sexta-feira, 31 de outubro de 2025


 

Paulo Kliass: Petróleo na Amazônia - o que está em questão

A proximidade da realização da COP30 em Belém do Pará tem colocado algumas dificuldades para ser realizado um debate mais sereno e mais racional a respeito de quais seriam as posições mais adequadas para o Brasil adotar em relação à exploração do potencial petrolífero da chamada Margem Equatorial da foz do Rio Amazonas. A sensibilidade elevada em razão deste importante encontro das Nações Unidas introduz alguns ingredientes na salada geral em que se transformou a temática da sustentabilidade.

Essa trigésima edição da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas deverá ocorrer em plena Amazônia. A decisão do governo brasileiro de hospedar o evento no coração de uma das mais importantes reservas florestais do planeta é fortemente carregada de simbologia política. Por um lado, coloca em evidência a relevância de nosso país como detentor de um bioma e de um território fundamentais para qualquer plano mundial de combate aos efeitos devastadores que a ação do ser humano tem proporcionado no meio ambiente. No entanto, por outro lado, o governo atual pode se colocar como vitrine, podendo ser fragilizado nesta controvérsia a respeito da ausência de medidas efetivas para mitigar os efeitos que a sanha tresloucada do capitalismo por lucro a qualquer custo provoca no globo.

O território amazônico concentra um conjunto amplo de fatores em questão no momento atual. Ele mantém a maior área de floresta nativa do mundo, com a impressionante capacidade de absorver gás carbônico e devolver oxigênio para a atmosfera. Ele possui uma reserva de água nos rios e no subsolo, além do fenômeno dos “rios voadores”. A área de dimensão continental abriga um sem-número de espécies animais e vegetais, muitas delas ainda desconhecidas e a grande maioria pouco conhecida e estudada. Por outro lado, ali vivem populações originárias que buscam manter seu estilo de vida de respeito e de admiração pela natureza.

Potencial a ser explorado com cautela e prudência

Ocorre que a opção estratégica adotada pelas nossas elites de abraçar o estímulo ao modelo neocolonial de divisão internacional do trabalho converteu o Brasil, ao longo das últimas décadas, em um grande exportador de “commodities” agrícolas, pecuárias e minerais. Além de contribuir enormemente para o processo de desindustrialização de nossa economia, essa trilha provocou o fortalecimento do agronegócio em todas suas dimensões: política, econômica, tecnológica, cultural, social e ambiental. Dentre outros aspectos devastadores, ganha relevo o ciclo que se inicia com a derrubada ilegal da floresta por meio do desmatamento criminoso, prossegue com a introdução da criação de gado em modo extensivo e finalmente se completa com a chegada da soja como monocultura transgênica.

Este é o coquetel perverso que mais contribui para o aquecimento do planeta e para a destruição do meio ambiente. Para além de todas as adversidades contra a sustentabilidade que o modelo carrega intrinsecamente consigo, o caso brasileiro é ainda marcado pelo uso indiscriminado de trabalho análogo à escravidão, pelo desrespeito aos direitos das populações indígenas e pelo aprofundamento da já imensa concentração de renda e de patrimônio.

O governo brasileiro, assim como a maior parte dos dirigentes de países do chamado sul global, sempre chamou a atenção para a necessidade de os países mais desenvolvidos assumirem suas responsabilidades na mudança de rota. Não há mais dúvidas científicas de que caminhamos para uma catástrofe anunciada, caso nada seja realizado efetivamente para alterar o modelo vigente em todas as partes. No entanto, a grande resistência vem justamente de lá. Os chamados países ricos se recusam sistematicamente a contribuir financeiramente para a colocação em marcha de um novo sistema de produção e de um novo modo de vida.

<><> Brasil não pode abrir mão de forma isolada e unilateral

Pois é neste contexto mais amplo que, no dia 20 de outubro, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) resolveu finalmente conceder uma autorização à Petrobras para a empresa iniciar a exploração, em caráter preliminar, do potencial das reservas de petróleo em alto mar, a 500 km da divisa das costas dos estados do Amapá e do Pará. Tal decisão, que envolve um processo que tramita desde 2013 no órgão, foi concluída a apenas 20 dias do início da COP30. Tal decisão coloca todos os holofotes do encontro internacional sobre as possibilidades abertas com tal permissão da exploração das reservas de óleo no subsolo da região.

A questão, porém, deveria ser analisada também sob o enfoque da soberania nacional. É inegável que existe um valor incomensurável, caso convertido em reservas internacionais, do potencial econômico ali existente e ainda inalcançado pelo ser humano. O mesmo tipo de debate ocorreu em 2006, quando foram anunciadas as primeiras descobertas do Pré-Sal. Naquele momento, mais uma vez deu-se a polêmica se o Brasil deveria ou não aproveitar as possibilidades oferecidas pela exploração daquelas novas reservas. O ponto relevante é sabermos qual a melhor opção para o futuro de nosso país. Afinal, nossa participação na produção global de petróleo não é determinante, a ponto de influenciar significativamente o ritmo global de tal atividade.

Segundo dados apresentados por instituições que atuam na área, o Brasil participa com cerca de 3% da produção mundial de óleo. Ocorre que esse ramo de atividade é extremamente concentrado. Assim, por exemplo, os cinco maiores países concentram 50% da produção global. Se ampliarmos a lista para as oito maiores nações, chegaremos a 62% do total. Isso significa que uma postura isolada de nosso país de reduzir unilateralmente a oferta de petróleo não teria o efeito desejado de provocar a necessária diminuição do consumo de tal matéria-prima em termos globais. Sem que seja articulado um movimento envolvendo os principais exploradores de petróleo, iniciativas autônomas só teriam o efeito de prejudicar economicamente os países que adotarem tal conduta.

O Brasil tem avançado significativamente na diversificação de suas fontes de energia, incluindo cada vez mais mecanismos renováveis, que comprometem bastante menos a sustentabilidade e o meio ambiente. Segundo o mais recente relatório do governo para o setor, o Balanço Energético Nacional, alcançamos a marca de 88% de nossa eletricidade originária de fontes renováveis, um índice bastante superior à média global e dos países da OCDE. No que se refere à estratégia de substituição dos derivados de petróleo, o país segue ampliando a oferta de etanol e biodiesel, além do anúncio do compromisso em aumentar o combustível de aviação de origem vegetal (SAF, a sigla em inglês) no lugar do tradicional querosene.

<><> Transição rumo às fontes renováveis e soberania nacional

Dessa forma, a possibilidade de continuar explorando as reservas petrolíferas se converte em questão de soberania nacional. O modelo deveria ser alterado para que a Petrobrás, na condição de empresa estatal responsável pela atividade, seja a única autorizada a aprofundar essas atividades exploratórias e de pesquisas. Tal procedimento de prudência impediria que as petroleiras estrangeiras pudessem cometer desastres em razão de sua absoluta falta de compromisso com qualquer projeto nacional de desenvolvimento. Ao colocar sua empresa de economia mista na linha de frente de exploração destas novas reservas, o governo federal se cercaria de cautela para implementar uma ação coordenada com os demais órgãos envolvidos, como o próprio Ibama e o Ministério Público.

Por outro lado, o modelo deveria recuperar a ideia do Fundo Soberano, a ser constituído a partir dos ganhos e receitas derivadas desta atividade. Esse sistema foi pensado no início do Pré-Sal, mas, aos poucos, foi sendo desvirtuado em sua concepção original. A partir de sua recriação, este patrimônio financeiro deveria ser utilizado exclusivamente para a geração de recursos na área da educação e da ciência e tecnologia. Os recursos do Fundo Soberano não poderão ser utilizados, em nenhuma hipótese, para custear outros tipos de despesas orçamentárias.

