Janes
Rocha: Os desastres climáticos chegaram ao Brasil
Um
relatório quase ignorado pela velha mídia revela: só em 2024, foram 10,5 mil
ocorrências de eventos extremos, mais de mil mortes e R$ 67 bi em prejuízos.
Drama tende a se agravar – e país está despreparado. Maior obstáculo: falta de
legislação e recursos para emergências...
De
acordo com o Atlas Digital de Desastres no Brasil, nos últimos cinco anos até
2024 o país registrou 10.408 ocorrências de alagamentos, enxurradas,
inundações, chuvas intensas, tornados, vendavais, ciclones, granizo e movimento
de massa que resultaram em 1.124 óbitos e R$ 67 bilhões em prejuízos. Com a
crise climática, tais eventos estão ficando cada vez mais frequentes e extremos
e levantam a questão: os municípios estão preparados para enfrentá-los? Um
estudo sobre a situação da Defesa Civil (DC) mostra que a resposta é não.
Cabe à
DC a tarefa de preparar e alertar a população para riscos de desastres e
atender as pessoas quando eles acontecem, orientando a evacuação e auxiliando
os atingidos. Com a crise climática, era de se esperar que as DC ganhassem
protagonismo. No entanto, a situação desses órgãos públicos está longe do
necessário para cumprir suas atribuições.
O
Projeto Capacidades Organizacionais de Preparação para Eventos Extremos (Cope)
indicou que 72% dos órgãos de DC não têm orçamento próprio, enquanto perto de
20% não têm orçamento algum, o que se reflete, em geral, na falta de pessoal e
estrutura. Cerca de 47% das DC municipais não têm veículos para deslocar os
profissionais para as áreas afetadas; 30% não têm computador ou notebook e 63%
não possuem celular com pacote de dados exclusivo da Defesa Civil.
O Cope
foi realizado com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo (Fapesp), envolvendo um grupo de pesquisadores do Centro Nacional de
Monitoramento e Alertas de Desastres Nacionais (Cemaden), da Universidade de
Glasgow (Escócia), do Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT) da Universidade
Estadual Paulista (Unesp) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
O
objetivo da pesquisa é apoiar estratégias e políticas públicas de enfrentamento
aos desastres ambientais a partir de um diagnóstico da estrutura de governos e
comunidades em nível municipal. O Projeto Cope atualizou uma pesquisa feita
quatro anos atrás, o Projeto Elos, ampliando o número de municípios
investigados de 1.900 para 2.200 e foi realizado ao longo dos primeiros sete
meses de 2025. Segundo o sociólogo e pesquisador do Cemaden, Victor Marchezini,
um dos coordenadores do Cope, houve um agravamento da situação comparada com o
levantamento anterior.
Marchezini
destaca como mais problemáticos a alta rotatividade dos profissionais da DC em
função da troca de comando nas prefeituras em 2024; profissionais mal ou nada
qualificados e treinados, falta de estrutura física e dificuldade para criação
dos chamados núcleos comunitários de proteção e defesa civil. A esses gargalos
se soma a emergência de notícias falsas (“fake news”) em larga escala pelas
redes sociais que dificultam ainda mais o trabalho de salvamento.
Um dos
pontos que mais chamam a atenção, diz Marquezini, é a dificuldade que os
municípios têm de organizar os chamados simulados, uma etapa fundamental da DC
em que se orienta a população sobre como agir em caso de inundação,
deslizamentos ou ondas de calor. Cerca de 40% nunca realizou um simulado e
cerca de 30% não têm sequer um plano de contingência. Apenas 15% dos municípios
têm planos de redução de riscos e 7% têm planos de adaptação às mudanças
climáticas
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Ondas de calor
A maior
incidência entre as ocorrências documentadas no Atlas Digital (8.390 das
10.408) está relacionada às chuvas intensas, mas um fenômeno crescente é o de
ondas de calor. De acordo com o Ministério da Saúde, “ondas de calor são
eventos climáticos caracterizados por temperaturas extremamente altas, que
superam os níveis esperados para uma determinada região e época do ano”. Nos
últimos cinco anos (2019-24) foram 156 ondas de calor no Brasil, comparadas a
18 no período precedente (2013-18).
“Globalmente,
as ondas de calor são o desastre que mais causa mortes, são mais de 500 mil por
ano”, alertou o cientista Carlos Nobre em palestra no seminário “Gestão de
Desastres Ambientais e Clima: Coordenação, Comunicação e Desafios Estruturais”,
promovido em 11 de setembro pelo Instituto de Estudos Avançados da Universidade
de São Paulo (IEA-USP). “Estamos preparados para fazer a gestão de ondas de
calor? Não estamos”, frisou Nobre.
O
Projeto Cope indicou que apenas 10% dos municípios têm planos de contingência
para ondas de calor.
