segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Janes Rocha: Os desastres climáticos chegaram ao Brasil

Um relatório quase ignorado pela velha mídia revela: só em 2024, foram 10,5 mil ocorrências de eventos extremos, mais de mil mortes e R$ 67 bi em prejuízos. Drama tende a se agravar – e país está despreparado. Maior obstáculo: falta de legislação e recursos para emergências...

De acordo com o Atlas Digital de Desastres no Brasil, nos últimos cinco anos até 2024 o país registrou 10.408 ocorrências de alagamentos, enxurradas, inundações, chuvas intensas, tornados, vendavais, ciclones, granizo e movimento de massa que resultaram em 1.124 óbitos e R$ 67 bilhões em prejuízos. Com a crise climática, tais eventos estão ficando cada vez mais frequentes e extremos e levantam a questão: os municípios estão preparados para enfrentá-los? Um estudo sobre a situação da Defesa Civil (DC) mostra que a resposta é não.

Cabe à DC a tarefa de preparar e alertar a população para riscos de desastres e atender as pessoas quando eles acontecem, orientando a evacuação e auxiliando os atingidos. Com a crise climática, era de se esperar que as DC ganhassem protagonismo. No entanto, a situação desses órgãos públicos está longe do necessário para cumprir suas atribuições.

O Projeto Capacidades Organizacionais de Preparação para Eventos Extremos (Cope) indicou que 72% dos órgãos de DC não têm orçamento próprio, enquanto perto de 20% não têm orçamento algum, o que se reflete, em geral, na falta de pessoal e estrutura. Cerca de 47% das DC municipais não têm veículos para deslocar os profissionais para as áreas afetadas; 30% não têm computador ou notebook e 63% não possuem celular com pacote de dados exclusivo da Defesa Civil.

O Cope foi realizado com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), envolvendo um grupo de pesquisadores do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Nacionais (Cemaden), da Universidade de Glasgow (Escócia), do Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

O objetivo da pesquisa é apoiar estratégias e políticas públicas de enfrentamento aos desastres ambientais a partir de um diagnóstico da estrutura de governos e comunidades em nível municipal. O Projeto Cope atualizou uma pesquisa feita quatro anos atrás, o Projeto Elos, ampliando o número de municípios investigados de 1.900 para 2.200 e foi realizado ao longo dos primeiros sete meses de 2025. Segundo o sociólogo e pesquisador do Cemaden, Victor Marchezini, um dos coordenadores do Cope, houve um agravamento da situação comparada com o levantamento anterior.

Marchezini destaca como mais problemáticos a alta rotatividade dos profissionais da DC em função da troca de comando nas prefeituras em 2024; profissionais mal ou nada qualificados e treinados, falta de estrutura física e dificuldade para criação dos chamados núcleos comunitários de proteção e defesa civil. A esses gargalos se soma a emergência de notícias falsas (“fake news”) em larga escala pelas redes sociais que dificultam ainda mais o trabalho de salvamento.

Um dos pontos que mais chamam a atenção, diz Marquezini, é a dificuldade que os municípios têm de organizar os chamados simulados, uma etapa fundamental da DC em que se orienta a população sobre como agir em caso de inundação, deslizamentos ou ondas de calor. Cerca de 40% nunca realizou um simulado e cerca de 30% não têm sequer um plano de contingência. Apenas 15% dos municípios têm planos de redução de riscos e 7% têm planos de adaptação às mudanças climáticas

<><> Ondas de calor

A maior incidência entre as ocorrências documentadas no Atlas Digital (8.390 das 10.408) está relacionada às chuvas intensas, mas um fenômeno crescente é o de ondas de calor. De acordo com o Ministério da Saúde, “ondas de calor são eventos climáticos caracterizados por temperaturas extremamente altas, que superam os níveis esperados para uma determinada região e época do ano”. Nos últimos cinco anos (2019-24) foram 156 ondas de calor no Brasil, comparadas a 18 no período precedente (2013-18).

“Globalmente, as ondas de calor são o desastre que mais causa mortes, são mais de 500 mil por ano”, alertou o cientista Carlos Nobre em palestra no seminário “Gestão de Desastres Ambientais e Clima: Coordenação, Comunicação e Desafios Estruturais”, promovido em 11 de setembro pelo Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP). “Estamos preparados para fazer a gestão de ondas de calor? Não estamos”, frisou Nobre.

O Projeto Cope indicou que apenas 10% dos municípios têm planos de contingência para ondas de calor.