Com certeza, a época do anúncio da liberação por parte do Ibama não foi a mais adequada do ponto de vista da agenda política. Este tipo de decisão contribui para aumentar ainda mais as enormes dificuldades já enfrentadas pelo Brasil como país que hospeda a COP30. Porém, não é possível que a narrativa das entidades ambientalistas seja a única a expressar alguma alternativa para o complexo caso em questão. Existem alternativas que não sejam a simples proibição de explorarmos as reservas. Se os países mais ricos se comprometerem com uma agenda viável de respeito à sustentabilidade, o Brasil tem todas as condições de colaborar positivamente para tanto. Mas não podemos abrir mão desse potencial econômico de forma isolada e irresponsável para com as nossas gerações futuras.

¨      MPF pede inclusão como coautor de ação de organizações sociais contra licença da Petrobras na Foz do Amazonas

O Ministério Público Federal (MPF) pediu à Justiça Federal no Pará, na segunda-feira (27), a inclusão da instituição como coautora da ação ajuizada por organizações sociais, no último dia 22, que busca anular a licença de operação para a perfuração de um poço de petróleo pela Petrobras na Bacia da Foz do Amazonas. Além de se juntar às oito organizações da sociedade civil que iniciaram o processo, o MPF pediu um prazo de 15 dias para complementar os pedidos das entidades, reforçando os argumentos e solicitações, e defendeu a competência da unidade da Justiça Federal no Pará para julgar o caso.

A ação, movida pelo Laboratório do Observatório do Clima, Greenpeace Brasil, WWF-Brasil, Instituto Internacional Arayara, Comissão Nacional para o Fortalecimento das Reservas Extrativistas e dos Povos Extrativistas Costeiros Marinhos (Confrem), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia (Coiab), Coordenadoria Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Amapá (Conaq-AP) e Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), questiona a legalidade da Licença de Operação (LO) nº 1.684/2025, emitida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) no último dia 20. A licença autoriza a atividade de perfuração marítima de poços de petróleo no Bloco FZA-M-59, localizado na Margem Equatorial.

Na petição, o MPF justifica a necessidade de sua inclusão pela “altíssima relevância e complexidade dos temas jurídicos e ambientais envolvidos”. O órgão ressalta que o caso diz respeito à proteção de uma nova fronteira exploratória em uma região de “notória sensibilidade socioambiental” e que a medida é necessária para a defesa do patrimônio público, do meio ambiente e dos direitos de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais impactados.

<><> Defesa da competência no Pará 

Um dos pontos centrais da manifestação do MPF é a defesa da competência da Justiça Federal no Pará, contrapondo-se a um pedido do Ibama para que o processo fosse remetido à Justiça Federal no Amapá. O MPF argumenta que, embora o bloco de perfuração esteja em alto-mar, o Pará é o centro da logística terrestre e marítima do empreendimento e o local onde se materializa a maior parte dos impactos.

Para sustentar sua tese, o MPF se baseia no próprio Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) do projeto, que determinou que a área de influência do empreendimento abrange diretamente 24 municípios no Pará. Segundo o documento, essa inclusão se deu principalmente pela interferência das embarcações de apoio na atividade de pesca artesanal.

Outros pontos cruciais destacados pelo MPF são:

• logística concentrada: as estruturas logísticas em terra se concentram no Pará, com a base de apoio marítimo localizada no Porto de Belém;

• rotas de navegação: as embarcações que partem de Belém atravessam regiões ecologicamente sensíveis do estado, como a Baía do Guajará e a Baía do Marajó, passando perto de vários municípios paraenses cidades e gerando impactos diretos sobre comunidades tradicionais, em sua grande maioria no Pará;

• impacto na pesca: o Pará é o segundo maior produtor pesqueiro do Brasil, sendo 92,1% de sua produção proveniente da pesca artesanal, e a sobreposição das rotas de embarcações com áreas de pesca é um dos principais fatores de impacto apontados no licenciamento; e

• gerenciamento de resíduos: o município de Belém foi incluído na área de influência por ser o destino dos resíduos gerados pela atividade de perfuração.

Não à unificação de processos – O MPF também argumentou pela improcedência do pedido de reunião do processo com outro, que tramita na Justiça Federal no Amapá. Segundo o MPF, não há justificativas para a unificação porque, embora ambos os casos se refiram ao Bloco FZA-M-59, eles são fundamentalmente diferentes, tanto no que se pede à Justiça quanto nos motivos pelos quais se fazem esses pedidos.

O MPF explica que a ação no Amapá, ajuizada em junho de 2025, impugnou um ato preparatório, a decisão que aprovou um plano de proteção à fauna e determinou a realização da Avaliação Pré-Operacional (APO). Naquela época, a licença de operação ainda não havia sido concedida. Já a ação no Pará, ajuizada em outubro de 2025, ataca o autorizativo: a própria Licença de Operação nº 1.684/2025.

As causas de pedir também são distintas. A ação no Amapá foca em vícios procedimentais e na violação de direitos indígenas e quilombolas, como a ausência da Avaliação Ambiental de Área Sedimentar (AAAS) e a recusa em analisar o impacto do tráfego aéreo sobre comunidades indígenas no entorno do aeroporto de Oiapoque. Por outro lado, a ação no Pará se baseia em falhas ambientais críticas, como o uso de uma modelagem hidrodinâmica reconhecidamente defasada e inconsistente, a violação dos princípios da prevenção e precaução, e a incompatibilidade do empreendimento com os compromissos climáticos brasileiros.

Para o MPF, a reunião dos processos “prejudicaria a celeridade processual e a análise aprofundada das distintas questões de fato”.

. Falhas apontadas pela ação – A ação civil pública que o MPF agora busca reforçar detalha uma série de fragilidades técnicas e vícios insanáveis no processo de licenciamento conduzido pelo Ibama. As organizações autoras argumentam que a concessão da licença ocorreu sob forte pressão política e em contradição com as recomendações técnicas do próprio corpo de analistas do Ibama, que chegaram a recomendar o indeferimento da licença em abril de 2023.

Entre as principais deficiências apontadas na ação estão:

• base hidrodinâmica defasada: a licença foi concedida com base em um modelo hidrodinâmico que utiliza dados de 2013, considerado inconsistente e desatualizado para representar as complexas correntes marítimas da região. A própria licença, de forma contraditória, exige que a Petrobras apresente uma “nova modelagem” somente após a perfuração dos poços, ou seja, depois de expor a área ao risco;

• subdimensionamento de riscos: um estudo da Environmental Law Alliance Worldwide (ELAW), anexado ao processo, concluiu que a modelagem de dispersão de óleo subestima a quantidade de óleo que afundaria em caso de acidente, desconsiderando a alta concentração de sedimentos do Rio Amazonas e o efeito do uso de dispersantes químicos. O estudo aponta que o óleo afundado poderia atingir diretamente o Grande Sistema de Recifes da Amazônia;

• ausência de estudos e de consulta prévia: o processo avançou sem a realização do Estudo de Componente Indígena e Quilombola e sem a consulta prévia, livre e informada às comunidades tradicionais e povos indígenas que serão afetados, violando a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT);

 falta de avaliação climática: o licenciamento não analisou os impactos climáticos do empreendimento, tanto em relação às emissões de gases de efeito estufa decorrentes da exploração quanto à compatibilidade do projeto com as metas climáticas do Brasil.