O maior
obstáculo ao desenvolvimento da DC nos municípios é a falta de uma legislação
federal que reforce a institucionalização e viabilize a criação de fontes de
recursos, opina Sidnei Furtado, coordenador regional e diretor da DC de
Campinas e do HUB de Resiliência da iniciativa “Construindo Cidades Resilientes
2030”.
“O
problema é institucional”, opina Furtado, lembrando que a Lei 12.983/2014, que
estabelece a criação do Fundo Nacional de Proteção e Defesa Civil (Funcap),
nunca foi regulamentada, o que dificulta o repasse regular de recursos da União
a Estados, Distrito Federal e municípios para a prevenção, resposta e
recuperação de desastres.
Em
novembro, às vésperas da COP30, o governo lançou um Plano Nacional de Proteção
e Defesa Civil 2025-2035 (PN-PDC) que visa fortalecer a gestão de riscos de
desastres no Brasil. Em entrevista à imprensa, Wolnei Wolff Barreiros,
Secretário Nacional de Proteção e Defesa Civil do Ministério da Integração e do
Desenvolvimento Regional (MIDR), explicou que o foco é a prevenção e que o
governo pretende apoiar Estados e municípios na atualização de seus planos.
Regina
Pancieri , gerente de Educação e Pesquisa da Defesa Civil do Estado de Santa
Catarina, avalia que o PN-PDC dá as grandes diretrizes que agora precisam ser
adequadas aos planos estaduais e municipais. Ela ressalta a necessidade de
compromisso de todos os entes federativos, em especial com a continuidade das
equipes e estruturas que costumam ser desmanteladas a cada troca de prefeito.
Para Pancieri, isso vai exigir um acompanhamento do governo federal. “Não
adianta lançar um plano e não acompanhar a execução nos Estados e municípios”,
alerta.
Marquezini
acrescenta que as deficiências institucionais impedem a profissionalização dos
agentes, fundamental para fortalecer as DC em todo país. O coordenador do Cope
afirma que a ciência tem contribuído com a geração de conhecimento sobre os
eventos extremos e sobre as vulnerabilidades de cada parte do território. “Mas
um desafio maior que nós temos é como reunir cientistas de diferentes áreas do
conhecimento trabalhando mais próximos dos gestores públicos para entender um
pouco quais são os desafios que eles têm em utilizar o conhecimento científico,
em implementá-lo numa política pública”, diz. “Às vezes nós damos ótimos
diagnósticos, mas as organizações públicas não têm a capacidade de colocar em
prática aquilo que estamos recomendando. Porque não tem equipe suficiente, não
tem orçamento.”
• Mais um passo do Congresso para o
assassinato ambiental. Por Kátia Mello
Pior do
que está fica, sim. No dia 02/12 o Congresso Nacional avançou para completar o
assassinato do licenciamento ambiental no Brasil, desmontando aquilo que há 40
anos é a pedra angular da política nacional de meio ambiente.
Na
terça-feira, uma comissão mista aprovou a conversão em lei da Medida Provisória
1.308/2025. A MP, enviada pelo governo em agosto, cria no país a figura da
Licença Ambiental Especial, a LAE, segundo a qual grandes obras de infraestrutura consideradas “estratégicas”
para o país por políticos poderão ser
licenciadas em um ano, burlando o rito normal e substituindo as três
licenças geralmente exigidas para esse
tipo de empreendimento por uma única, a ser dada em até um ano. A análise da
medida precisa ser concluída até sexta-feira (15), caso contrário, o texto
perde a validade.
Com a
LAE transformada em lei menos de uma semana depois de o Congresso derrubar os
vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao PL da Devastação, completa-se
o trio de medidas que tornam o licenciamento ambiental letra morta no país: a LAC (Licença por Adesão e
Compromisso), o autolicenciamento, que a nova legislação estende a
empreendimentos de pequeno e médio porte – que
representam mais de 90% do total dos licenciamentos estaduais e
municipais; as isenções em série de licenciamento que vão da atividade rural à
pavimentação de estradas na Amazônia; e, agora, a Licença Ambiental Especial,
um processo “expresso” para grandes
projetos de infraestrutura, inclusive hidrelétricas, que já podem ser licenciadas por essa modalidade.
“Com
essas três medidas, licenciar empreendimentos torna-se exceção no país e não
regra”, diz Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do
Observatório do Clima. “O Congresso
Nacional comete um atentado histórico contra a saúde e a segurança dos brasileiros, contra o clima e
contra o nosso patrimônio natural.” O
movimento ambiental irá à Justiça contra a nova legislação.
