terça-feira, 26 de novembro de 2024

Vendem-se Marias: os indícios de escravidão na linhagem de Itamar Franco

Tem início no ano de 1898 a genealogia do ex-presidente brasileiro, Itamar Franco (MDB), morto em 2011 devido a uma leucemia. Ao menos, é essa a data mais antiga na linha do tempo exibida no site do Memorial da República do Presidente Itamar Franco, organização herdeira do Instituto Itamar Augusto Franco, ligada à Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e responsável por guardar o histórico oficial do político.

No ano, como destaca o Memorial, nasceu Augusto César Stiebler Franco, o pai de Itamar, um engenheiro que viria a falecer pouco tempo antes do nascimento do filho. O nome de Augusto, nascido em Juiz de Fora, Minas Gerais, acrescentou mais uma importante figura à linhagem dos Franco, que vai muito além do ano de 1898, a despeito do que consta na memória oficial.

Segundo a Agência Pública apurou, há ao menos mais três ascendentes conhecidos de sobrenome Franco na família do ex-presidente: o avô, Arquimedes Pereira Franco; o bisavô, Atabalipa da Cayba Americano Franco; e o trisavô, Vicente Ferreira Franco.

É justamente esse último antepassado que, segundo os registros históricos do Tabelionato do 1º Ofício do Fórum Desembargador Filinto Bastos, que a Pública acessou, teria participado da negociação de pessoas escravizadas. Os registros dão conta de ao menos três, um deles, uma jovem de 16 anos, chamada Maria, oferecida como garantia em uma transação como um imóvel qualquer.

A reportagem questionou o Memorial para esclarecer os achados sobre a árvore genealógica e a relação do antepassado de Itamar com a escravidão, assim como fizemos com todas as autoridades citadas no Projeto Escravizadores. O Memorial respondeu que: “o supervisor do Memorial da República Presidente Itamar Franco encontra-se de férias, não podendo participar do levantamento em questão dentro do prazo estipulado para resposta”. O órgão enviou material publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, que foca na genealogia materna de Itamar.

<><> Quem foi Itamar Franco

Itamar Franco assumiu a Presidência do Brasil entre 1992 e 1995, depois do impeachment de Fernando Collor de Melo. Nascido a bordo de um navio que fazia a rota entre Salvador e Rio de Janeiro, foi registrado na capital baiana. De família mineira, ingressou no Exército em Juiz de Fora (MG), onde também se formou como engenheiro. Também foi prefeito de Juiz de Fora, governador em Minas Gerais e se elegeu senador pelo estado.

•                                    Na vila, vendiam-se casas, vendiam-se Marias

Vicente Franco, nascido no Ceará, morreu no Rio de Janeiro em 1863, segundo o obituário da edição do jornal Correio Mercantil de 24 de abril. A causa, de acordo com o periódico, foi “febre algida”, termo usado para descrever quadros febris causados por complicações após infecções.

Antes de chegar ao Rio, o trisavô Franco teria vivido um tempo na Bahia, na antiga Villa do Arraial de Feira de Santanna, que mais tarde originaria a atual cidade de Feira de Santana. Isso é o que aponta o livro de notas número 4 da Villa, referente ao período de 1839 a 1847. O documento foi compilado pelo trabalho de conclusão do curso de história de Maria Alice de Sá Barbosa Mendes, na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), de 2018.

O livro de notas mostra que Vicente Franco teria hipotecado uma casa, isto é, oferecido o imóvel como garantia de uma dívida, na rua da Alegria, em 1842, por 920 mil-réis. Para ter uma comparação, com a ressalva de que é uma aproximação, na obra 1822 de Laurentino Gomes, uma libra esterlina valia cerca de 5 mil réis. Uma libra esterlina em 1822 valeria, hoje, cerca de 100 libras. Então, 920 mil réis valeria em torno de R$ 135 mil.

No mesmo ano, há um segundo registro de hipoteca na mesma rua, dessa vez por 1 conto e 100 mil-réis, ou 1,1 milhão de réis. Este é sinalizado como um imóvel de Franco com a sua esposa, dona Antonia Delmira Franco, trisavô de Itamar. Quem recebeu a garantia, de acordo com as notas, foi o capitão Antonio Augusto Guimarais, com sobrenome escrito dessa forma.