Com a manifestação, o MPF se posiciona formalmente ao lado das entidades da sociedade civil, buscando fortalecer a ofensiva jurídica contra um empreendimento que, segundo apontado nas manifestações, representa um grave risco para um dos ecossistemas mais sensíveis e menos conhecidos do planeta.

 

Fonte: Outras Palavras/MPF - Pará


CULTURA E ESPORTE: A escolha de ser uma nação

No dia 9 de setembro, o Clube de Regatas do Flamengo lançou uma campanha para que a Organização das Nações Unidas, entidade criada 80 anos antes, ao final da Segunda Guerra Mundial, imbuída da missão de restaurar e preservar a paz entre todas as nações e povos do mundo, o reconhecesse como representante de uma “nação simbólica e cultural”.

Na época, detestei a iniciativa e me sentia envergonhado toda vez que sua campanha publicitária aparecia na minha timeline. Não porque essa não seja – nem de perto – a principal preocupação da ONU atualmente, o que é um fato. Certamente a guerra na Ucrânia, décadas do genocídio de palestinos, agravado nos últimos dois anos em Gaza, e dezenas de conflitos e tensões ao redor do mundo são questões mais sérias do que saber se o Flamengo deve ou não ser reconhecido como nação, ainda que simbólica. Pior ainda é que isso seja pedido num período em que a humanidade enfrenta uma crise de múltiplas esferas: ambiental, financeira, cultural e até sanitária, a exemplo da pandemia nos anos de 2020 e 2021, que ceifou 15 milhões de vidas em todo o mundo, segundo a OMS.

O pedido do Flamengo não me irritou nem mesmo por não haver precedente no órgão mundial que promove e preserva a paz no mundo, porque há. Desde 1972, a entidade reconhece patrimônios culturais, materiais e imateriais, a exemplo de cidades no Brasil como Brasília, Ouro Preto, Rio de Janeiro e regiões como o Cais do Valongo, o Jardim de Burle Marx e tantas outras preciosidades. Não seria problema ou vergonha alguma se o Flamengo buscasse reconhecimento parecido. Somos muitos milhões de torcedores e o time com a torcida mais nacionalizada e popular do país do futebol. Estamos nas favelas, vielas, bairros pobres, morros e periferias. Nos interiores dos interiores, onde ninguém se preocupa em levar alegria, há um time de futebol que, quando entra em campo, aquece o coração de quem está lá. Morei em alguns destes interiores nos últimos anos e atesto que, sem o Flamengo no mundo, o desgosto seria profundo para milhões de brasileiros e brasileiras.

Não é um problema da diretoria do clube, portanto, querer o reconhecimento do Flamengo como nação. O problema é a motivação para isso e, consequentemente, a compreensão extremamente equivocada do que isso significa. É explícito que o movimento não passa de uma campanha de marketing para internacionalizar a marca do clube – influencers que repercutem a campanha e a própria diretoria assumem isso abertamente. Ou seja, não é, de verdade, a defesa de que o Flamengo seja alçado ao mesmo status para a humanidade da Floresta Amazônica. A diretoria é consciente de que isso é um completo absurdo.

Mas foi só nesta semana que eu me vi digerindo e equacionando o porquê da minha indignação naquela época. A resposta parece contraditória. Eu acredito que o Clube de Regatas do Flamengo, fundado em 15 de novembro de 1895, que formou não só um dos times de futebol mais vitoriosos da história do esporte no Brasil, como também de diversas modalidades esportivas, como ginástica olímpica (de Luísa Parente, Daniele e Diego Hypólito a Rebeca Andrade), canoagem (com Isaquias), basquete (de Oscar a Marcelinho) e tantas outras, é, sim, somado à sua torcida nacional e mundial, espalhada por todo o Brasil e por diversas partes do mundo onde haja um brasileiro ou uma brasileira, uma nação. Caberia, sem dúvida, que fosse reconhecida como tal pelos órgãos competentes, no caso, a ONU. Mas sabe quem não acredita? A própria diretoria do clube.

Fica claro que a gestão de Luiz Eduardo Baptista, o Bap, não se importa com sua nação quando coloca o ingresso mais barato para um jogo do time a R$ 300, valor que corresponde a 20% do salário mínimo, em um país em que cerca de metade da população vive com essa renda. Estamos falando da exclusão de, pelo menos, 25 milhões de flamenguistas ou mais da oportunidade de assistir ao vivo a um jogo que seja, em um mês, de seu time do coração. O Flamengo é também o clube que cobra mais caro pela adesão ao seu programa de sócio-torcedor – uma iniciativa pensada para incluir, na comunidade rubro-negra, pessoas sem condições de pagar por uma sede social que jamais frequentariam, muitas vezes por nem viverem no Rio de Janeiro.

Não faz sentido almejar o título de nação, ainda que simbólica, para quem trata seus talentos como “ativos”, como disse o CEO do clube, Reinaldo Belotti, ao se pronunciar sobre o incêndio do Ninho do Urubu, centro de treinamento do clube, ocorrido no dia 8 de fevereiro de 2019, que vitimou fatalmente dez crianças das categorias de base do futebol. Instaladas em um contêiner sem alvará de funcionamento e com inúmeras violações de segurança, foram tratadas como peças descartáveis, inclusive os atletas sobreviventes, massacrados psicologicamente pela dor do trauma e dispensados do clube pouco tempo depois, sem ter tido nenhum suporte financeiro ou emocional.

Ainda mais desumano foi o tratamento dispensado pela diretoria de Rodolfo Landim, presidente à época, que nunca sequer teve a dignidade de olhar nos olhos dos pais das vítimas do incêndio e pedir desculpas – ainda que nem sinceras fossem. Mesma vergonha podemos falar de Eduardo Bandeira de Mello, que, como presidente até o final de 2018, assinou diversas autorizações para seguir com o funcionamento absurdamente inseguro das instalações em que dormiam crianças e que afirmou, quando indagado, não saber dos problemas do principal bem patrimonial do clube, onde treinavam atletas profissionais do futebol masculino. Somam-se a estes ex-presidentes todos os responsáveis diretos pelo crime, segundo o Ministério Público do Rio de Janeiro, e que foram inocentados pelo juiz Tiago Fernandes Barros, da 36ª Vara Criminal do estado.

Vossa Excelência entendeu que Antonio Garotti e Marcelo Maia de Sá, diretores do clube que intermediaram a relação com a empresa do contêiner incendiado, que Claudia Rodrigues, representante da empresa fornecedora do container, que Danilo Duarte, Fábio Hilário da Silva e Wesley Gimenes, engenheiros responsáveis pela fabricação, montagem e instalação do contêiner, além de Edson Colman da Silva, o responsável pela manutenção do ar-condicionado cujo curto-circuito levou ao incêndio, não cometeram nenhum crime ao deixar dezenas de crianças alojadas, longe da atenção dos pais e da família, em um local com grades nas janelas, sem extintores de incêndio, repleto de gambiarras e com notificações e multas diversas dadas pela Prefeitura, pelo Corpo de Bombeiros e pelo Poder Judiciário. O Ministério Público nesta semana recorreu da decisão em primeira instância, e o julgamento seguirá outras etapas.

Poderíamos entender que o acidente do Ninho do Urubu foi, na realidade, um fato isolado, diante de tantas conquistas do esporte rubro-negro. Um dos clubes com mais atletas medalhistas olímpicos da história do Brasil deveria ter aprendido com o erro, embora nem isso tenha sido reconhecido publicamente. Infelizmente, em reportagem publicada na semana passada pela jornalista Renata Mendonça, vemos um tratamento parecido com o que foi prestado aos garotos do Ninho às mulheres do futebol profissional rubro-negro. Uso de contêineres, instalações improvisadas, campo de treino maltratado. Ao menos, como se tratam de adultas remuneradas, as atletas não precisam dormir também onde treinam, se banham e se vestem; caso contrário, seriam mais vidas ameaçadas por imposição do clube que defende ser igualado às paisagens do Rio. Nada poderia ser mais antagônico.

