segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Quando o trabalho adoece: o mapa oculto dos riscos emocionais nas organizações brasileiras

O Brasil vive uma crise silenciosa de saúde emocional no trabalho. Apenas no primeiro semestre de 2025, foram registrados 267.690 afastamentos por transtornos mentais, número que corresponde a 56,7% de todo o volume de 2024 (e que por sua vez já representa quase 14% de todos os auxílios-doença concedidos no período). Se a tendência se mantiver, o país deve encerrar o ano com cerca de 535 mil afastamentos motivados por ansiedade, depressão, burnout e outros quadros relacionados ao trabalho. Isso significa um crescimento estimado de 68% em relação ao ano anterior e confirma uma curva que se estende há mais de uma década. Os afastamentos por saúde mental dobraram nos últimos dez anos.

Esses números não apontam para um evento isolado. Eles indicam um padrão estrutural. Quando centenas de milhares de pessoas precisam se afastar de suas atividades profissionais por sofrimento psíquico relacionado ao trabalho, não se trata de um desvio individual, mas de uma crise organizada de forma silenciosa nas rotinas produtivas do país. Esse processo é visível em laudos médicos, perícias, indenizações e estatísticas previdenciárias, mas raramente é nomeado como colapso das condições de trabalho.

A Associação Nacional de Medicina do Trabalho estima que cerca de 30% das pessoas ocupadas no país apresentem sinais compatíveis com síndrome de burnout, colocando o Brasil entre os países de maior prevalência no mundo. Em alguns setores, como saúde e educação, estudos apontam que 80% dos trabalhadores relatam desgaste emocional severo, ansiedade e esgotamento. Quando a escala do sofrimento atinge esse patamar, a pergunta deixa de ser individual. Torna-se política: o que, na forma como organizamos o trabalho, está produzindo tanto adoecimento?

<><> As transformações do trabalho e a fabricação do sofrimento

Para compreender a epidemia de adoecimento emocional no Brasil, é preciso observar a reorganização do trabalho nas últimas décadas. Relatórios da Organização Mundial da Saúde e da Organização Internacional do Trabalho indicam que os principais determinantes de adoecimento psíquico são cargas excessivas, exigências contraditórias, comportamentos violentos ou discriminatórios, e insegurança crônica sobre o futuro. No Brasil, essas condições se intensificaram com a precarização das relações laborais, a expansão da terceirização, a disseminação do trabalho por plataformas e o uso crescente de sistemas de vigilância algorítmica.

A promessa de flexibilidade do trabalho remoto e híbrido frequentemente se converteu em disponibilidade permanente. Mensagens fora do horário, reuniões que invadem fins de semana e metas que se adensam sem cessar criaram uma continuidade entre casa e trabalho que corrói descanso, sono e vida familiar. O filósofo Byung-Chul Han descreve esse fenômeno como marca da sociedade do desempenho, onde a exploração não desaparece, mas é internalizada. A pessoa se torna simultaneamente empregada e gestora de si, cobrando de si mesma aquilo que antes era exigência explícita da hierarquia.

Esse processo, porém, não afeta todos de modo igual. Estudos brasileiros de saúde do trabalhador mostram que mulheres, pessoas negras e trabalhadores em funções subalternizadas vivenciam níveis maiores de assédio, violência simbólica, baixa autonomia e alta exigência emocional. A distribuição do sofrimento é desigual. Jacques Rancière, ao discutir o que chama de “partilha do sensível”, ajuda a pensar como o mundo organiza quem é visto e quem é ignorado. No ambiente de trabalho, isso se traduz em quais dores são reconhecidas como legítimas e quais são tratadas como falhas pessoais.

O Ministério do Trabalho define riscos psicossociais como condições relativas à concepção, à organização e à gestão do trabalho capazes de gerar impactos psicológicos, físicos e sociais. No Brasil, a Resolução 14 de 2023 do Conselho Federal de Psicologia estabeleceu diretrizes para a atuação profissional na avaliação desses riscos, alinhando a categoria às normas de saúde e segurança do trabalho.