O maior obstáculo ao desenvolvimento da DC nos municípios é a falta de uma legislação federal que reforce a institucionalização e viabilize a criação de fontes de recursos, opina Sidnei Furtado, coordenador regional e diretor da DC de Campinas e do HUB de Resiliência da iniciativa “Construindo Cidades Resilientes 2030”.

“O problema é institucional”, opina Furtado, lembrando que a Lei 12.983/2014, que estabelece a criação do Fundo Nacional de Proteção e Defesa Civil (Funcap), nunca foi regulamentada, o que dificulta o repasse regular de recursos da União a Estados, Distrito Federal e municípios para a prevenção, resposta e recuperação de desastres.

Em novembro, às vésperas da COP30, o governo lançou um Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil 2025-2035 (PN-PDC) que visa fortalecer a gestão de riscos de desastres no Brasil. Em entrevista à imprensa, Wolnei Wolff Barreiros, Secretário Nacional de Proteção e Defesa Civil do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR), explicou que o foco é a prevenção e que o governo pretende apoiar Estados e municípios na atualização de seus planos.

Regina Pancieri , gerente de Educação e Pesquisa da Defesa Civil do Estado de Santa Catarina, avalia que o PN-PDC dá as grandes diretrizes que agora precisam ser adequadas aos planos estaduais e municipais. Ela ressalta a necessidade de compromisso de todos os entes federativos, em especial com a continuidade das equipes e estruturas que costumam ser desmanteladas a cada troca de prefeito. Para Pancieri, isso vai exigir um acompanhamento do governo federal. “Não adianta lançar um plano e não acompanhar a execução nos Estados e municípios”, alerta.

Marquezini acrescenta que as deficiências institucionais impedem a profissionalização dos agentes, fundamental para fortalecer as DC em todo país. O coordenador do Cope afirma que a ciência tem contribuído com a geração de conhecimento sobre os eventos extremos e sobre as vulnerabilidades de cada parte do território. “Mas um desafio maior que nós temos é como reunir cientistas de diferentes áreas do conhecimento trabalhando mais próximos dos gestores públicos para entender um pouco quais são os desafios que eles têm em utilizar o conhecimento científico, em implementá-lo numa política pública”, diz. “Às vezes nós damos ótimos diagnósticos, mas as organizações públicas não têm a capacidade de colocar em prática aquilo que estamos recomendando. Porque não tem equipe suficiente, não tem orçamento.”

•        Mais um passo do Congresso para o assassinato ambiental. Por Kátia Mello

Pior do que está fica, sim. No dia 02/12 o Congresso Nacional avançou para completar o assassinato do licenciamento ambiental no Brasil, desmontando aquilo que há 40 anos é a pedra angular da política nacional de meio ambiente. 

Na terça-feira, uma comissão mista aprovou a conversão em lei da Medida Provisória 1.308/2025. A MP, enviada pelo governo em agosto, cria no país a figura da Licença Ambiental Especial, a LAE, segundo a qual grandes obras  de infraestrutura consideradas “estratégicas” para o país por políticos poderão  ser licenciadas em um ano, burlando o rito normal e substituindo as três licenças  geralmente exigidas para esse tipo de empreendimento por uma única, a ser dada em até um ano. A análise da medida precisa ser concluída até sexta-feira (15), caso contrário, o texto perde a validade.

Com a LAE transformada em lei menos de uma semana depois de o Congresso derrubar os vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao PL da Devastação, completa-se o trio de medidas que tornam o licenciamento ambiental letra morta  no país: a LAC (Licença por Adesão e Compromisso), o autolicenciamento, que a nova legislação estende a empreendimentos de pequeno e médio porte – que  representam mais de 90% do total dos licenciamentos estaduais e municipais; as isenções em série de licenciamento que vão da atividade rural à pavimentação de estradas na Amazônia; e, agora, a Licença Ambiental Especial, um processo  “expresso” para grandes projetos de infraestrutura, inclusive hidrelétricas, que já  podem ser licenciadas por essa modalidade.

“Com essas três medidas, licenciar empreendimentos torna-se exceção no país e não regra”, diz Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do Observatório  do Clima. “O Congresso Nacional comete um atentado histórico contra a saúde e  a segurança dos brasileiros, contra o clima e contra o nosso patrimônio natural.”  O movimento ambiental irá à Justiça contra a nova legislação. 

A LAE foi inventada durante a tramitação do PL da Devastação (PL 2.159/2004) no Senado. É obra do presidente da Casa, senador Davi Alcolumbre (União-AP),  criada sob medida para acelerar o licenciamento da exploração de petróleo na  Foz do Amazonas, de seu interesse eleitoral. Por ela, projetos de “interesse  estratégico”, assim definido pelo Conselho de Governo (um convescote de  ministros no qual a área ambiental tem um único voto), vão para uma fila expressa de licenciamento. Em vez de uma licença prévia, uma de instalação e  uma de operação, essas obras passam a ter uma única licença, a LAE, com prazo  máximo de 12 meses para ser concedida. 