Outra triste constatação é que a desumanidade do Flamengo no trato com seus atletas não é exclusividade do urubu. Recentemente o Clube de Regatas Vasco da Gama foi denunciado por um de seus maiores ex-atletas, Valdir de Morais Filho. O clube lhe devia cerca de R$ 4,5 milhões e encaminhou um plano de recuperação judicial que abatia grande parte dessa dívida como forma de acordo para sua quitação. Segundo o Ministério Público do RJ, o plano foi tratado como abusivo e com cláusulas que “afrontam o ordenamento jurídico”. O caso é apenas um exemplo de que clubes mal pagadores de atletas são mais comuns no Brasil do que alagamentos em grandes cidades em março.

E o que dizer dos patrocínios dos clubes? Hoje, dezoito dos vinte clubes que disputam a Série A do Brasileirão são patrocinados por casas de apostas, somando mais de R$ 1 bilhão por ano no futebol. Quando não são empresas que sugam as economias dos trabalhadores com apostas, são companhias que cobram juros abusivos e coagem idosos, como a Crefisa. Pelo menos as outras agremiações não solicitaram à ONU um status que sua diretoria sequer compreende – isso só aumenta a vergonha alheia do clube que eu e minha família escolhemos seguir e torcer.

Porém, diante de toda essa análise, me ocorreu outra reflexão: como seria possível o Flamengo reivindicar o título de nação simbólica sem ser uma piada de mau gosto? Para começo de conversa, precisariam reduzir a zero os casos como os das atletas do futebol feminino. Todos e todas as atletas do clube teriam acesso a uma estrutura parecida com a que os atletas do futebol masculino profissional têm. Em segundo lugar, a política de ingressos deveria mudar radicalmente. Se o clube é uma nação, então o torcedor mais pobre e vulnerável também deve ter o direito de ver seu time de perto. Em terceiro lugar, se a ambição do rubro-negro da Gávea é a de ser uma nação, então, mais do que “garimpar” jovens talentos esportivos, o clube deve contribuir para a educação de sua nação. As “Escolinhas Fla”, que prometem ensinar conceitos morais e éticos, devem se transformar em escolas de verdade, de qualidade e em tempo integral, fazendo do futebol e de outros esportes uma formação técnica integrada ao ensino básico completo e, até mesmo, com a oferta de cursos superiores ligados à área do futebol (gestão, educação física, fisiologia, fisioterapia, administração são só alguns exemplos). Assim, jovens da base não seriam apenas formados para o esporte profissional, mas para a vida em sociedade, com cidadania, senso crítico e formação para seguir em outras áreas profissionais. Isso é uma nação que cuida de seu povo.

Por fim, se o sonho do CRF é ser Nação Rubro-Negra frente às Nações Unidas, daqui para frente é preciso democratizar o clube. Isso pode parecer utópico, mas uma das maiores empresas do mundo de celulares hoje, a Huawei, deixou de ser de um só dono e passou a ser de seus funcionários. Seu fundador, Ren Zhengfei, detém ainda 1% de suas ações, o que constitui mais de US$ 100 milhões. O restante pertence aos próprios trabalhadores da empresa, o que impede que haja demissões em massa e violações de suas condições de trabalho. Guardadas as devidas proporções, não seria nada injusto que os sócios-proprietários do clube atual, número inferior a 10 mil membros, compartilhassem o controle do clube com o resto de sua nação ou, pelo menos, com seus sócios-torcedores, dez vezes mais numerosos.

Sabemos que, lamentavelmente, por tudo que vimos a diretoria do Flamengo fazer nos últimos anos, independentemente da gestão, a incompreensão do peso, da responsabilidade e da magnitude de ser uma nação simbólica tornam todas as propostas que pensamos aqui uma comovente utopia. Confesso: esse hoje não é o meu sonho. Não cobro que o clube tenha o mesmo status da Roda de Capoeira ou de Machu Picchu. Para mim, seria suficiente se nunca mais nossos atletas fossem cozinhados vivos ou exibissem em suas camisas de jogo empresas voltadas à destruição das vidas de seus torcedores. Hoje, parece que até isso nos soa um sonho delirante.

 

Fonte: Por Vinicius Almeida, no Le Monde

 

É sempre necessário tratar a febre? O sintoma que intrigou os médicos durante milênios

São três horas da manhã e você não consegue dormir.

Suores e calafrios comprovam que algo não está bem. Um calor infernal avança até a cabeça, enquanto os calafrios percorrem a sua espinha.

Você se sente indefeso, exausto e confuso. "É apenas uma febre", você pensa.

Característica evolutiva de mais de 600 milhões de anos, a febre é companheira habitual de uma enorme variedade de infecções por vírus, bactérias e fungos. Muitos de nós já vivenciamos a febre durante um episódio de gripe, por exemplo.

A febre também é um sinal de enfermidades sérias, muitas vezes mortais, ao longo da história humana. E incorporamos seu nome a muitas doenças, como a febre amarela, febre maculosa, febre tifoide, febre oropouche, febre de Lassa e outras.

Ainda assim, os seres humanos só conseguiram compreender totalmente como o nosso corpo produz a febre no século 20.

Mas por que temos febre? Devemos sempre tratar dela? E quando ela deixa de ser um simples desconforto para se tornar um problema mais sério?

<><> Uma pequena sangria

Nossos ancestrais tinham total consciência dos perigos da febre e criaram interessantes ideias sobre o funcionamento do nosso corpo, segundo a pesquisadora de ciências humanas e assistência médica Sally Frampton, historiadora da medicina da Universidade de Oxford, no Reino Unido.

"Hoje, nós sabemos: 'Oh, você tem febre, alguma coisa está acontecendo'", explica ela. "Mas, para muitas pessoas do início do mundo moderno, até o século 19, a sensação era que a febre fosse a doença."

Os gregos antigos tratavam a febre de todas as formas, desde a suspensão da alimentação até a sangria. Estes dois métodos foram usados até o século 19 para tentar baixar a febre.

A grande mudança do nosso conhecimento sobre a febre, segundo Frampton, surgiu com a teoria dos germes, que nos trouxe maior conhecimento sobre as infecções. A febre, então, começou a ser considerada um sintoma, não uma doença em si.

<><> A teoria dos germes

Louis Pasteur (1822-1895) foi o primeiro a publicar a teoria dos germes, em 1861, identificando micro-organismos que invadem o nosso corpo como sendo a causa de doenças.

O cientista francês abriu o caminho para que pudéssemos compreender as infecções microbianas como algo que podemos evitar com a higiene.

Em 1875, houve um surto de mortes de mães durante o parto em um hospital de Paris, na França, devido à "febre puerperal" (hoje conhecida como infecção pós-parto). Pasteur, então, propôs que a infecção era transmitida pelos médicos e atendentes do hospital.

Ele rapidamente orientou os médicos a lavar as mãos e esterilizar seus instrumentos com o uso de calor.

Sabemos atualmente que a febre faz parte da reação inata do corpo à infecção.

Todo o mundo animal, tanto vertebrados de sangue quente quanto de sangue frio, sofre calafrios causados pela febre, seguidos por suores pegajosos e incessantes. É o sistema de alarme e ataque contra intrusos do nosso corpo.

