Política
e religião, hipocrisia e falsos mitos: como a censurada novela 'Roque Santeiro'
continua atual 40 anos depois
O clima
de redemocratização vivido pelo Brasil nos anos 1980 teve como celebração
televisiva a estreia de uma novela na noite do dia 24 de junho de 1985, há
exatos 40 anos.
Roque
Santeiro, produção da TV Globo que praticamente monopolizou a audiência do
país, tinha uma trama recheada de significados políticos e uma história, nos
bastidores, que também retratava os abusos do poder ditatorial que comandou a
nação de 1964 até o início daquele ano.
Ao
mesmo tempo, conforme lembram especialistas no assunto, a novela escrita pelo
dramaturgo Dias Gomes (1922-1999) — com a ajuda de Aguinaldo Silva — dialoga
com a política brasileira contemporânea ao criticar os falsos mitos
apresentados como salvadores da pátria, ao escancarar a hipocrisia social e ao
revelar os problemas da mistura muitas vezes promíscua entre política
partidária e líderes religiosos.
"Ela
[a história] discute muito a necessidade que temos de acreditar em mitos, em
falsos mitos, e a força que esses falsos mitos têm", diz à BBC News Brasil
a jornalista Laura Mattos, autora do livro Herói Mutilado - Roque Santeiro e os
Bastidores da Censura à TV na Ditadura. "Nesse sentido, a gente pode fazer
uma conexão bem interessante com o bolsonarismo e com todos os falsos heróis
que têm ganhado uma força impressionante no mundo atual."
"Eles
sempre existiram e hoje são turbinados com a desinformação e com as redes
sociais. Nesse sentido, toda a obra de Dias Gomes é assustadoramente atual. E
ele discute isso de uma forma nada maniqueísta, com camadas e bastante
profundidade", argumenta. Mattos lembra que toda a obra de Dias Gomes
acaba criticando o populismo político e o coronelismo.
Para o
consultor e pesquisador Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia pela
Universidade de São Paulo (USP), autor do livro A Hollywood Brasileira -
Panorama da Telenovela no Brasil e membro da Academia Internacional de Artes e
Ciências da Televisão de Nova York, Roque Santeiro foi um marco na televisão
brasileira "porque simbolizou a reunião de diversos elementos que compõem
o imaginário do Brasil e da América Latina".
"A
novela misturava com grande talento e habilidade dramatúrgica, temas caros à
sociedade brasileira e de países latino-americanos: religião, política,
construção de mitos e mercantilização da fé", sintetiza ele, à BBC News
Brasil. "E todos estes aspectos embalados por muita malandragem, repleta
de bom humor e recheada com tensão e suspense."
"Roque
Santeiro é um perfeito exemplar de literatura dramática latino-americana",
completa o pesquisador. Mauro Alencar adaptou Roque Santeiro para uma versão em
livro, dentro da coleção Grandes Novelas, lançada pela Editora Globo em 2007.
Pesquisador
de teledramaturgia brasileira, o historiador Leandro Barbieri Beraldi ressalta
à BBC News Brasil que a fama de Roque Santeiro começou em 1975, quando ela foi
proibida de estrear por conta da censura do regime ditatorial que vigorava no
país.
"Ao
ser produzida dez anos depois, a novela tornou-se um símbolo da
redemocratização, o que, por si só, já a faria histórica", comenta ele.
"Mas o que de fato faz de Roque Santeiro um marco é sua qualidade
artística. Uma brilhante combinação de texto, direção, produção e elenco que
colocou o Brasil diante de um espelho, justamente no momento em que se refletia
sobre qual país queríamos dali por diante."
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A trama do falso herói
"No
dia em que o bando de Navalhada invadiu Asa Branca, Roque Santeiro desapareceu,
sendo dado como morto. Logo após o incidente, uma menina disse ter visto o
rapaz em uma visão. A notícia se espalhou, e Roque foi santificado. Uma estátua
em homenagem ao herói foi erguida em praça pública, e a população logo passou a
lhe atribuir curas e milagres. A lenda de Roque Santeiro trouxe fama à cidade,
atraiu romeiros e se tornou fonte de lucro e poder para várias personalidades
locais. Mas, para o desespero deles, Roque Santeiro não está morto, e resolve
voltar para Asa Branca."
Esta é
a sinopse oficial da novela, conforme divulgado pela emissora no site Memória
Globo. "O universo ficcional de Dias Gomes, sobre coronelismo, questões
sociais muito fortes e a reflexão sobre a fé, unido com o mundo de Aguinaldo
Silva, de um Nordeste colorido, apimentado, bem-humorado e, por vezes,
sarcástico, só levou grandeza à novela Roque Santeiro", comenta Alencar.