A MP da LAE foi editada por Lula em agosto, no ato do veto do PL da Devastação, para agradar a Alcolumbre: se permanecesse no texto do PL, ela só passaria a vigorar 180 dias após a promulgação da nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental pelo Congresso. Como foi retirada do texto da lei e apresentada por MP, ela já está em vigor desde agosto e agora será convertida em lei. O interesse não é apenas do senador: o governo também quer ver a LAE funcionando para facilitar as obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), especialmente no ano eleitoral de 2026. 

No último dia 24/11, a Licença Ambiental Especial fez sua estreia em grande estilo: Lula sancionou o novo marco legal do setor elétrico, que torna todas as hidrelétricas no Brasil licenciáveis por LAE. Usinas como Belo Monte, no rio Xingu, que passou mais de uma década em análise, agora terão de ser licenciadas em no máximo um ano – prazo insuficiente para que os projetos básico e  executivo da obra possam ser adequadamente avaliados.

A MP 1.308 foi relatada na Câmara pelo deputado bolsonarista Zé Vitor (PL-MG). Apesar de ter rejeitado a maioria das 833 emendas ao texto propostas por deputados e senadores (que reconstituíam o PL da Devastação original e que  perderam sentido depois que os vetos de Lula foram derrubados), o parecer do relator piora a MP.

Uma das novidades do parecer é o aumento das dispensas de licenciamento que  já existiam no PL. Dragagem de hidrovias e até mesmo em rios poderão pular a  licença ambiental. Antenas de telecomunicação que não causem “significativo  impacto” (que o parecer não define o que seja) também entram no rol das  isenções.

A versão mais recente do parecer, apresentada nesta terça-feira, tem um artigo sob encomenda para liberar por LAE a pavimentação da BR-319 (Porto Velho Manaus), cuja licença prévia foi concedida ilegalmente pelo Ibama no governo  Bolsonaro e hoje encontra-se suspensa na Justiça. É consenso entre os estudiosos da área que o asfaltamento da 319 inviabilizará o controle do desmatamento – as  emissões projetadas nos próximos 25 anos são de 8 bilhões de toneladas de gás carbônico equivalente, quatro vezes mais do que a emissão bruta anual do Brasil inteiro.

O texto do deputado propõe, sem citar nome, que “são consideradas estratégicas  as obras de reconstrução e repavimentação de rodovias preexistentes cujos  trechos representem conexões estratégicas, relevantes na perspectiva da  segurança nacional, do acesso a direitos sociais fundamentais e da integração  entre unidades federativas”. E que, quando a autoridade licenciadora já tiver se  manifestado pela viabilidade ambiental da obra, os estudos para sua instalação  devem ser apresentados em no máximo 90 dias.

Nenhum dispositivo é tão exótico, porém, quanto um dos artigos do parecer que  regula a Licença por Adesão e Compromisso – que não faz parte da MP da LAE e  sim do PL original. Nele o relator, deputado por Minas Gerais, define que algumas  atividades de mineração poderão ser autolicenciadas: a extração de areia,  cascalho, brita e… garimpo de diamantes. 

“O parecer do deputado Zé Vitor não apenas reforça os problemas estruturais da MP: ele reabre retrocessos vetados, inclui retrocessos novos e cria flexibilizações adicionais, resultando em mais dispensas, mais LAC para atividades de risco, mais poder discricionário político e menos segurança jurídica”, afirma Adriana Pinheiro, assessora de Incidência Política e Orçamento Público do OC.

“O que o Congresso tenta fazer com a Licença Ambiental Especial é desmontar, peça por peça, a principal proteção que o Brasil construiu em quatro décadas para defender vidas, territórios e o futuro climático do país. Ao transformar a exceção em regra, acelerar grandes obras sem avaliação adequada e até permitir autolicenciamento para mineração, o Parlamento aprofunda o racismo ambiental: empurra mais riscos, mais poluição e mais violação de direitos exatamente para as populações negras, indígenas e periféricas que historicamente são sacrificadas em nome de um falso desenvolvimento. Esse retrocessos não é política pública — é uma escolha deliberada por ampliar as desigualdades sociais no Brasil”, conclui Mariana Belmont, assessora de clima e racismo ambiental de Geledés.

 

Fonte: ComCiência/Geledés

 

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