A febre sinaliza que patógenos e outros personagens hostis invadiram nosso corpo e que estamos começando a lutar contra eles.

Por mais desagradável que possa ser, a febre ajuda a nos livrarmos desses intrusos. Mas, quando não é examinada, ela pode ser prejudicial.

<><> O que é a febre?

A febre é geralmente caracterizada por temperatura corporal de cerca de 38 °C ou mais. Ela pode ocorrer quando o nosso corpo reage a infecções, mas também pode ser gerada por doenças autoimunes, doenças inflamatórias ou após a vacinação.

Quando o nosso corpo reage à ameaça de um vírus ou micro-organismo patogênico, como infecções fúngicas ou bacterianas, a nossa temperatura corporal aumenta.

Este é um mecanismo importante para a nossa reação imunológica, pois faz com que o corpo fique menos acolhedor para os patógenos nocivos. Eles têm dificuldade de se reproduzir e desenvolver dentro de nós a essas temperaturas mais altas.

"O corpo detecta algo estranho, como um vírus ou bactéria. O termostato, então, sofre um pequeno ajuste para aumentar a temperatura até o nível em que a resposta a essa ameaça seja mais eficiente", explica o professor de imunofarmacologia Mauro Perretti, especialista em inflamações da Universidade Queen Mary, em Londres.

Com isso, "as células trabalharão melhor; as enzimas funcionarão melhor. É uma reinicialização que, é claro, será transitória."

No nosso corpo, existem janelas minúsculas entre o muito frio, o ideal e o muito quente.

Quando a nossa temperatura interna cai abaixo de 35 °C (o que é conhecido como hipotermia), surgem calafrios, desarticulação da fala e respiração lenta.

No lado oposto da escala, o aumento da temperatura corporal acima da faixa normal por um período prolongado (hipertermia) pode ser perigoso e prejudicial para os nossos sistemas internos, incluindo o sistema nervoso central, especialmente quando ultrapassa 40 °C, podendo gerar alucinações, convulsões e até a morte.

<><> O lado bom da febre

A febre envolve o aumento controlado do nosso termostato interno. Mas a hipertermia faz com que a temperatura corporal aumente descontroladamente, sem o ajuste termorregulador.

Se a ameaça percebida pelo corpo for vencida, a febre abaixa.

O fim de um período de febre surge quando o corpo eliminou a infecção com sucesso, seja isoladamente ou com o apoio da medicina moderna, como antibióticos para infecções bacterianas.

O lado positivo da febre é que ela perdura por curto período, já que os muitos sistemas do nosso corpo exigem o retorno ao nível adequado de cerca de 37 °C para sua operação ideal.

A febre é uma das bases da inflamação, que é a reação natural do nosso corpo a ameaças como lesões ou infecções.

Ao lado da dor, vermelhidão e edema (o acúmulo de fluido caracterizado por inchaço) e da perda das funções normais, a febre ocorre nos sistemas e partes do corpo afetadas, quando o corpo reage a essas ameaças.

Juntas, essas reações garantem que o nosso corpo reaja adequadamente ao perigo, seja ele um risco infeccioso ou não infeccioso, segundo Perretti.

As crianças têm febre pelas mesmas razões dos adultos. Muitas vezes, elas estão relacionadas a infecções virais ou bacterianas.

Mas elas são mais susceptíveis à febre, em grande parte, porque levam mais tempo para calibrar seu termostato interno.

Além disso, nas crianças, o hipotálamo (a região do cérebro que produz os hormônios que regulam a temperatura corporal) ainda está se acostumando a reagir aos pirógenos — as substâncias que acionam a reação imunológica que gera o aumento da temperatura.

Os pirógenos se comunicam com o hipotálamo para elevar a nossa temperatura até um nível em que os vírus e bactérias enfrentam dificuldades para sobreviver e se reproduzir.

Esses micróbios tendem a não se adaptar a temperaturas mais altas durante episódios de febre, pois a febre não é benéfica para eles a longo prazo. Sua eficiência para infectar organismos saudáveis, mais frios, seria reduzida.

<><> Benefícios que já duram milênios

Apesar de tentarmos nos livrar da febre há séculos, os cientistas agora entendem que, em muitas circunstâncias, seus benefícios podem superar os riscos.

Quando uma pessoa tem febre, o aumento da temperatura pode ajudar as células imunológicas, como os leucócitos, a reagir mais rapidamente à ameaça dos patógenos. E a febre também pode beneficiar as reações celulares e bioquímicas que fazem parte da reação inflamatória do corpo, segundo Perretti.

Além de subir o termostato acima da temperatura que permite a proliferação dos patógenos, como bactérias, o calor da febre funciona como sistema de alerta, colocando em ação nossa equipe de vigilância interna, como as vias neurais e os sistemas fisiológicos. Eles conversam entre si, estabelecendo o melhor plano de ação.

Nossa mudança de comportamento durante um período de febre também ajuda a carregar a reação imunológica do corpo, explica Perretti.

Ao lado de outros aspectos da luta do corpo contra a infecção, como a redução dos níveis de ferro e zinco no sangue, redução do apetite e letargia geral, a febre nos força a permanecer em repouso e recuperação.

Animais diversos, como peixes e répteis, também elevam sua temperatura interna durante a infecção para obter melhores resultados de sobrevivência.

Os animais de sangue frio fazem isso alterando fisicamente seu ambiente para climas mais quentes. Os peixes, por exemplo, nadam para águas mais quentes e os lagartos tomam banho de sol.

Descobriu-se que a febre oferece aos organismos, incluindo às pessoas, melhores chances de sobreviver a infecções.

<><> Febre demais

Se os nossos corpos forem incapazes de estabelecer uma reação inflamatória, como febre, inchaço ou vermelhidão, não podemos proteger adequadamente o corpo contra infecções.

Ainda assim, no caso de febre e inflamações, "um pouco é bom, mas muito é ruim", explica Perretti.

A febre certamente pode ser perigosa. Altas temperaturas por muito tempo podem gerar desidratação, pois o nosso corpo aumenta a produção de suor para nos resfriar.

Se a nossa temperatura corporal ficar alta demais e permanecer acima de 40 °C por muito tempo, nossos sistemas vitais deixam de funcionar corretamente. E um estudo realizado em 2024 com camundongos concluiu que o excesso de calor pode gerar danos ao DNA.

Outro motivo de preocupação são as convulsões febris, que atingem principalmente as crianças. São reações do corpo ao rápido aumento da temperatura interna, normalmente durante o combate a infecções.

A causa exata dessas convulsões não é totalmente conhecida. A maioria delas não costuma causar danos, nem efeitos permanentes, mas é importante consultar um médico a respeito.

As complicações sérias ocorrem quando ignoramos a febre alta persistente, como sinal de alerta de condições prejudiciais como meningite, pneumonia ou sepse.

Por isso, o tratamento correto das infecções microbianas reduz a necessidade de produção de pirógenos e ajusta o termostato do corpo, pois ele nos livra dos corpos estranhos que o nosso sistema imunológico está combatendo.

A febre é um instrumento poderoso para combater as infecções e nos proteger. Mas, às vezes, pode ser mortal.

Um desses casos é a hiperpirexia, a febre extremamente alta e sem controle. Esse calor descontrolado pode gerar distúrbios no cérebro e até insuficiência de alguns órgãos. Qualquer uma destas duas condições pode levar à morte.

<><> Devemos tratar da febre?

Já que a febre normalmente nos ajuda a combater infecções, o que acontece quando tentamos nos livrar dela? Certamente existem possíveis desvantagens.