Vivido
pelo ator José Wilker (1944-2014), o protagonista Luís Roque Duarte era um
coroinha que ganha a alcunha de Roque Santeiro porque esculpia imagens de
santos.
A fama
de milagreiro dele acaba sendo interessante para as forças políticas,
religiosas e econômicas da cidade fictícia de Asa Branca. O conservador padre
Hipólito, personagem de Paulo Gracindo (1911-1995), viu as vantagens da
exploração da fé popular. O comerciante Zé das Medalhas, encarnado por Armando
Bógus (1930-1993), lucrava com a venda de imagens sacras. O prefeito Florindo
Abelha, papel de Ary Fontoura, colhia os louros políticos da nova fama da
cidadezinha.
Caricatura
do coronelismo brasileiro, o todo-poderoso fazendeiro Sinhozinho Malta, vivido
por Lima Duarte, também se deu bem: mantinha uma relação sensual com Porcina da
Silva, interpretada por Regina Duarte, aquela que seria viúva de Santeiro.
Do
outro lado, estavam os que queriam revelar a falsidade desse mito. Era o caso
do padre Albano, papel de Cláudio Cavalcanti (1940-2013), que representava um
sacerdote progressista, fazendo a linha da Teologia da Libertação, lutando
pelos pobres trabalhadores e problematizando a ideia do culto a um salvador da
pátria.
"Roque
Santeiro, o santo que não era santo, é um retrato do Brasil republicano que há
décadas busca um herói, independentemente da ideologia ou cor partidária",
comenta Beraldi.
"O
santo da novela estava vivo e não era propriamente um exemplo moral. As beatas
entravam em atrito com a boate que chegava à cidade. E a política era mostrada
como um jogo de interesses muito mais privados que públicos", completa
ele.
"No
momento em que a censura ainda era atuante, esses temas eram espinhosos. E,
mesmo com a redemocratização, não deixaram de ser. Mas Dias Gomes tinha uma
arma poderosa para abordar tudo isso: o humor. A novela não era panfletária,
didática. Era entretenimento, sem abrir mão da profundidade."
Segundo
a análise de Alencar, "a pólvora que detona a ação em Roque Santeiro é o
questionamento". "Da fé, da necessidade de se criar mitos em uma
sociedade que não se desenvolveu como as outras, mas fora implantada; e do
controle político exercido sob as mais variadas formas de poder pelas mãos de
Sinhozinho Malta", enumera ele, lembrando da "hipocrisia religiosa
pela manutenção de um falso mito, o 'milagreiro Roque'".
O
especialista ainda lembra que, ao mesmo tempo, a trama inventa uma viúva,
Porcina, "que era sem nunca ter sido", e explora o contraste da beata
Pombinha com "as meninas da boate Sexus comandada por Matilde",
denunciando o "falso moralismo sexual".
Para
Alencar, tais temas explícitos, "só foram possíveis com o processo de
redemocratização" que ocorria no país. "Afinal, todos eram coniventes
com as regalias do poder: o prefeito Florindo Abelha, o comerciante da fé Zé
das Medalhas e até mesmo o padre Hipólito", salienta.
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Uma longa guerra de braço com a censura
A
novela Roque Santeiro foi baseada na peça teatral O Berço do Herói, que Gomes
havia escrito em 1965. Na ocasião, tentou-se levar a produção para os palcos,
mas a censura não permitiu.
Dez
anos mais tarde, com adaptações milimetricamente calculadas pelo autor, a trama
foi adaptada para virar novela na Globo. Na peça, o tal falso herói não era
Roque Santeiro, mas sim um militar, cabo Jorge.
"Ele
tinha ido para a [Segunda] Guerra pela Força Expedicionária Brasileira e ali
era dado como morto, teria morrido no front, em um ato heroico", conta
Mattos. "Essa lenda chega à sua cidade e ele vira herói e
milagreiro."
Mas na
realidade ele não teria morrido. Jorge havia desertado e passado 17 anos se
divertindo em bordéis europeus, até resolver voltar. "Quando chegou, a
cidade tinha se transformado em local turístico, com todo um comércio
religioso, uma movimentação hoteleira. A cidade ganhou importância em volta do
falso mito, do falso herói", narra a jornalista.
Gomes
manteve a trama mas decidiu substituir o militar protagonista por um coroinha
fazedor de imagens sacras. Esta era sua tática.