É justamente no mesmo ano, e na mesma Villa de Santana, que Vicente Franco teria participado da negociação de duas pessoas escravizadas, a primeira delas, Maria, de 16 anos. Em 14 de fevereiro de 1842, uma xará da jovem negociada, Maria Thomazia do Nascimento, assina uma escritura de empréstimo que tomou de Franco. No acordo, que valeu 166 mil-réis e teria duração de três meses, Maria, a escravizada, foi posta como garantia tal qual os imóveis da rua da Alegria, caso o empréstimo não fosse quitado. Assim como um imóvel, uma pessoa escravizada poderia ser colocada como garantia de um empréstimo, porque era visto como propriedade. Na Bahia, o preço médio de um escravizado em 1840 chegava a 450 mil réis, segundo o livro Ser Escravo no Brasil, de Kátia Mattoso.

Dois dias depois, em 16 de fevereiro, o nome de Vicente Franco aparece novamente em um acordo envolvendo uma pessoa escravizada. Dessa vez, ele se chama Gonçalo, identificado como “crioulo”. O acordo, no valor de 100 mil-réis, indica que Antonio Vidál Corrêa Lima, através do seu procurador e filho Antonio Lião Corrêa Lima, teria confirmado a compra de Gonçalo por Franco.

•                                    Pessoas vendidas como coisas

As informações de compra e venda de pessoas escravizadas no passado de Feira de Santana são acessíveis graças aos registros históricos do Tabelionato do 1º Ofício do Fórum Desembargador Filinto Bastos. Uma série de documentos que vão de 1830 a 1880 foi recuperada e digitalizada pela UEFS e pelo Tribunal de Justiça da Bahia, num trabalho que buscou resgatar a história da escravidão na região. A catalogação do material teve como objetivo tornar mais prático o acesso aos documentos, auxiliando a comprovar a relação entre senhores e seus respectivos escravizados.

Segundo o vice-coordenador do Cedoc, Aldo Silva, é muito comum não associarmos ao papel de escravizadores o nome de pessoas que desempenharam um importante trabalho social. “É o caso do padre Ovídio, que nomeia uma das praças centrais da cidade”, diz. “Isso porque, por muito tempo, a população não acreditava que havia trabalho escravo aqui na cidade. E há um motivo para isso: proprietários de escravos sempre estiveram ligados ao poder econômico e político, à medida que promoviam uma imagem de que não havia resistência contra esse tipo de organização social.”

São justamente esses registros que mostram um terceiro acordo de pessoa escravizada que envolveria o antepassado de Itamar. Dois anos depois da negociação de Maria e Gonçalo, o nome de Vicente Franco, o parente do ex-presidente, aparece novamente nos registros, dessa vez sendo ele quem teria vendido Antonio, que era parte do dote da esposa, para Fortunato Mascarenhas José, por 500 mil-réis.

Os documentos também indicam que Maria, a jovem escravizada dada como garantia em 1842 entre Vicente Franco e Maria do Nascimento, seria vendida um ano depois, para Anna Aguida Cerqueira, por 400 mil-réis.

Os mesmos registros indicam que o capitão Antonio Augusto Guimarais – o mesmo homem que aparece na hipoteca da casa de Vicente Franco, em 1842 – teria negociado, um ano antes, um jovem escravizado de nome Faustino com Manoel Ferreira de Carvalho. A transação teria ocorrido por 120 mil-réis.

De acordo com os registros, um escravizado também de nome Faustino seria vendido, um ano depois, junto a um grande grupo de “mais de 20 pessoas escravizadas: homens, mulheres, idosos, crianças de 2 anos de idade, saudáveis e enfermos”, numa grande transação de 70 milhões de réis que negociou em uma tacada o engenho chamado de Lixa, seus pastos, cercas e pessoas escravizadas.

•                                    Mercado colonial girava à custa de escravizados

Um casal de quintos avós de Itamar Franco, Pedro Antonio da Fonseca e Joaquina Maria dos Prazeres, também teria sido dono de escravizados.

Em 1802, um inventário dos bens da dupla, que era de lavradores de tabaco e pecuaristas, contou 17 pessoas escravizadas, sendo doze homens e cinco mulheres, dos quais oito eram crianças.

Todos viviam na fazenda do Salgado, em São Pedro da Muritiba, parte do que é hoje o município baiano de Muritiba. Segundo os registros, era lá que vivia Inácio, identificado como crioulo, que trabalhava com “serviço da enxada” e “carreiro”, avaliado em 140 mil-réis; Domingos, identificado como de origem angola, que era vaqueiro, também era usado no “serviço da enxada” e “valia” 140 mil-réis, e Francisco, igualmente notado como angola, do “serviço da enxada” e “fumeiro”.