Em 2021, uma análise da febre na era da pandemia de covid-19 concluiu que "bloquear a febre pode ser prejudicial, pois ela, ao lado de outros sintomas, evoluiu como defesa contra infecções".

Usar medicações para reduzir o impacto da febre também pode ser prejudicial para a população como um todo. Um estudo de 2014, por exemplo, concluiu que suprimir a febre causada pela gripe pode aumentar o índice de transmissão da doença.

Isso ocorre porque, se as pessoas infectadas simplesmente tratarem dos seus sintomas de febre, elas retomarão rapidamente suas atividades diárias, indo ao trabalho e se socializando. Com isso, elas transmitem mais a doença do que se ficassem em casa, precisando descansar.

Portanto, em caso de febre suave, em algumas circunstâncias, é melhor deixar que ela faça o seu trabalho, segundo Mauro Perretti.

O professor afirma que, teoricamente, podemos dar ao corpo 24 a 48 horas para realizar a reação inflamatória necessária. Mas ele alerta que isso ainda pode ser perigoso em algumas situações. Por isso, é preciso sempre consultar seu médico, que poderá identificar o melhor tratamento para o seu cenário específico.

Os cientistas continuam estudando quando se deve tratar a febre e quando podemos deixá-la se manifestar.

Mas, na próxima vez em que você tiver febre, sentir calafrios e o suor pingar do seu rosto, aproveite a oportunidade para se maravilhar com o sistema imunológico trabalhando para proteger você de maiores danos. Afinal, ele é o resultado de milênios de evolução.

>>> Importante:

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Fonte: BBC Future

 

A farsa do ‘narcoterrorismo’: como o Rio virou laboratório da guerra híbrida contra o Brasil

Sob o pretexto de combater o crime, o governo do Rio e seus aliados na extrema-direita reeditam a velha cartilha da Guerra Fria: transformar segurança pública em palco de guerra informacional. Ao ecoar o termo “narcoterrorismo”, autoridades fluminenses ajudam Washington a testar uma nova forma de intervenção — agora travestida de “cooperação antiterror”.

Drones sobrevoando o Complexo da Penha, granadas lançadas sobre um território densamente povoado, dezenas de mortos, escolas fechadas, medo generalizado. As imagens correram o mundo antes mesmo que os fatos fossem apurados — e bastou uma frase do governador Cláudio Castro para fixar o enquadramento desejado: “é narcoterrorismo”. Essa palavra, lançada ao espaço informacional com a frieza de quem sabe o que diz, não é apenas um erro semântico. É uma arma.

O episódio desta terça-feira, 28 de outubro de 2025, marca o ápice de uma operação psicológica cuidadosamente calibrada para fabricar a sensação de colapso da segurança pública e, com isso, legitimar uma agenda geopolítica que não nasce no Brasil. O termo “narcoterrorismo” — juridicamente inexistente no direito brasileiro — serve como chave simbólica para importar o vocabulário estratégico de Washington e deslocar o eixo da narrativa nacional: o que era crime organizado se transforma, subitamente, em “ameaça hemisférica”.

Essa manipulação discursiva tem objetivos precisos. Internamente, consolida o projeto de poder da extrema-direita, que precisa do medo como combustível político; externamente, reabre a porta para a doutrina de segurança dos Estados Unidos, que volta a enxergar a América do Sul como um campo de “risco híbrido” a ser contido. O governo do Rio, ao adotar esse léxico, atua como vetor de uma psyop de alcance internacional: produz instabilidade, fragiliza o governo federal e fornece à imprensa estrangeira o argumento pronto de que o Brasil perdeu o controle sobre seu território.

No campo informacional, não há improviso. A sincronização entre a operação militar, o uso do termo “narcoterrorismo” e sua replicação imediata por agências internacionais forma um roteiro já conhecido da guerra híbrida contemporânea: criar o caos, nomeá-lo sob o signo do inimigo global e exigir intervenção sob o pretexto da ordem. O que se passa hoje no Rio de Janeiro é menos sobre segurança e mais sobre soberania. É o ensaio de uma nova ofensiva cognitiva contra o Brasil.

O ESPETÁCULO OPERACIONAL: A GUERRA QUE PRECISA SER VISTA

Nada em uma psyop acontece por acaso — nem o horário da operação, nem os enquadramentos, nem o som das explosões. O que se viu nas ruas do Rio de Janeiro, na manhã de 28 de outubro de 2025, não foi apenas uma ação policial de grande porte: foi a encenação de uma guerra cuidadosamente coreografada para as câmeras. Blindados, helicópteros, drones e rajadas de fuzil compuseram a mise-en-scène perfeita para a criação de uma narrativa de colapso.

A operação “Contenção”, mobilizando mais de 2.500 agentes em uma única manhã, foi vendida como resposta ao avanço das facções criminosas, mas seu resultado real foi outro: gerar imagens de caos controlado, capazes de circular instantaneamente nas redes, nas TVs e nos portais internacionais. A guerra híbrida, afinal, depende da visibilidade — sem imagem, não há medo; sem medo, não há consentimento.

O impacto simbólico foi imediato. As cenas de granadas lançadas por drones e das favelas cobertas por fumaça não apenas criaram pânico, mas legitimaram o discurso de exceção. Em poucas horas, escolas fecharam, ônibus pararam, e a cidade mergulhou em um estado de paralisia emocional. Esse é o objetivo da operação psicológica: gerar percepção de perda de controle, mesmo quando o controle — militar e narrativo — está nas mãos de quem manipula a cena.

Ao transformar a segurança pública em espetáculo bélico, o governo do Rio recriou a estética do medo, fundamento essencial das democracias sitiadas. As câmeras da imprensa, estrategicamente posicionadas, captaram não apenas o confronto, mas o argumento: “o Estado enfrenta terroristas”. O que se transmite ao mundo, no entanto, é outro enredo — o de um país em colapso, incapaz de governar seus próprios territórios.

A guerra híbrida se alimenta desse paradoxo: quanto mais o Estado aparece como forte, mais ele se revela vulnerável; quanto mais promete segurança, mais fabrica insegurança. Essa é a lógica do espetáculo operacional — a guerra que precisa ser vista para cumprir sua função simbólica.

A ENGENHARIA DISCURSIVA: COMO SE FABRICA UM INIMIGO INTERNO

Nenhuma guerra híbrida se sustenta sem narrativa, e nenhuma narrativa se impõe sem engenharia discursiva. No caso do “narcoterrorismo”, o processo foi milimetricamente orquestrado: primeiro a imagem, depois o rótulo, em seguida a viralização, e por fim, a legitimação política.

O ciclo começa nas imagens. Drones, explosões, correria, fumaça — tudo registrado, editado e difundido em tempo real por canais oficiais e perfis aliados ao governo do Rio. O objetivo: criar o clima de guerra. Na sequência, surge a palavra-chave — “narcoterrorismo” — pronunciada por uma autoridade e imediatamente reproduzida por toda a máquina de comunicação bolsonarista. O termo não tem base legal, mas tem valor simbólico. Ele transforma criminosos em “inimigos do Estado” e o Estado em “bastião da civilização”, invertendo completamente a lógica jurídica e democrática.

Essa retórica é amplificada por um ecossistema previsível: portais da extrema-direita, influenciadores que orbitam o bolsonarismo digital e veículos internacionais predispostos a enquadrar o Brasil como “país em colapso”. A palavra é o vetor. Quando o rótulo chega à Reuters, à CNN en Español e ao El País, ele já cumpre sua função — legitimar o medo como verdade global e transferir o eixo do debate do campo policial para o campo geopolítico.