Com 10
capítulos prontos e mais de 30 já parcialmente gravados, tudo estava pronto
para a estreia, na noite de 27 de agosto de 1975. A emissora tratava a novela
como uma das suas maiores produções já realizadas, com um elenco de peso —
Francisco Cuoco (1933-2025) viveria o protagonista, Roque Santeiro —, anúncios
em jornais e nos intervalos de sua programação.
Na hora
da estreia, contudo, o público foi surpreendido: depois da vinheta de abertura
da novela, não foram os atores que apareceram em cena, mas novamente o
apresentador do Jornal Nacional que havia encerrado há poucos minutos, Cid
Moreira (1927-2024).
O
jornalista leu um editorial, escrito pelo próprio dono da Globo, Roberto
Marinho (1904-2003), esclarecendo que Roque Santeiro havia sido vetada pelo
governo federal porque, no entendimento dos agentes da censura, a novela
"contém ofensa à moral, à ordem pública e aos bons costumes, bem como
achincalhe à Igreja".
O
videotape com esse histórico anúncio feito por Moreira se perdeu em incêndio
que destruiu parte do acervo da emissora em 1976.
Em
entrevista veiculada pelo Globo Repórter em 1992, o dramaturgo Dias Gomes
contou que o motivo dessa censura sem precedentes a uma telenovela havia sido
uma conversa telefônica que ele teve com o historiador Nelson Werneck Sodré
(1911-1999) dias antes da estreia da trama.
No
telefonema, que havia sido grampeado pelos militares, Gomes havia comentado com
o interlocutor que Roque Santeiro era uma forma de enganar a censura, que não
iria perceber que se tratava da mesma história da proibida peça O Berço do
Herói.
"Foi
uma censura inédita. Nunca uma novela havia sido censurada de forma abrupta
assim, com o telespectador no sofá esperando o programa estrear",
contextualiza Mattos.
Segundo
analisa a jornalista Mattos, a veiculação desse editorial "escancarou a
violência do cerceamento à liberdade de expressão que existia em todas as
áreas" no período ditatorial.
"A
censura que até então era um tema dos formadores de opinião, da
intelectualidade e da classe política acabou virando assunto nas salas de
jantar, nas conversas de botequim", ressalta ela.
Todo
esse histórico aumentou ainda mais a expectativa pela novela, que finalmente
seria refeita e estrearia dez anos mais tarde, em 1985.
Mesmo
assim, a novela seguiu sendo parcialmente censurada — a máquina do regime
autoritário ainda não havia sido completamente desmontada, naquele início de
governo civil de José Sarney. Alguns capítulos tiveram cortes, especialmente
quando feriam o que os militares consideravam "bons costumes" — ou
seja: cenas de insinuação à homossexualidade, de adultério e mesmo algumas com
expressões de baixo calão.
Conforme
a jornalista Mattos define em seu livro, na época do regime militar as
telenovelas estavam no centro de um "triângulo amoroso de alta
voltagem". "Elas foram muito censuradas, mas conseguiram levar
adiante muitos debates", comenta.
Para
ela, as pontas desse triângulo eram três agentes que ganhavam muito com esse
tipo de entretenimento: as emissoras de TV, que lucravam com tais produções; o
próprio regime militar, que via nas novelas uma oportunidade para criar uma
identidade nacional que pudesse ser controlada; e a oposição. "Os
comunistas viam a novela como oportunidade de levar a mensagem para a
população, de ser crítico, de mostrar a realidade brasileira na visão que eles
acreditavam ser importante", afirma Mattos.
Roque
Santeiro é considerada a novela de maior audiência da televisão brasileira, ao
lado da também global Tieta, de 1989. Conforme conta o ex-diretor da Globo José
Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, em seu livro O Lado B de Boni, no
episódio final a novela chegou a ter picos de 100% de audiência, "ou seja,
quem estava com a televisão ligada, estava na Globo".
A média
geral da novela foi de 74 pontos de audiência. No último capítulo, quando houve
picos de 100 pontos, a média foi de 96.
"Roque
Santeiro é atemporal. Seus personagens ganharam vida em atuações memoráveis e
se comunicam muito bem até hoje com as novas gerações. Não é novela para
remake, é novela para reprise", diz o historiador Beraldi.
Roque
Santeiro foi reprisada algumas vezes pela Rede Globo. Em 1991 e 2000, pela TV
Globo, e em 2011 e 2024 pelo canal Viva, renomeado agora em junho como
Globoplay Novelas, onde a trama está no ar.
Fonte:
BBC News Brasil

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