Quando
o trabalho adoece: o mapa oculto dos riscos emocionais nas organizações
brasileiras
O
Brasil vive uma crise silenciosa de saúde emocional no trabalho. Apenas no
primeiro semestre de 2025, foram registrados 267.690 afastamentos por
transtornos mentais, número que corresponde a 56,7% de todo o volume de 2024 (e
que por sua vez já representa quase 14% de todos os auxílios-doença concedidos
no período). Se a tendência se mantiver, o país deve encerrar o ano com cerca
de 535 mil afastamentos motivados por ansiedade, depressão, burnout e outros
quadros relacionados ao trabalho. Isso significa um crescimento estimado de 68%
em relação ao ano anterior e confirma uma curva que se estende há mais de uma
década. Os afastamentos por saúde mental dobraram nos últimos dez anos.
Esses
números não apontam para um evento isolado. Eles indicam um padrão estrutural.
Quando centenas de milhares de pessoas precisam se afastar de suas atividades
profissionais por sofrimento psíquico relacionado ao trabalho, não se trata de
um desvio individual, mas de uma crise organizada de forma silenciosa nas
rotinas produtivas do país. Esse processo é visível em laudos médicos,
perícias, indenizações e estatísticas previdenciárias, mas raramente é nomeado
como colapso das condições de trabalho.
A
Associação Nacional de Medicina do Trabalho estima que cerca de 30% das pessoas
ocupadas no país apresentem sinais compatíveis com síndrome de burnout,
colocando o Brasil entre os países de maior prevalência no mundo. Em alguns
setores, como saúde e educação, estudos apontam que 80% dos trabalhadores
relatam desgaste emocional severo, ansiedade e esgotamento. Quando a escala do
sofrimento atinge esse patamar, a pergunta deixa de ser individual. Torna-se
política: o que, na forma como organizamos o trabalho, está produzindo tanto
adoecimento?
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As transformações do trabalho e a fabricação do sofrimento
Para
compreender a epidemia de adoecimento emocional no Brasil, é preciso observar a
reorganização do trabalho nas últimas décadas. Relatórios da Organização
Mundial da Saúde e da Organização Internacional do Trabalho indicam que os
principais determinantes de adoecimento psíquico são cargas excessivas,
exigências contraditórias, comportamentos violentos ou discriminatórios, e
insegurança crônica sobre o futuro. No Brasil, essas condições se
intensificaram com a precarização das relações laborais, a expansão da
terceirização, a disseminação do trabalho por plataformas e o uso crescente de
sistemas de vigilância algorítmica.
A
promessa de flexibilidade do trabalho remoto e híbrido frequentemente se
converteu em disponibilidade permanente. Mensagens fora do horário, reuniões
que invadem fins de semana e metas que se adensam sem cessar criaram uma
continuidade entre casa e trabalho que corrói descanso, sono e vida familiar. O
filósofo Byung-Chul Han descreve esse fenômeno como marca da sociedade do
desempenho, onde a exploração não desaparece, mas é internalizada. A pessoa se
torna simultaneamente empregada e gestora de si, cobrando de si mesma aquilo
que antes era exigência explícita da hierarquia.
Esse
processo, porém, não afeta todos de modo igual. Estudos brasileiros de saúde do
trabalhador mostram que mulheres, pessoas negras e trabalhadores em funções
subalternizadas vivenciam níveis maiores de assédio, violência simbólica, baixa
autonomia e alta exigência emocional. A distribuição do sofrimento é desigual.
Jacques Rancière, ao discutir o que chama de “partilha do sensível”, ajuda a
pensar como o mundo organiza quem é visto e quem é ignorado. No ambiente de
trabalho, isso se traduz em quais dores são reconhecidas como legítimas e quais
são tratadas como falhas pessoais.
O
Ministério do Trabalho define riscos psicossociais como condições relativas à
concepção, à organização e à gestão do trabalho capazes de gerar impactos
psicológicos, físicos e sociais. No Brasil, a Resolução 14 de 2023 do Conselho
Federal de Psicologia estabeleceu diretrizes para a atuação profissional na
avaliação desses riscos, alinhando a categoria às normas de saúde e segurança
do trabalho.