A engenharia discursiva transforma a exceção em regra e o território periférico em laboratório de consenso. Ao batizar o crime como terrorismo, o poder local fabrica o inimigo perfeito: invisível, interno e conveniente. É assim que se sustenta a guerra híbrida — não pelo controle de armas, mas pelo controle das palavras.

O PROPÓSITO POLÍTICO INTERNO: O CAOS COMO ESTRATÉGIA DE PODER

A fabricação do caos é uma velha técnica política — e, no Brasil de 2025, voltou a ser um ativo eleitoral. O governo do Rio de Janeiro, ao transformar a segurança pública em espetáculo, recria o ambiente de medo que alimenta o bolsonarismo e oferece à extrema-direita o combustível de que precisa para se manter relevante. Cada granada lançada, cada corpo exibido, cada manchete sobre “narcoterrorismo” reforça a narrativa de que apenas o autoritarismo pode devolver a ordem.

O cálculo é cínico. Com as eleições municipais à vista e o bolsonarismo enfraquecido nacionalmente, a extrema-direita busca um novo eixo de mobilização — e encontrou na “guerra contra o crime” o terreno ideal. Ao hiperbolizar a insegurança, cria-se a percepção de que o governo federal perdeu o controle, forçando o presidente Lula a reagir sob a agenda discursiva do adversário. É o mesmo método usado nos Estados Unidos durante a “War on Drugs” e na Colômbia sob o pretexto do “narcoterror”: a política do medo como arma eleitoral e instrumento de subordinação internacional.

Internamente, o discurso serve a três funções:

1 - Blindar a incompetência administrativa do Estado fluminense, desviando o foco das crises fiscal e social.

2 - Rearticular o campo bolsonarista sob uma bandeira moral e bélica, agora travestida de “defesa do cidadão”.

3 - Provocar o governo federal a entrar no jogo da força, rompendo o equilíbrio entre segurança pública e direitos civis e apresentando Lula como “fraco diante do crime”.

O caos, portanto, não é um efeito colateral — é o produto. A sensação de desordem é o terreno fértil da extrema-direita, e o Rio de Janeiro, mais uma vez, foi escolhido como laboratório. Sob o verniz de combate ao tráfico, o que se ensaia é uma guerra política por narrativas: a disputa pela percepção de quem detém a autoridade moral para usar a violência.

A PORTA PARA A INGERÊNCIA EXTERNA: O REGRESSO DA DOUTRINA MONROE

Por trás do discurso de “narcoterrorismo”, o que se reativa é um velho projeto de subordinação hemisférica: a Doutrina Monroe, reciclada no século XXI sob o disfarce de “cooperação antiterrorismo”. O termo não é inocente. Quando uma autoridade brasileira chama facções criminosas de “narcoterroristas”, ela abre uma brecha jurídica e diplomática para que os Estados Unidos intervenham direta ou indiretamente sob o argumento da segurança regional.

Esse roteiro já foi testado. Nos anos 1990, a Colômbia foi convertida em laboratório militar dos EUA sob o pretexto do “Plano Colômbia” — uma parceria que prometia combater o narcotráfico e acabou militarizando o país, ampliando o poder das agências americanas e subordinando a política de segurança nacional à lógica da DEA e do Pentágono. Hoje, o Rio de Janeiro cumpre função análoga: criar o pretexto narrativo para que o Brasil volte a caber na mesma moldura de “ameaça hemisférica”.

Não é coincidência que a retórica de Cláudio Castro tenha ecoado, quase de imediato, em meios de comunicação e redes internacionais de segurança ligadas a Washington. O termo “narcoterrorismo” permite associar o Brasil à lista de países que exigem vigilância especial — a antessala das sanções, da espionagem e da cooperação forçada. Trata-se de uma operação de linguagem que antecede a operação política: quem controla o nome, controla o território.

Ao importar o léxico da segurança norte-americana, o governo do Rio cede soberania narrativa e estratégica. Entrega o poder de definir o que é ameaça e o que é ordem; o que é segurança e o que é guerra. E quando um Estado abre essa porta, não é ele quem decide quando ela será fechada.

O “narcoterrorismo”, portanto, não é apenas um equívoco semântico. É o código de ativação de um sistema de ingerência já em funcionamento — o braço invisível da guerra híbrida que transforma um discurso local em justificativa global para intervir, vigiar e enfraquecer o Brasil em nome da segurança.

A CAPTURA TECNOLÓGICA: QUANDO A SEGURANÇA VIRA DEPENDÊNCIA

Toda guerra híbrida tem uma camada silenciosa: o código. Por trás dos blindados e das granadas lançadas de drones, existe uma rede de sistemas, contratos e plataformas que definem quem vê, quem decide e quem lucra com o controle do território. O discurso do “narcoterrorismo” funciona aqui como porta de entrada para a entrega tecnológica, travestida de “cooperação em segurança”.

As polícias estaduais e federais brasileiras operam hoje com softwares, bancos de dados e ferramentas de vigilância fornecidos por empresas estrangeiras — muitas delas ligadas diretamente ao complexo civil-militar dos Estados Unidos e de Israel. Sistemas de análise forense, monitoramento de redes, reconhecimento facial e interceptação digital compõem um ecossistema híbrido de segurança privatizada, em que o Estado brasileiro depende de infraestrutura, código e manutenção estrangeiros. Essa é a face invisível da soberania capturada.

Quando um governo local aciona o léxico do “terrorismo”, abre caminho para acordos diretos com essas corporações, sob o argumento da urgência e da “cooperação internacional”. É o mesmo modelo aplicado em Bogotá, Manila e Kiev: a tecnologia entra como “ajuda”, mas permanece como instrumento de tutela. Cada nova aquisição, cada integração de dados, reduz a autonomia operacional das forças brasileiras e aumenta a capacidade de vigilância de atores externos sobre o território nacional.

A guerra híbrida não precisa de tropas estrangeiras — basta o controle do software e da narrativa. O discurso do medo legitima o investimento estrangeiro na segurança pública, e o investimento estrangeiro consolida o medo como política permanente. É um ciclo de dependência retroalimentado, em que o Brasil fornece dados, abre infraestrutura e paga pela própria subordinação.

No limite, o “narcoterrorismo” é o cavalo de Troia que converte a soberania informacional em moeda de troca, transformando o país em laboratório de teste para tecnologias de vigilância de uso dual — civil e militar. O inimigo não está nas favelas, mas nos servidores que processam os dados sobre elas.

O QUADRO JURÍDICO: A MENTIRA LEGAL E O DISCURSO DE EXCEÇÃO

Nenhum país soberano pode aceitar que a linguagem do inimigo determine o seu próprio direito. O Brasil possui legislação clara sobre terrorismo — e ela não inclui o tráfico, o crime organizado ou facções locais. A Lei 13.260/2016, sancionada após intenso debate no Congresso, define terrorismo como “atos motivados por extremismo político, religioso, racial ou ideológico que provoquem terror social generalizado”. Nada disso se aplica ao contexto fluminense. Ainda assim, o governador Cláudio Castro e setores da extrema-direita insistem em importar a categoria estrangeira de “narcoterrorismo”, um conceito sem valor jurídico e com alto valor geopolítico.

A operação semântica é simples, mas letal: ao classificar criminosos como “terroristas”, o Estado ganha carta branca para suspender direitos, expandir a letalidade e excluir o controle civil sobre as forças de segurança. Essa é a essência do discurso de exceção — ele legitima a violência preventiva, autoriza o erro e naturaliza o dano colateral. O efeito psicológico é devastador: transforma a população pobre, negra e periférica em potencial inimiga interna.