A Agência Europeia para a Segurança e Saúde no Trabalho, categoriza como riscos psicossociais no ambiente de trabalho: carga excessiva, metas contraditórias, falta de clareza de papéis, baixa autonomia, assédio, violência, insegurança de renda e pouco apoio de chefias. Esses fatores não são abstrações. Eles aparecem em situações concretas: o trabalhador que recebe metas impossíveis; a funcionária que sofre assédio sexual e não conta com um canal seguro de denúncia; o operador de telemarketing monitorado em tempo integral; a professora que acumula três turnos e carrega a carga emocional da comunidade; o entregador de aplicativo que não sabe se sua renda garantirá o mês. São contextos que aumentam a probabilidade estatística de depressão, ansiedade, burnout, insônia, doenças cardiovasculares e consumo abusivo de substâncias.

Por aqui, a análise de séries históricas de afastamentos por transtornos mentais relacionados ao trabalho mostra crescimento contínuo entre 2006 e 2021, com destaque para episódios depressivos, transtornos ansiosos e reações ao estresse grave. Em 2024, os afastamentos por saúde mental já representavam 13,5% de todos os auxílios-doença no país. A teorização de Christophe Dejours permanece atual: o trabalho pode ser espaço de reconhecimento ou de sofrimento patogênico. Quando bloqueia a expressão, a criatividade e a cooperação, tende a adoecer o trabalhador.

As respostas mais comuns oferecidas pelas organizações brasileiras seguem um padrão: campanhas pontuais, palestras temáticas, ações de sensibilização, ginástica laboral ou aplicativos de bem-estar. Essas iniciativas não são completamente inúteis, mas não alcançam os fatores estruturais que produzem o adoecimento. As diretrizes da OMS e da OIT são consistentes: intervenções centradas apenas no indivíduo têm eficácia limitada quando o ambiente segue funcionando de modo adoecedor.

O resultado é um ciclo conhecido: trabalhadores adoecem, procuram atendimento individual, melhoram temporariamente e retornam ao mesmo contexto que produziu o sofrimento. Sem transformações na organização, no ritmo e na cultura de trabalho, o adoecimento tende a se repetir. A medicalização, por sua vez, cresce como resposta rápida. Medicamentos e terapias são oferecidos como solução, enquanto metas, assédio e sobrecarga permanecem intocados. A consequência é o aumento de afastamentos sucessivos, estigma e desgaste entre equipes.

A fiscalização também é insuficiente. Apesar de normas específicas sobre riscos psicossociais, a implementação é frágil e a subnotificação é massiva. Muitos trabalhadores evitam registrar o nexo causal por medo de retaliação. Sentenças judiciais relacionadas à síndrome de burnout crescem ano a ano, mas mesmo nesses casos os valores indenizatórios raramente produzem efeito pedagógico.

<><> Por uma política do cuidado

Se o problema é estrutural, a resposta também precisa ser. Cuidado não é gesto individual ou benefício isolado. É infraestrutura social. É rede de proteção distribuída entre pessoas, processos e instituições. Pensar cuidado dessa forma significa deslocar o olhar do indivíduo para a organização e, da organização, para o tecido social que a sustenta.

Toda instituição precisa de mecanismos de acolhimento imediato, para que trabalhadores em sofrimento possam buscar ajuda sem medo. Psicólogos, assistentes sociais e profissionais especializados têm papel fundamental, mas não são o único recurso. A experiência internacional mostra que equipes internas preparadas para reconhecer sinais precoces são essenciais. Isso inclui conselheiros ou brigadas internas formadas por trabalhadores treinados para escuta inicial, orientação e encaminhamento. Não se trata de substituição de atendimento clínico. Trata-se de ampliar a capacidade de acolhimento e de identificar riscos antes da ruptura.

Além disso, o cuidado precisa de governança. Protocolos, privacidade, auditoria social e participação dos trabalhadores são condições básicas. Sem confiança, qualquer iniciativa se esvazia. E sem proteção dos profissionais que cuidam, o sistema colapsa.