A
Agência Europeia para a Segurança e Saúde no Trabalho, categoriza como riscos
psicossociais no ambiente de trabalho: carga excessiva, metas contraditórias,
falta de clareza de papéis, baixa autonomia, assédio, violência, insegurança de
renda e pouco apoio de chefias. Esses fatores não são abstrações. Eles aparecem
em situações concretas: o trabalhador que recebe metas impossíveis; a
funcionária que sofre assédio sexual e não conta com um canal seguro de
denúncia; o operador de telemarketing monitorado em tempo integral; a
professora que acumula três turnos e carrega a carga emocional da comunidade; o
entregador de aplicativo que não sabe se sua renda garantirá o mês. São
contextos que aumentam a probabilidade estatística de depressão, ansiedade,
burnout, insônia, doenças cardiovasculares e consumo abusivo de substâncias.
Por
aqui, a análise de séries históricas de afastamentos por transtornos mentais
relacionados ao trabalho mostra crescimento contínuo entre 2006 e 2021, com
destaque para episódios depressivos, transtornos ansiosos e reações ao estresse
grave. Em 2024, os afastamentos por saúde mental já representavam 13,5% de
todos os auxílios-doença no país. A teorização de Christophe Dejours permanece
atual: o trabalho pode ser espaço de reconhecimento ou de sofrimento
patogênico. Quando bloqueia a expressão, a criatividade e a cooperação, tende a
adoecer o trabalhador.
As
respostas mais comuns oferecidas pelas organizações brasileiras seguem um
padrão: campanhas pontuais, palestras temáticas, ações de sensibilização,
ginástica laboral ou aplicativos de bem-estar. Essas iniciativas não são
completamente inúteis, mas não alcançam os fatores estruturais que produzem o
adoecimento. As diretrizes da OMS e da OIT são consistentes: intervenções
centradas apenas no indivíduo têm eficácia limitada quando o ambiente segue
funcionando de modo adoecedor.
O
resultado é um ciclo conhecido: trabalhadores adoecem, procuram atendimento
individual, melhoram temporariamente e retornam ao mesmo contexto que produziu
o sofrimento. Sem transformações na organização, no ritmo e na cultura de
trabalho, o adoecimento tende a se repetir. A medicalização, por sua vez,
cresce como resposta rápida. Medicamentos e terapias são oferecidos como
solução, enquanto metas, assédio e sobrecarga permanecem intocados. A
consequência é o aumento de afastamentos sucessivos, estigma e desgaste entre
equipes.
A
fiscalização também é insuficiente. Apesar de normas específicas sobre riscos
psicossociais, a implementação é frágil e a subnotificação é massiva. Muitos
trabalhadores evitam registrar o nexo causal por medo de retaliação. Sentenças
judiciais relacionadas à síndrome de burnout crescem ano a ano, mas mesmo
nesses casos os valores indenizatórios raramente produzem efeito pedagógico.
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Por uma política do cuidado
Se o
problema é estrutural, a resposta também precisa ser. Cuidado não é gesto
individual ou benefício isolado. É infraestrutura social. É rede de proteção
distribuída entre pessoas, processos e instituições. Pensar cuidado dessa forma
significa deslocar o olhar do indivíduo para a organização e, da organização,
para o tecido social que a sustenta.
Toda
instituição precisa de mecanismos de acolhimento imediato, para que
trabalhadores em sofrimento possam buscar ajuda sem medo. Psicólogos,
assistentes sociais e profissionais especializados têm papel fundamental, mas
não são o único recurso. A experiência internacional mostra que equipes
internas preparadas para reconhecer sinais precoces são essenciais. Isso inclui
conselheiros ou brigadas internas formadas por trabalhadores treinados para
escuta inicial, orientação e encaminhamento. Não se trata de substituição de
atendimento clínico. Trata-se de ampliar a capacidade de acolhimento e de
identificar riscos antes da ruptura.
Além
disso, o cuidado precisa de governança. Protocolos, privacidade, auditoria
social e participação dos trabalhadores são condições básicas. Sem confiança,
qualquer iniciativa se esvazia. E sem proteção dos profissionais que cuidam, o
sistema colapsa.