O levantamento foi feito pela dissertação de mestrado de 2015 de Ana Paula de Albuquerque, do Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A pesquisa se baseou em inventários, o rol de fazendas e lavradores do Recôncavo, uma lista de enroladores de tabaco de 1809 e documentos de representações, petições e pareceres.

Segundo o trabalho, a economia do Recôncavo baiano nos séculos 18 e 19 dependeu da mão de obra escrava, e os lucros que esse tipo de cultivo gerou acabaram potencializando o tráfico de pessoas. “O fumo, por sua vez, era a principal moeda de troca para a aquisição desses escravos […] o tabaco da Bahia, além de ter sido produzido para abastecer o mercado europeu, alcançou elevados níveis de exportação através do comércio com a Costa da Mina, pois serviu de incremento para o tráfico de escravos”, descreve.

O casal Pedro da Fonseca e Joaquina dos Prazeres teve como filha Maria Magdalena do Espírito Santo. Ela, por sua vez, foi mãe de Joaquim Antunes da Fonseca, pai de Amélia Pires Pedreira de Cerqueira Lima. Já Amélia se casou com Atabalipa Franco, bisavô do ex-presidente Itamar e filho do casal Vicente e Antônia Franco, que estariam envolvidos nas negociações de pessoas escravizadas em Feira de Santana.

 

•                                    Pessoas negras são maioria entre resgatados do trabalho escravo contemporâneo

Instituído em novembro de 2011, por meio da Lei Nº 12.519, o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra rememora a data do falecimento de Zumbi dos Palmares. Líder do Quilombo dos Palmares durante o período do Brasil colonial, Zumbi é hoje reconhecido como ícone da resistência negra à escravidão e pela prática da cultura africana no Brasil.

Contudo, na contramão das expectativas que a figura do líder suscita, o trabalho escravo não deixou de ser uma realidade no Brasil. Números atualizados registrados pela Campanha nacional permanente da CPT “De Olho Aberto para Não Virar Escravo” mostram que, em 2023, quase 3.500 pessoas foram encontradas em situação de trabalho escravo. Delas 3.288 foram resgatadas em ações coordenadas pelo Ministério do Trabalho.

Os dados da Campanha apontam ainda que, desde que se iniciou o registro, em 1995, até 2024, a pecuária tem sido  o setor de atividade com o maior número acumulado de casos identificados de trabalho escravo – 2.115, ao todo. Em seguida, figuram as lavouras – com 910 casos, incluindo entre outras culturas de grãos, de frutas, canaviais – e as carvoarias (501). Nos últimos 10 anos, o número de casos em lavouras passou a ultrapassar os da pecuária.

<><> Perfil dos trabalhadores

Trabalhadores negros, nordestinos e com baixa escolaridade são os principais entre os resgatados do trabalho análogo ao escravo. Nos últimos dez anos, mais de 34% das vítimas resgatadas de trabalho escravo não haviam completado o 5º ano e a faixa etária mais afetada foi de jovens homens de 18 a 24 anos. Além disso, pelo menos 53% do total de trabalhadores é da região Nordeste do país, segundo dados do Registro Nacional do Seguro-Desemprego analisados pela CPT.

Quando é traçado o perfil racial, entre os anos de 2016 e 2023, 82,0% das pessoas resgatadas são negras – que se autodeclaram pretas ou pardas. Nesse período, mais de 12 mil pessoas foram resgatadas do trabalho escravo no país. Dessas, 65,8% se declararam pardas, 16,8% pretas, 16,0% brancas, 1,4% indígenas e 0,4% como amarelas.

Na visão de Cecília Amália Cunha Santos, procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) em Araguaína (TO), esses números demonstram a herança colonialista do país e a reprodução da lógica escravocrata entre a elite brasileira.  “A gente não vive mais no sistema colonial, oficialmente, mas as ideias da colonialidade continuam nas nossas relações. Então a percepção de que as pessoas negras não são dotadas de dignidade por parte dos patrões e empregadores, ainda está entranhada nas nossas elites”, explica.

A procuradora destaca ainda a vulnerabilidade da população negra decorrente desse passado escravocrata e do sistema racista ainda existente. “Do mesmo jeito que as pessoas brancas têm um acúmulo de privilégios, as pessoas negras, ao longo dos anos, passam por situações sociais, acumuladas por gerações, de déficit de acesso a direitos básicos, que acabam colocando essas pessoas historicamente numa situação de vulnerabilidade, mais expostas ao trabalho escravo. São tanto fatores sociais, desse histórico de acúmulo de violações aos direitos, quanto essa percepção colonialista, que ‘coisifica’ as pessoas negras”.

