mais fortes e tolerantes à dor, permitindo usar menos
anestesia “para economizar”.
Apenas
por meio de normativas e de programas especiais para correção dessas práticas
de racismo institucional vamos conseguir superá-las.
<><>
Violência estrutural
Hoje os
dados mostram resultados claros: 68% das vítimas de feminicídio são mulheres
negras (pardas e pretas). É preciso investigar o que produz essa diferença, já
que todas as mulheres estão expostas à violência de gênero. Em que ponto a
linha de atenção falhou? A denúncia não foi levada a sério? A medida protetiva
não foi fiscalizada? Faltou acesso a programas de habitação ou assistência
alimentar? Em que momento o Estado perdeu essa mulher?
A
violência é estrutural — econômica, racial e de gênero — e organiza a
sociedade. Mudar o feminicídio implica transformar essa estrutura e enfrentar o
racismo patriarcal. O feminicídio é um sintoma, assim como a mortalidade
materna, a gravidez na adolescência ou a população vivendo em situação de rua:
expressões de uma estrutura social quebrada.
<><>
Evolução legislativa
O
Brasil não foi o primeiro país da região a legislar sobre feminicídio; Costa
Rica e México o fizeram antes. Para erradicar a violência de gênero, são
necessárias três áreas: prevenção (que a gente nunca faz), sanção e punição.
Infelizmente,
ficamos mais na punição, uma ação direta, porém prejudicada por várias
questões. Uma delas é a incapacidade de resolver os casos de violência. Temos
no Brasil 38% de casos de homicídios resolvidos, um índice muito baixo. Então,
nem a punição estamos fazendo direito. E é praticamente a única coisa que
fazemos.
Por
outro lado, temos avanços legislativos. Quando se tem uma lei, não
necessariamente ela é implementada; para isso, é preciso programas, vontade
política conjunta e aceitação social, por meio da informação, para que ela
“baixe à terra” e funcione. Quando uma lei “pega”, isso é um bom indicador.
Tanto a Lei Maria da Penha quanto a Lei do Feminicídio se popularizaram.
A Lei
do Feminicídio reconhece juridicamente um tipo específico de violência letal,
tratada como crime hediondo, descrita pelo teor de ódio que qualifica esses
assassinatos. Antes, não havia esse enquadramento. Basta observar como essas
mulheres foram assassinadas: não é uma facada, são 60; não é um soco, são 60.
Não são homicídios dolosos simples, são qualificados pelo teor de ódio,
representado pela forma como se mata essa mulher. Ter um crime específico ajuda
a garantir que todas tenham a mesma chance de ver o agressor punido dentro do
mesmo nível de punição.
Antigamente
não era assim, é um avanço legislativo. Isso sozinho não impede novos
feminicídios, mas dá a chance de que todos sejam julgados na mesma métrica.
<><>
Prevenção e rede de proteção
A
métrica do feminicídio tem a punição elevada por seus níveis de qualificação,
relação com o ódio e chance mínima de defesa. Porque o agressor, em geral,
controla o cotidiano: são relações íntimas, a pessoa vive no mesmo domicílio,
conhece a rotina, controla às vezes até as senhas do celular, sabe quanto a
vítima tem no banco. As chances de escapar de um plano de morte são baixas; só
por meio de uma intervenção estatal nessas relações particulares somos capazes
de salvar a vida dessas mulheres.
A outra
parte é a prevenção, por meio de uma rede de atenção que funcione, integrada e
especializada. Como existem outras violências inter-relacionadas, é preciso
tratar habitação, empregabilidade e saúde mental, além de oferecer assessoria
jurídica. Essa mulher precisa entender como se separar, quais direitos tem e
precisa ter meios para fazer isso. Se ela chega ao equipamento público e é
maltratada, revitimizada, volta para casa e tenta resolver sozinha. Só que, ao
tentar resolver sozinha, a chance de agravamento letal é maior. Ela já passou
por diversos constrangimentos que a fazem acreditar que o problema é ela. E é
nesse silêncio, nesse isolamento, que acontece o pior.
<><>
Uma violência histórica
O
assassinato de mulheres no Brasil é historicamente alto desde a década de 1970.
Não é novidade: somos uma sociedade patriarcal que assassina mulheres, com
casos envolvendo todas as classes sociais, inclusive figuras públicas. Esse
fenômeno vem se agravando como uma bola de neve e, se não houver sensibilização
social sobre sua gravidade, o futuro é previsível: aumento contínuo da
violência de gênero, especialmente nas comunidades mais vulneráveis. Enfrentar
isso exige serviços públicos robustos e uma transformação cultural profunda.
O
machismo brasileiro remonta à escravidão, ao colonialismo e às sequelas dessas
violências, que permanecem na cultura até hoje. Essa lógica aparece até em
músicas, cantigas e composições folclóricas que normalizam violência e abusos.
Interromper esse ciclo exige desconstrução consciente da alienação coletiva em
torno do lugar das mulheres na sociedade.
A
perversidade cultural contra a mulher brasileira também permeia o imaginário
mundial. Mulheres brasileiras são vítimas de violência e assassinatos em outros
países, como Portugal. A violência se expressa em múltiplas dimensões e se
moderniza. Assassinos escolhem vítimas por aplicativos de relacionamento, e há
casos de mortes transmitidas ou replicadas ao vivo nas redes sociais.
<><>
Morte como entretenimento nas redes sociais
A
replicação incessante de vídeos de feminicídios, como o atropelamento e
arrastamento de uma mulher cujas imagens circulam diariamente, naturaliza a
violência. Com isso, também se produz a naturalização da morte, do assassinato
e da agressão contra mulheres como entretenimento nas redes sociais.
É
necessária a responsabilização das mídias que autorizam esse tipo de
circulação; poderia ser facilmente detectado e encerrado, mas não é. Porque
gera engajamento. O ódio gera engajamento. E é por isso que os feminicídios
estão em alta nas redes sociais. Se as pessoas quisessem realmente retratar o
problema, poderiam falar dos quatro feminicídios por dia. Só que elegem um ou
outro caso relacionado ao sensacionalismo e ao engajamento que vão gerar.
Isso
reforça uma cultura patriarcal e uma naturalização que alimenta um sadismo em
torno desses óbitos e deveria ser um ponto para os veículos de comunicação
discutirem como um protocolo. Qual é o protocolo da mídia brasileira para
retratar a violência feminicida? Como vocês vão transmitir isso para a
sociedade?
Fonte:
Jackeline Romio, em entrevista a Glauco Faria, para Outras Palavras

Nenhum comentário:
Postar um comentário