Um
ecossistema de cuidado é uma estrutura viva que conecta acolhimento imediato,
profissionais de saúde, brigadas internas, lideranças, gestão de pessoas,
sindicatos, órgãos públicos e comunidade. É uma rede distribuída de proteção.
Em vez de centralizar tudo em um único canal ou profissional, compartilha
responsabilidades, fortalecendo cada ponto da rede. Com isso, reduz-se a
dependência de soluções isoladas e aumenta-se a capacidade de resposta
coletiva.
Esse
modelo permite identificar padrões, compreender onde estão as fontes de risco,
apoiar lideranças, ajustar políticas e fortalecer ações preventivas. Permite
também conectar a estrutura interna da empresa a políticas públicas, como CAPS
e Centros de Referência em Saúde do Trabalhador, criando continuidade no
cuidado.
O
ecossistema não é tecnologia. É política. Envolve cultura organizacional,
processos, formação, ética e participação. A tecnologia, quando usada, é meio,
nunca fim.
A
construção desse ecossistema exige corresponsabilidade. O Estado deve
fortalecer a fiscalização, atualizar diretrizes, ampliar recursos para serviços
públicos e garantir que normativas como a NR1 sejam implementadas de forma
efetiva. Empresas precisam reconhecer que a saúde emocional não é benefício,
mas condição de trabalho. Sindicatos devem atuar como espaços de denúncia,
negociação e apoio. Universidades têm papel central na formação de
profissionais e na produção de conhecimento. E coletivos de trabalhadores
seguem essenciais como espaços de acolhimento e organização política.
Nos
últimos anos, surgiram iniciativas brasileiras que trabalham na interseção
entre acolhimento, tecnologia, pesquisa social e participação comunitária.
Essas iniciativas treinam pessoas para funções de escuta, estruturam protocolos
de cuidado, integram dados com responsabilidade e constroem redes de prevenção
para ambientes organizacionais. Algumas delas se baseiam no modelo de brigadas
emocionais e de cuidado distribuído, buscando criar estruturas que funcionem de
modo contínuo e ético.
Uma
dessas iniciativas, desenvolvida por um coletivo brasileiro voltado a desenho
sistêmico e impacto social, trabalha na criação de redes de acolhimento que
combinam profissionais qualificados, conselheiros internos e protocolos de
privacidade. O foco é compreender como ambientes de trabalho podem se tornar
emocionalmente seguros por meio de dados responsáveis, governança transparente
e cuidado distribuído. A proposta é discreta, ainda sem busca de ampla
visibilidade pública, e aposta em cocriação com usuários e em impacto social
mensurável.
Esses
experimentos não substituem transformações políticas e estruturais, mas mostram
que alternativas reais podem ser construídas fora da lógica mercadológica que
reduz saúde mental a nicho de consumo. Apontam caminhos possíveis para uma nova
arquitetura de cuidado, capaz de enfrentar problemas que nenhum aplicativo,
palestra motivacional ou campanha isolada pode resolver.
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A escolha inadiável
Se a
previsão é de que o país deve fechar 2025 com mais de meio milhão de
afastamentos por transtornos mentais, a crise é evidente. Esses números não
representam apenas custos econômicos. Representam vidas em sofrimento, famílias
impactadas, vínculos rompidos, trajetórias interrompidas. A saúde emocional no
trabalho não é tema periférico nem moda corporativa. É questão pública,
política e estrutural.
A
pergunta central é direta: seguiremos tratando o adoecimento emocional como
falha de adaptação individual ao trabalho ou reconheceremos que a forma como
organizamos o trabalho no capitalismo está produzindo sofrimento em escala
inédita?
A
resposta determinará que país estamos construindo.
Se
queremos um futuro em que o trabalho sustente a vida, e não o contrário, será
necessário enfrentar o que hoje permanece oculto. Reconhecer riscos,
transformar práticas, fortalecer redes, criar ecossistemas de cuidado e assumir
que o bem-estar emocional não nasce da vontade individual, mas das condições
coletivas que estruturam nossa existência.
O mapa
está diante de nós. Falta decidir o que faremos com ele.
Fonte:
Por Rafael Cavalcante Lima, no Blog da Boitempo

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