quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Se a moda pega! Ruanda vai taxar igrejas e acusa pastores de enganarem fiéis

Proliferação de igrejas neopentecostais no país africano levou governo de Paul Kagame a acusar pastores de "espremerem dinheiro" de ruandeses mais pobres. Milhares de templos foram fechados e críticos denunciam repressão.

Todos os domingos em Kigali, a capital de Ruanda, pequena nação da África central, cristãos elegantemente vestidos vão às igrejas para assistir aos cultos, nos quais cantam, oram, ouvem sermões e fazem ofertas, principalmente em dinheiro.

A quantia arrecadada com essas ofertas costuma ser usada para pagar as despesas de funcionamento da igreja e os salários dos que para ela trabalham. Em Ruanda, igrejas não pagam impostos.

Porém, se os planos do governo forem aprovados, elas poderão ser obrigadas a pagarem impostos sobre as ofertas em dinheiro dos fiéis. O projeto de lei para isso já teria sido concluído pela agência encarregada de regulamentar as organizações religiosas, o Conselho de Governança de Ruanda (RBG), informou a imprensa local.

Segundo o censo de 2022 de Ruanda, mais de 90% da população do país se identifica como cristã. Entretanto, a proliferação de igrejas neopentecostais, que muitos críticos acusam de visar os pobres com a pregação da teologia da prosperidade, tem levado o governo do presidente Paul Kagame, que governa Ruanda com mão de ferro desde 1994, a agir contra as igrejas.

<><> Regular em vez de taxar?

A ativista e advogada Marie Louise Uwimana disse ser contra a taxação das ofertas e do dízimo, argumentando que esse dinheiro é usado para pagar as despesas da igreja, assim como obreiros e pastores. "Em vez de tributar as igrejas, o governo deveria criar regulamentações e leis para colocar esse setor na linha e evitar que alguns líderes religiosos possam extorquir fiéis inocentes e desavisados", afirma.

O RBG fechou quase 8 mil igrejas e mesquitas após um processo de avaliação, sob o argumento de que muitas não cumpriam os padrões de infraestrutura, como protocolos de segurança, e outras estariam operando ilegalmente.

<><> As igrejas estão lucrando com seus seguidores?

"Eles vão começar a taxar as igrejas, que não têm fins lucrativos, mas querem taxá-las porque acham que elas estão lucrando às custas das pessoas", comenta o jornalista político Ivan Mugisha. "Então o governo agora está tentando cobrar impostos de pessoas que exploram pessoas? Isso meio que não faz sentido."

Para Mugisha, a repressão às igrejas é mais uma medida autoritária do presidente Kagame. Segundo o jornalista, muitos líderes religiosos estão insatisfeitos com a decisão. "Alguns deles que expressaram sua opinião foram mandados se calar. Então, isso está acontecendo porque todos se calaram, porque você sabe que, se disser algo, sua igreja estará em apuros."

<><> Os motivos de Kagame

Kagame há muito tenta regulamentar as igrejas, acusando alguns pastores de "espremerem" fiéis pobres "até o último centavo". "Para dizer a verdade, essas igrejas que aparecem por todo lado existem apenas para espremer até o último centavo de ruandeses pobres, enquanto os donos delas enriquecem", disse Kagame.

Então a ação do governo de Ruanda contra as igrejas é justificada? "De certa forma, o governo ultrapassou uma fronteira quando se trata de liberdade de culto e expressão", diz Mugisha. "Mas sempre há uma justificativa para tudo, por exemplo [o governo] diz que as igrejas estão controlando e confundindo pessoas."

O governo de Ruanda também quer que os líderes religiosos obtenham pelo menos um diploma de bacharel antes de serem autorizados a subir ao púlpito.

<><> Vai funcionar?

"A ideia de tributar as igrejas não funcionará", comenta o estudante universitário Charles Kamanzi. "O governo pretende coibir a extorsão por esses líderes de igrejas e igrejas que estão recebendo muito dinheiro dessas pessoas. A ideia pode ser boa, mas como ela será implementada?", questiona.

Ele argumentou que outras igrejas, como a Católica, a protestante e demais igrejas tradicionais, têm escolas, hospitais e outras instituições de interesse público que administram. "Elas também serão tributadas? Acho que não. Isso torna a tributação desigual. Então quem será tributado? É muito difícil de entender", disse o jovem de 24 anos, acrescentando que a ideia de taxar mostra o fracasso do governo em regulamentar as igrejas.