A LAE
foi inventada durante a tramitação do PL da Devastação (PL 2.159/2004) no
Senado. É obra do presidente da Casa, senador Davi Alcolumbre (União-AP), criada sob medida para acelerar o
licenciamento da exploração de petróleo na
Foz do Amazonas, de seu interesse eleitoral. Por ela, projetos de
“interesse estratégico”, assim definido
pelo Conselho de Governo (um convescote de
ministros no qual a área ambiental tem um único voto), vão para uma fila
expressa de licenciamento. Em vez de uma licença prévia, uma de instalação
e uma de operação, essas obras passam a
ter uma única licença, a LAE, com prazo
máximo de 12 meses para ser concedida.
A MP da
LAE foi editada por Lula em agosto, no ato do veto do PL da Devastação, para
agradar a Alcolumbre: se permanecesse no texto do PL, ela só passaria a vigorar
180 dias após a promulgação da nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental pelo
Congresso. Como foi retirada do texto da lei e apresentada por MP, ela já está
em vigor desde agosto e agora será convertida em lei. O interesse não é apenas
do senador: o governo também quer ver a LAE funcionando para facilitar as obras
do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), especialmente no ano eleitoral
de 2026.
No
último dia 24/11, a Licença Ambiental Especial fez sua estreia em grande
estilo: Lula sancionou o novo marco legal do setor elétrico, que torna todas as
hidrelétricas no Brasil licenciáveis por LAE. Usinas como Belo Monte, no rio
Xingu, que passou mais de uma década em análise, agora terão de ser licenciadas
em no máximo um ano – prazo insuficiente para que os projetos básico e executivo da obra possam ser adequadamente
avaliados.
A MP
1.308 foi relatada na Câmara pelo deputado bolsonarista Zé Vitor (PL-MG).
Apesar de ter rejeitado a maioria das 833 emendas ao texto propostas por
deputados e senadores (que reconstituíam o PL da Devastação original e que perderam sentido depois que os vetos de Lula
foram derrubados), o parecer do relator piora a MP.
Uma das
novidades do parecer é o aumento das dispensas de licenciamento que já existiam no PL. Dragagem de hidrovias e
até mesmo em rios poderão pular a
licença ambiental. Antenas de telecomunicação que não causem
“significativo impacto” (que o parecer
não define o que seja) também entram no rol das
isenções.
A
versão mais recente do parecer, apresentada nesta terça-feira, tem um artigo
sob encomenda para liberar por LAE a pavimentação da BR-319 (Porto Velho
Manaus), cuja licença prévia foi concedida ilegalmente pelo Ibama no governo Bolsonaro e hoje encontra-se suspensa na
Justiça. É consenso entre os estudiosos da área que o asfaltamento da 319
inviabilizará o controle do desmatamento – as
emissões projetadas nos próximos 25 anos são de 8 bilhões de toneladas
de gás carbônico equivalente, quatro vezes mais do que a emissão bruta anual do
Brasil inteiro.
O texto
do deputado propõe, sem citar nome, que “são consideradas estratégicas as obras de reconstrução e repavimentação de
rodovias preexistentes cujos trechos
representem conexões estratégicas, relevantes na perspectiva da segurança nacional, do acesso a direitos
sociais fundamentais e da integração
entre unidades federativas”. E que, quando a autoridade licenciadora já
tiver se manifestado pela viabilidade
ambiental da obra, os estudos para sua instalação devem ser apresentados em no máximo 90 dias.
Nenhum
dispositivo é tão exótico, porém, quanto um dos artigos do parecer que regula a Licença por Adesão e Compromisso –
que não faz parte da MP da LAE e sim do
PL original. Nele o relator, deputado por Minas Gerais, define que algumas atividades de mineração poderão ser
autolicenciadas: a extração de areia,
cascalho, brita e… garimpo de diamantes.
“O
parecer do deputado Zé Vitor não apenas reforça os problemas estruturais da MP:
ele reabre retrocessos vetados, inclui retrocessos novos e cria flexibilizações
adicionais, resultando em mais dispensas, mais LAC para atividades de risco,
mais poder discricionário político e menos segurança jurídica”, afirma Adriana
Pinheiro, assessora de Incidência Política e Orçamento Público do OC.
“O que
o Congresso tenta fazer com a Licença Ambiental Especial é desmontar, peça por
peça, a principal proteção que o Brasil construiu em quatro décadas para
defender vidas, territórios e o futuro climático do país. Ao transformar a
exceção em regra, acelerar grandes obras sem avaliação adequada e até permitir
autolicenciamento para mineração, o Parlamento aprofunda o racismo ambiental:
empurra mais riscos, mais poluição e mais violação de direitos exatamente para
as populações negras, indígenas e periféricas que historicamente são
sacrificadas em nome de um falso desenvolvimento. Esse retrocessos não é
política pública — é uma escolha deliberada por ampliar as desigualdades
sociais no Brasil”, conclui Mariana Belmont, assessora de clima e racismo
ambiental de Geledés.
Fonte:
ComCiência/Geledés

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