Um ecossistema de cuidado é uma estrutura viva que conecta acolhimento imediato, profissionais de saúde, brigadas internas, lideranças, gestão de pessoas, sindicatos, órgãos públicos e comunidade. É uma rede distribuída de proteção. Em vez de centralizar tudo em um único canal ou profissional, compartilha responsabilidades, fortalecendo cada ponto da rede. Com isso, reduz-se a dependência de soluções isoladas e aumenta-se a capacidade de resposta coletiva.

Esse modelo permite identificar padrões, compreender onde estão as fontes de risco, apoiar lideranças, ajustar políticas e fortalecer ações preventivas. Permite também conectar a estrutura interna da empresa a políticas públicas, como CAPS e Centros de Referência em Saúde do Trabalhador, criando continuidade no cuidado.

O ecossistema não é tecnologia. É política. Envolve cultura organizacional, processos, formação, ética e participação. A tecnologia, quando usada, é meio, nunca fim.

A construção desse ecossistema exige corresponsabilidade. O Estado deve fortalecer a fiscalização, atualizar diretrizes, ampliar recursos para serviços públicos e garantir que normativas como a NR1 sejam implementadas de forma efetiva. Empresas precisam reconhecer que a saúde emocional não é benefício, mas condição de trabalho. Sindicatos devem atuar como espaços de denúncia, negociação e apoio. Universidades têm papel central na formação de profissionais e na produção de conhecimento. E coletivos de trabalhadores seguem essenciais como espaços de acolhimento e organização política.

Nos últimos anos, surgiram iniciativas brasileiras que trabalham na interseção entre acolhimento, tecnologia, pesquisa social e participação comunitária. Essas iniciativas treinam pessoas para funções de escuta, estruturam protocolos de cuidado, integram dados com responsabilidade e constroem redes de prevenção para ambientes organizacionais. Algumas delas se baseiam no modelo de brigadas emocionais e de cuidado distribuído, buscando criar estruturas que funcionem de modo contínuo e ético.

Uma dessas iniciativas, desenvolvida por um coletivo brasileiro voltado a desenho sistêmico e impacto social, trabalha na criação de redes de acolhimento que combinam profissionais qualificados, conselheiros internos e protocolos de privacidade. O foco é compreender como ambientes de trabalho podem se tornar emocionalmente seguros por meio de dados responsáveis, governança transparente e cuidado distribuído. A proposta é discreta, ainda sem busca de ampla visibilidade pública, e aposta em cocriação com usuários e em impacto social mensurável.

Esses experimentos não substituem transformações políticas e estruturais, mas mostram que alternativas reais podem ser construídas fora da lógica mercadológica que reduz saúde mental a nicho de consumo. Apontam caminhos possíveis para uma nova arquitetura de cuidado, capaz de enfrentar problemas que nenhum aplicativo, palestra motivacional ou campanha isolada pode resolver.

<><> A escolha inadiável

Se a previsão é de que o país deve fechar 2025 com mais de meio milhão de afastamentos por transtornos mentais, a crise é evidente. Esses números não representam apenas custos econômicos. Representam vidas em sofrimento, famílias impactadas, vínculos rompidos, trajetórias interrompidas. A saúde emocional no trabalho não é tema periférico nem moda corporativa. É questão pública, política e estrutural.

A pergunta central é direta: seguiremos tratando o adoecimento emocional como falha de adaptação individual ao trabalho ou reconheceremos que a forma como organizamos o trabalho no capitalismo está produzindo sofrimento em escala inédita?

A resposta determinará que país estamos construindo.

Se queremos um futuro em que o trabalho sustente a vida, e não o contrário, será necessário enfrentar o que hoje permanece oculto. Reconhecer riscos, transformar práticas, fortalecer redes, criar ecossistemas de cuidado e assumir que o bem-estar emocional não nasce da vontade individual, mas das condições coletivas que estruturam nossa existência.

O mapa está diante de nós. Falta decidir o que faremos com ele.

 

Fonte: Por Rafael Cavalcante Lima, no Blog da Boitempo

 

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