<><> Trabalho escravo no ambiente doméstico

No recorte de gênero, os dados mostram que, entre 2016 e 2023, 10.349 homens foram resgatados do trabalho escravo, enquanto que as mulheres correspondem ao total de 972 vítimas. Deste último número, as mulheres negras representam a maior porcentagem de resgatadas – isto é, 765 pessoas ao todo, quase 80%.

Brígida Rocha, agente pastoral da CPT regional Maranhão e integrante da Campanha “De Olho Aberto para não Virar Escravo”, destaca a manutenção do trabalho escravo em ambiente doméstico, que acomete principalmente as mulheres negras. “Os resgates que já aconteceram são principalmente de pessoas negras, algumas idosas que não tiveram acesso à educação, não têm contato com a família, não criaram novos relacionamentos, não tiveram acesso à saúde, não tiveram direitos previdenciários respeitados, têm fraudes em seus nomes ou não têm documento civil organizado”, detalha.

“No caso das trabalhadoras escravizadas, além da questão racial, elas são também atravessadas pela questão de gênero e por serem vistas nesse lugar do trabalho de cuidado não remunerado”, evidencia Cecília. Ela também explica que esses casos de trabalho doméstico decorrem da extrema vulnerabilidade financeira de famílias marginalizadas, que oferecem o trabalho das filhas, ainda crianças, em troca de estudos e acolhimento – que nunca se concretizam e culminam em trabalhos compulsórios.

O caso de Sônia Maria de Jesus, encontrada em situação de trabalho escravo na residência do desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC), Jorge Luiz de Borba, exemplifica tantos outros casos de mulheres mantidas em situação de trabalho escravo doméstico. Resgatada pelo Grupo de Fiscalização coordenado pelo Ministério do Trabalho  em junho do ano passado, Sônia passou 40 dos seus 50 anos a serviço da família Borba.

Mulher negra e com profunda deficiência auditiva, Sônia nunca recebeu salário, assistência médica ou instrução formal. Além disso, ela sofreu violências físicas e vivia em situação degradante em um quarto na residência. Sônia foi tirada muito cedo da sua família biológica e mantida incomunicável durante todos esses anos.

Em setembro de 2023, com autorização do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Mauro Campbell, avalizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) André Mendonça, ela foi levada de volta à residência onde passou décadas cativa e onde permanece até hoje, e impedida de se relacionar com seus familiares. Em muitas histórias semelhantes, a defesa apresentada pelos exploradores tem sido a mesma: para negar qualquer relação de trabalho com a sua empregada, usam a narrativa de que essa mulher era “como filha da família”.

<><> A ação da CPT

Fundada em junho de 1975, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) surgiu da necessidade de denunciar a desigualdade e violência no campo no Brasil. A primeira denúncia de trabalho escravo foi realizada em outubro de 1971, por meio da carta pastoral “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”, escrita pelo bispo da prelazia de São Félix do Araguaia (MT), dom Pedro Casaldáliga, um dos fundadores da Pastoral.

Desde 1995, por meio da Campanha nacional “De Olho Aberto para Não Virar Escravo”, a CPT trabalha nas frentes de acolhimento e apoio às vítimas do trabalho escravo e busca de alternativas, na denúncia de empregadores que utilizam mão de obra escrava, além de monitorar e cooperar para o aprimoramento de políticas públicas visando a erradicar o trabalho escravo.

“A CPT participa do  fluxo de atendimento a vítimas do trabalho escravo, hoje formalizado em nível nacional, desde a acolhida aos trabalhadores e trabalhadoras, o registro de suas denúncias, as articulações para que ocorram as fiscalizações, a sistematização de dados e a elaboração de materiais para processos formativos e informativos. Nós conseguimos elevar essa capacidade de trabalhadores, trabalhadoras e da sociedade de refletirem sobre as causas culturais da escravidão e, também, de pensar nas estratégias de  combate, a exemplo do que a gente tem feito junto a alguns municípios com forte incidência do problema, por meio da Rede de Ação Integrada para Combater a Escravidão – o programa Raice”, conta Brígida.

Em abril deste ano, durante o lançamento da publicação “Conflitos no Campo Brasil 2023”, a Comissão Pastoral da Terra anunciou a ação de sustentabilidade “Chega de Escravidão”, de modo a levantar fundos para seguir realizando sua missão no apoio à autonomia dos povos e comunidades em seus territórios. Entre no site www.chegadeescravidao.org.br e saiba mais sobre como fazer parte desta ação.

 

Fonte: Por Bruno Fonseca, da Agencia Pública/CPT

 

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