Por trás dessa distorção jurídica há um propósito estratégico: aproximar o Brasil da arquitetura normativa dos Estados Unidos, que permite ações extraterritoriais, sanções e monitoramentos sob o pretexto de “combate ao terror”. É o mesmo expediente usado para justificar intervenções na América Central, no Oriente Médio e nos Bálcãs — sempre em nome da segurança global.

No plano interno, o “narcoterrorismo” cria um estado de exceção permanente travestido de política pública. Sob esse manto, tudo se justifica: operações sem transparência, prisões em massa, execuções sumárias e convênios diretos com agências estrangeiras. Trata-se de um atalho discursivo para contornar a Constituição e reintroduzir o paradigma do inimigo — aquele que pode ser eliminado sem julgamento porque “não faz parte da sociedade”.

A mentira legal é o coração da psyop: ao fazer o público acreditar que o país enfrenta “terroristas”, o Estado se autoriza a agir como potência ocupante dentro do próprio território. E é justamente aí que a democracia começa a morrer — não pelo golpe militar, mas pelo consentimento semântico.

AS CONSEQUÊNCIAS IMEDIATAS: A GUERRA INTERNA E O RISCO DE INTERVENÇÃO EXTERNA

A consequência mais imediata da farsa do “narcoterrorismo” é o retorno de uma velha patologia brasileira: a normalização da guerra interna contra o próprio povo. Quando o Estado passa a enxergar cidadãos como inimigos potenciais, a política de segurança se transforma em política de extermínio. O resultado está nas estatísticas que nunca aparecem nas manchetes: corpos sem identificação, lares destruídos, escolas fechadas e territórios ocupados permanentemente sob o pretexto da ordem.

Mas o efeito não se limita à tragédia local. Cada vez que um governador fala em “terrorismo”, o termo é registrado por agências internacionais, indexado em bancos de risco e analisado por plataformas de monitoramento financeiro e diplomático. Em linguagem técnica, isso é chamado de “securitização da imagem nacional” — o processo que transforma problemas internos em ameaças globais. O preço é alto: encarece o crédito, afugenta investimentos, desestabiliza o câmbio e alimenta a percepção de fragilidade institucional.

No plano geopolítico, o discurso abre brecha para novas formas de ingerência, especialmente sob a doutrina norte-americana de “combate a ameaças híbridas e narcoterroristas”. Uma simples palavra dita por uma autoridade estadual pode servir de base para sanções, cooperações forçadas ou espionagem disfarçada de assistência técnica. É o que se observa agora: em Washington, think tanks e comissões parlamentares já citam o Brasil como “novo foco de instabilidade” — exatamente o tipo de narrativa que precede a penetração institucional.

Internamente, a operação cumpre outra função: testar os limites da democracia brasileira. O aumento da letalidade, o uso de drones, a ausência de perícia independente e o silêncio das autoridades federais revelam um país em estado de dessensibilização. O medo vira rotina, e a rotina anestesia o escândalo. É assim que uma operação policial se converte em ensaio de guerra híbrida: pelo controle da emoção coletiva e pela naturalização da violência como método de governo.

No campo simbólico, o dano é ainda mais profundo. A ideia de que o Brasil enfrenta “terroristas” legitima a militarização das favelas, a vigilância sobre movimentos sociais e o enfraquecimento de qualquer resistência popular. O que começa como exceção em um território periférico termina como norma nacional. Essa é a arquitetura do autoritarismo moderno: não precisa de tanques nas ruas, apenas de medo nas telas.

A CONTRA-NARRATIVA ESTRATÉGICA: COMO RECONSTRUIR A SOBERANIA DO DISCURSO

Toda guerra híbrida se vence primeiro no campo da linguagem. Antes das sanções, antes das armas e antes das urnas, vem a disputa pelo significado das palavras. É por isso que, diante da ofensiva “narcoterrorista”, a reação democrática precisa começar pela reconstrução semântica. A palavra “terrorismo” não pode ser cedida à extrema-direita, nem ao manual de Washington. É preciso restituí-la ao direito, à verdade e à soberania nacional.

A primeira medida é reafirmar o ordenamento jurídico brasileiro: o Brasil não enfrenta terroristas, enfrenta criminosos — e essa diferença é o que separa o Estado de Direito do estado de exceção. As facções não têm ideologia política nem intenção de gerar pânico social por motivação extremista. Chamá-las de “terroristas” é mentir por interesse geopolítico. É preciso insistir nessa distinção até que se torne senso comum, porque ela define o limite entre governar e ocupar.

A segunda é reconstruir o vocabulário da segurança pública a partir da soberania informacional. Em vez de importar doutrinas prontas, o Brasil precisa formular sua própria estratégia de defesa digital e territorial — centrada em inteligência pública, controle de dados e transparência. Segurança não é espetáculo: é política de Estado. Cada contrato de software, cada parceria tecnológica e cada cooperação internacional deve responder à lógica da autonomia, não da dependência.

A terceira é quebrar o monopólio narrativo da grande mídia e dos porta-vozes da exceção. A guerra híbrida é uma guerra de percepção; portanto, exige uma comunicação soberana. Isso significa disputar as redes, formar novos repertórios simbólicos e revelar o bastidor dos discursos. O antídoto da psyop é a verdade organizada — a contra-informação estratégica capaz de desarmar o medo.

Por fim, é necessário reafirmar o princípio político fundamental: a segurança não pode ser instrumento de dominação, mas de emancipação. Combater o crime sem sacrificar direitos é o verdadeiro desafio civilizatório. Enquanto o Brasil for induzido a lutar a guerra dos outros, continuará perdendo a sua própria paz. A contra-narrativa começa quando o país volta a se nomear com as suas próprias palavras. 

CONCLUSÃO: O BRASIL COMO ALVO DA GUERRA HÍBRIDA GLOBAL

O que aconteceu no Rio de Janeiro não foi apenas uma operação policial: foi um ensaio de guerra híbrida, testado em escala real, com todos os elementos clássicos de uma psyop moderna — o espetáculo midiático, o pânico social, a manipulação discursiva e o alinhamento automático ao vocabulário de Washington. Sob o disfarce da segurança, o Estado fluminense executou uma operação política de desestabilização, cujo verdadeiro alvo não é o crime, mas o governo federal e a soberania do país.

Quando o Brasil aceita o rótulo de “narcoterrorismo”, entrega de bandeja o seu poder de narrar a si mesmo. Autoridades locais transformam o território nacional em vitrine de guerra para justificar dependência tecnológica, parcerias assimétricas e, em última instância, a interferência estrangeira. É o mesmo manual de sempre: primeiro o discurso, depois a doutrina, por fim a intervenção. A história da América Latina é escrita nesse ciclo.

O que está em jogo agora é mais profundo que uma disputa partidária — é a própria autonomia cognitiva do Estado brasileiro, a capacidade de definir quem somos, quem ameaça e quem defende. Essa batalha não se vence com fuzis nem com notas oficiais, mas com consciência e soberania informacional. O Brasil precisa recuperar o domínio da palavra antes que perca o domínio do território.

A resposta democrática deve ser clara: nenhuma narrativa importada pode definir o futuro de um país que ainda luta para ser dono de si. Reagir à psyop não é apenas um gesto de resistência — é um ato de independência.

Nos próximos capítulos, a disputa continuará: nas redes, nas instituições e no imaginário coletivo. Mas cada vez que o Brasil recusa o medo imposto, um pedaço de sua soberania é reconquistado. E é exatamente por isso que querem nos manter em guerra — porque a paz é revolucionária.

 

Fonte: Reynaldo José Aragon Gonçalves, em Brasil 247