"Quando as pessoas se unem a grupos religiosos, não se trata apenas de manipulação, mas de sua fé", diz Mugisha, enfatizando que atacar a fé das pessoas "significa restringir uma liberdade muito especial que elas têm".

 

•                                    Ruanda busca reconciliação 30 anos após genocídio

Ruanda lembra os 30 anos do genocídio que chocou o mundo. Mais de 1 milhão de pessoas – a maioria da minoria étnica tutsi, mas também moderados hutus que tentaram proteger os tutsis – foram sistematicamente assassinadas por extremistas hutus durante um massacre que durou 100 dias.

"Nunca esqueceremos das vítimas desse genocídio", disse o chefe da ONU, António Guterres, em comunicado. "Tampouco esqueceremos da bravura e da resiliência daqueles que sobreviveram".

O tutsi Freddy Mutanguha é um dos sobreviventes. Ele tinha 18 anos na época do genocídio e estava de férias escolares em sua aldeia Mushubati, na cidade de Kibuye, a 135 quilômetros da capital de Ruanda, Kigali.

Extremistas hutus estavam caçando jovens suspeitos de se simpatizarem com a Frente Partidária de Ruanda (RFP), um grupo rebelde de maioria tutsi liderado por Paul Kagame, que viria a se tornar o presidente de Ruanda.

Temendo o pior para o filho, a mãe de Freddy o aconselhou a se esconder na casa da família de um amigo hutu. Enquanto Freddy estava seguro, sua família subornou um grupo de extremistas hutus com dinheiro e álcool para se manter viva.

Porém, em 14 de abril, a família ficou sem dinheiro e os extremistas assassinaram brutalmente os pais de Freddy e quatro de suas irmãs. Apenas sua irmã Rosette conseguiu escapar. "Eu podia ouvir os gritos de minhas irmãs enquanto eram mortas brutalmente", conta Freddy à DW. "Elas imploraram aos agressores que poupassem suas vidas, prometendo que nunca mais seriam tutsis, mas foi em vão."

"Eles jogaram minhas irmãs em um poço próximo, algumas ainda estavam vivas, e acabaram de matá-las atirando pedras. Meus pais foram mortos a facadas."

Freddy permaneceu escondido, pois os assassinos continuaram a procurá-lo. "Seria suicídio se eu saísse do meu esconderijo", relata, acrescentando que suas irmãs mais novas tinham apenas 4, 6, 11 e 13 anos quando foram mortas.

Além de perder seus pais e quatro irmãs, mais de 80 pessoas da família de Freddy foram assassinadas no genocídio.

Alguns dos assassinos que mataram os parentes de Freddy foram libertados em um acordo que permitiu que os criminosos cumprissem metade de suas sentenças em troca de informações vitais para os promotores sobre os suspeitos e o local onde as vítimas foram abandonadas. Os líderes dos massacres permanecem na prisão.

Freddy, que atuou como ex-vice-presidente do IBUKA, um grupo de sobreviventes do genocídio de Ruanda, é agora diretor do Memorial do Genocídio de Kigali, onde estão enterradas cerca de 250 mil vítimas deste período.

<><> ura emocional: um processo difícil para os sobreviventes

Apesar dos esforços de Ruanda para promover a reconciliação entre os sobreviventes e os autores do massacre, a jornada para a cura emocional tem sido um caminho tortuoso para sobreviventes como Freddy e sua irmã Rosette.

"Os agressores não costumam contar toda a verdade, o que é um retrocesso nos esforços de reconciliação, além de ser perturbador para os sobreviventes", afirma Freddy, acrescentando que um dos assassinos de sua família ocultou muitas informações. "Ele foi libertado depois de cumprir 15 dos 25 anos a que foi condenado apenas pelas poucas informações que compartilhou com os promotores", lamenta. "Temos que conviver com isso, afinal nossos entes queridos nunca mais voltarão."

No entanto, Freddy reconhece que Ruanda fez um progresso significativo na reconciliação. Essa constatação é também compartilhada por Phil Clark, professor de política internacional na Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS) de Londres, que pesquisa os acontecimentos em Ruanda nos últimos 20 anos.

"Ruanda fez enormes progressos em termos de reconciliação pós-genocídio, se considerarmos que milhares de agressores condenados voltaram a viver atualmente nas mesmas comunidades onde cometeram os crimes, lado a lado com sobreviventes do genocídio", afirma Clark. "A maioria dessas comunidades é pacífica, estável e produtiva, e o progresso que Ruanda fez é evidente".

"Muitos analistas previram que Ruanda passaria por novos ciclos de violência pós-genocídio, como é o caso da maioria dos países vizinhos", acrescenta o especialista.

<><> Redes sociais dificultam a reconciliação

Os sobreviventes tiveram de superar mágoas e trabalhar junto com os agressores, relata Freddy. No entanto, a diáspora continua sendo o principal obstáculo para a unidade dos ruandeses.

"Aqueles que moram em outros países são notórios por espalharem informações polarizadoras nas redes sociais e para suas famílias, o que dificulta os esforços de reconciliação, especialmente entre os jovens que sabem pouco sobre o que aconteceu há 30 anos", observa Freddy.

Clark também concorda que o maior desafio para a reconciliação agora está na diáspora ruandesa, que não participou dos importantes processos de reconciliação em sua terra natal. "As dinâmicas interétnicas mais destrutivas ocorrem atualmente entre ruandeses que vivem na América do Norte, Europa Ocidental e outras partes da África", diz. "A próxima fase crucial da reconciliação precisa acontecer nessas comunidades fora de Ruanda."

<><> Repatriação dos refugiados de Ruanda

Victoire Ingabire, a crítica mais proeminente do presidente Paul Kagame, diz que a reconciliação ainda é um sonho distante e que, para alcançá-la, todos os refugiados ruandeses ao redor do mundo precisam ser repatriados.

"Ainda há muitos refugiados ruandeses, especialmente nos países vizinhos, que devem ser repatriados para que uma reconciliação genuína aconteça", disse Ingabire em uma mensagem de Ano Novo. "Vivemos em paz, mas a reconciliação ainda é distante e há uma profunda desconfiança entre os ruandeses".

"O governo de Ruanda também está preocupado com os refugiados dos países vizinhos que decidiram pegar em armas e lutar contra ele. Esse problema nunca terá fim a menos que nós, que estamos dentro do país, nos unamos e nos reconciliemos primeiro", concluiu Ingabire, que se referia aos rebeldes das Forças Democráticas para a Libertação de Ruanda (FDLR), um grupo rebelde de etnia hutu.

Há muito tempo, Kagame considera as FDLR uma ameaça existencial à nação. O grupo é classificado como uma organização terrorista pelos Estados Unidos. A existência contínua da FDLR, que supostamente está sendo tolerada pelo governo do país vizinho, Congo, levou a acusações de que a Ruanda apoia grupos rebeldes adversários, como o movimento M23. O governo do país nega essas acusações.

O recente aumento dos combates criou sérias tensões entre Kigali e Kinshasa – incluindo ameaças de guerra por parte do presidente congolês, Felix Tshisekedi –  o que sugere que as lacunas no processo de reconciliação representam uma séria ameaça à segurança de toda a região, mesmo 30 anos após o genocídio.

<><> Reconstruindo vidas, restaurando a esperança

Houve uma infinidade de esforços – por parte do governo, da sociedade civil e dos cidadãos comuns – para superar o genocídio, mas nem todos fizeram as mudanças necessárias para uma reaproximação.

Clubes de diálogo semanais e associações comunitárias, onde a população discute conflitos passados e presentes, têm sido essenciais para ajudar os ruandeses a se curarem e avançarem de forma positiva.

A situação é muito mais positiva hoje do que há cinco ou dez anos, de acordo com Clark, que acrescenta: "mas a maioria dos ruandeses com quem falo diz que ainda há um longo caminho a percorrer".

Freddy indica que é importante que o genocídio de Ruanda seja lembrado em todo o mundo. "Recordar o que aconteceu em Ruanda há 30 anos não deve ser algo apenas para os tutsis que sobreviveram ao genocídio, mas também deve servir para que o mundo inteiro aprenda sobre esse crime contra a humanidade", conclui Freddy.

 

Fonte: DW Brasil

 

Nenhum comentário: