VAT: Uma
centelha no mundo do trabalho
Na última semana a bandeira pelo fim da jornada de trabalho 6×1
retornou à agenda pública brasileira. A pauta, que tomou muito setores da
esquerda de surpresa, tem atraído milhares de trabalhadores e trabalhadoras que
veem suas vidas sufocadas pela jornada extenuante e por condições de trabalho
cada vez mais precárias. Não são poucos os relatos nas redes sociais de
sobrecarga e assédio no âmbito de trabalho e só a petição pública feita pelo
Movimento Vida Além do Trabalho (VAT) já conta com mais de 2 milhões de
assinaturas.
A forte adesão à proposta de acabar a jornada 6×1 e reduzir a
jornada é um grito de socorro contra a subordinação do tempo da vida somente ao
trabalho, com escalas que desorganizam a vida, com baixos rendimentos e
ausência de oportunidades de trabalho. O grito é tão forte que sensibiliza
grande parte da sociedade, especialmente, a juventude que busca ter horizontes
mais promissores para a sua vida. A vida não é só trabalho. Pelo contrário, o
trabalho precisa proporcionar as condições para as pessoas viverem ela em todas
as suas dimensões. Mesmo quem trabalha na jornada “padrão” 5×2 está cansado o
suficiente para saber que deve ser desumano trabalhar seis dias e folgar um,
que nem sempre coincide com o domingo. O fim de semana de dois dias é curto e
passa rápido – mal se descansou e o final de domingo se apresenta angustiante
com o retorno ao trabalho na manhã seguinte. Na 6×1 não há fim de semana, há um
respiro breve entre outros seis dias de trabalho.
• As
pessoas querem viver além do trabalho
A onda de protestos na sociedade contra a jornada 6×1 expressa
um descontentamento mais amplo das pessoas com o mundo do trabalho. O
sentimento é que se trabalha muito, se recebe insatisfatoriamente e resta pouco
tempo para o descanso, o ócio, o lazer, a sociabilidade com a família e os
amigos, o estudo, o cuidado com a saúde física e mental, a vida sexual e outras
tantas dimensões que compõem o ser humano para além do trabalho. Ecoa-se o
grito desesperado de quem percebe que sua vida está toda em função do trabalho
e da reprodução social, ao passo que as coisas que importam são postas em
segundo plano. Não há dúvida que o trabalho é um eixo estruturante da vida
social. O problema não é trabalhar, mas somente trabalhar e entrar em uma
dinâmica de luta pela sobrevivência que não lhe permite viver. Vale lembrar que
a média salarial no Brasil, ainda que tenha tido um crescimento anual de 4%
entre 2023 e 24, é de R$ 3.222,00, segundo dados da PNAD (abril, 2024), e que
53 milhões de brasileiros necessitam uma ocupação ou uma ocupação melhor,
somando desocupados, desalentados, pessoas sem condições de trabalhar mas que
gostariam, trabalhadores sem carteira assinada ou que estão em busca de
estratégias de sobrevivência. Ainda, possuir um trabalho formal não é garantia
de que se tenha um trabalho não precário.
A juventude tem encontrado um mundo do trabalho que lhe parece
insuportável, para o qual está levantando sua voz e dizendo: isso não é vida.
Ainda que a atenção no último período tenha se dado aos chamados “jovens
sem-sem” (sem estudo e sem trabalho), o que corresponde a 25% dos jovens
brasileiros, há hoje 70% de jovens inseridos no mercado de trabalho. Não à toa
o movimento VAT é encabeçado por jovens, a exemplo do seu principal expoente
Rick Azevedo. A promessa de que a educação lhes salvaria tem resultado em
frustração para muitos, apesar de ter níveis de escolaridade superiores aos de
seus pais não tem garantido uma vida melhor. Aproximadamente 15% dos jovens que
se formaram no ensino superior conseguem emprego na sua área de formação (NUBE,
2020). Há ainda uma grande frustração com o que se encontra no mercado de
trabalho, que não somente é incapaz de proporcionar recompensas financeiras
satisfatórias como oferece ocupações em que as pessoas não se realizam.
Nesse sentido, mais que uma crítica pontual ao regime de jornada
trabalho seis por um, há uma manifestação social latente sobre as relações com
o trabalho e as condições em que se trabalha. O nível de adoecimento psíquico
decorrente do trabalho é alarmante e atinge toda a classe trabalhadora. Só em
2022, segundo o INSS, mais de 209 mil pessoas foram afastadas do trabalho por
transtornos mentais em nosso país. Reproduz-se uma sociedade adoentada, com
jornadas exaustivas, assédios de diferentes natureza, pressões por resultados
crescentes, insegurança financeira e a convivência com o medo permanente de
perder o emprego. Para a OIT (2022), houve um aumento significativo no número
de pessoas com algum problema de saúde mental, com um total de 13% de pessoas
em 2019 em nível mundial e, estima-se, que 12 bilhões de dias de trabalho são
perdidos devido a esse tipo de problema, custando ao redor de um trilhão de
dólares à economia. Há uma relação direta entre jornadas extenuantes e
adoecimento físico e mental do trabalhador.
Quanto à juventude, segundo o Dossiê da Fiocruz de 2024,
Panorama da situação de saúde de jovens brasileiros, entre 2016 e 2022 ,
identificou-se que a taxa de acidente de trabalho foi maior entre os jovens em
comparação com as demais faixas etárias – 219,78 casos para jovens de 20 a 24
anos, 209,44 no caso de jovens de 25 a 29 anos, ambos calculados por 100.000
habitantes -, indicando uma maior exposição dos jovens ao acidente de trabalho,
tendo como causa primeira as circunstâncias relativas às condições de trabalho.
Os grupos profissionais mais notificados entre os jovens foram os trabalhadores
da produção de bens e serviços industriais e os inseridos nas atividades de
serviço, vendedores do comércio em lojas e mercados. Além disso, na última
Conferência da Juventude em 2023, o tema da saúde mental foi o mais lembrado,
recebendo 41% das propostas para resolução do problema. Não à toa, já que 8 a
cada 10 jovens entre 15 e 29 anos apresentaram algum transtorno de saúde mental
em 2022. Para a Fiocruz, o número de notificações de jovens com transtorno
mental relativo ao trabalho é maior entre os jovens de 25 a 29 anos com
prevalência do sexo feminino. As principais causas são estresse pós-traumático,
transtornos de adaptação, transtorno misto ansioso e depressivo e ansiedade
generalizada. Em síntese, é um quadro assustador para o futuro do país.
A jornada 6×1 é apenas parte do problema. Não obstante, seu
enfrentamento tem o potencial de mobilizar pautas historicamente centrais das
lutas dos movimentos dos trabalhadores. Revogar a jornada 6×1 parece um passo
importante na direção da redução da jornada de trabalho em geral – nunca é
demais lembrar que as 44 horas por semana (acrescidas das horas extras) foram
instituídas há 36 anos na Constituição Federal de 1988 e que o Brasil está
bastante defasado frente experiências bem-sucedidas de implementação de
jornadas laborais abaixo das 40 horas semanais em diversos países, tais como as
experiências recentes de instituição de jornadas de quatro dias na Islândia, na
Alemanha, na França, na Inglaterra, na Bélgica, nos Emirados Árabes, entre
outros1.
Vale também lembrar que uma parte significativa dos
trabalhadores brasileiros não tem acesso aos direitos do trabalho, muitas vezes
trabalhando numa escala 7×0, isto é, sete dias de trabalho sem descanso, a
exemplo de muitos trabalhadores informais, por conta própria e de empresas de
plataformas digitais – atualmente cerca de 40% dos trabalhadores estão na
informalidade, traço histórico da formação do nosso mercado de trabalho. Com um
excedente estrutural de força de trabalho que se manteve durante o processo de
industrialização e da expansão do assalariamento, o nosso passado escravocrata
legou à população negra, especialmente às mulheres, os trabalhos mais
precários, com os piores salários e as piores condições laborais. Em um mercado
de trabalho heterogêneo e marcado pela desigualdade, a informalidade e a
precariedade não são específicas de um ou outro momento, mas marcas estruturais
que se acentuaram no período neoliberal.
• O
falacioso argumento econômico
Os principais argumentos daqueles que se posicionam
contrariamente ao fim da jornada na escala 6×1 são de natureza econômica – o
que por si só é um fato interessante, pois no campo da sociabilidade, da
autonomia humana e da saúde física e mental não há margem para dúvida: a escala
6×1 é péssima. A síntese do argumento econômico é que eliminar a possibilidade
de escala 6×1 teria por efeito a redução de empregos e o aumento de custos para
os negócios e, portanto, aumento de preços para os consumidores e prejuízo para
as empresas. Os defensores da manutenção atual fazem “terrorismo” ao dizer que
a simples aprovação da proposta seria ruim para o conjunto da economia, com
perda de competitividade (e falência) das empresas, gerando aumento do
desemprego.
Trata-se de um argumento recorrente, utilizado em outros
momentos históricos para alarmar a sociedade que a introdução de um direito ou
proteção social quebraria a economia e o país – foi assim quando da
implementação do 13º salário ou do salário mínimo. Para exemplificar, se o
governo brasileiro tivesse ouvido os economistas hegemônicos (neoclássicos), a
grande mídia e os setores empresariais, não teria instituído a política de
valorização do salário mínimo em 2004 em diante. Os argumentos hegemônicos apontavam
que a elevação do salário mínimo geraria inflação, desemprego, informalidade e
um imenso déficit nas contas públicas. Todos sabemos que os resultados não
foram os previstos, pelo contrário, é incontestável que o salário mínimo teve
efeitos muito positivos sobre a economia e uma melhora do bem estar de muita
gente.
O fato é que o custo do trabalho é baixo no Brasil e não
representa uma ameaça à competitividade das empresas. Entre 2012 e 2019, o
custo unitário do trabalho na indústria teve tendência de queda. Em 2019 a
queda foi de 3,6%, sendo o terceiro país com maior redução, atrás apenas da
Argentina e França. Segundo a Confederação das Indústrias (2020), o principal
fator para a queda do custo do trabalho foi o aumento da produtividade, cujo
crescimento médio foi de 2,9%, somado à queda do salário real em 1,3%.
Na comparação do salário mínimo no plano internacional, segundo
levantamento da OCDE em 2021, considerando seus países integrantes mais Brasil
e Rússia, o valor da hora trabalhada foi de US$5,2 para o Brasil, deixando o
país na 30° posição, a frente somente do México, cujo valor/hora trabalho é de
US$ 3,3. Em primeiro lugar com o melhor valor/hora trabalho está Luxemburgo com
US$27,7, seguido de Holanda com US$26,2 e Austrália com US$25,2.
Por outro lado, o Brasil possui uma das mais altas jornadas
anuais do mundo. Segundo levantamento da OCDE (2022), o Brasil ocupa a 4°
posição de 46 países considerados, com uma média anual de 1936 horas
trabalhadas. Em primeiro lugar está o México com 2128 horas, seguido de Costa
Rica com 2073 horas e, em terceiro lugar, Colômbia com 1964 horas anuais.
Recorde-se que, durante o discurso de posse da presidenta do México, Claudia
Scheinbaum, em outubro de 2024, a nova mandatária apontou como promessa do governo
a redução da jornada de trabalho de 48 horas semanais para 40 horas. Já os
países com a menor média anual são Alemanha em primeiro lugar com 1349 horas
anuais, seguido de Dinamarca com 1363 horas e Luxemburgo com 1382 horas.
O importante é enfatizar que a redução da jornada de trabalho é
uma demanda elementar dos trabalhadores no capitalismo, uma vez que os ganhos
de produtividade decorrentes dos avanços tecnológicos, de processos e de gestão
permitem se produzir cada vez mais com menos trabalho. Reduzir a jornada de
trabalho com preservação dos salários é uma forma de distribuir esses ganhos de
produtividade construídos pela coletividade.
• O
fim da escala 6×1 e a adequação dos negócios à nova realidade
A benéfica extinção da jornada 6×1 produziria efeitos modestos e
diferenciados entre as empresas, conforme o setor de atividade, a estrutura de
mercado e o porte do negócio. Em todo caso, as empresas se adequariam à nova
realidade e essa excrescência que pesa sobre os ombros de milhões de
trabalhadores deixaria de ser prevista na lei.
Para a economia como um todo, nada mudaria significativamente.
Embora a alteração dos custos das empresas e o repasse para os preços dependam
de muitos fatores, qualquer impacto seria pontual – once and for all, isto é,
caso ocorra um aumento de preços em determinados bens e serviço, esse aumento
não se repetirá, pois no momento seguinte a legislação será a mesma e,
portanto, os custos também.
A elevação dos custos somente ocorreria simultaneamente ao
aumento do nível de emprego, na medida em que os negócios que utilizam a escala
6×1 decidam contratar novos trabalhadores para suprir a ausência de força de
trabalho ocasionada pela transição para outras escalas, como a 5×2 ou até mesmo
a 4×3. Vale notar que, se isso acontecer, haveria um duplo benefício social:
menos trabalhadores em jornadas degradantes e o aumento dos postos de trabalho.
Portanto, o aumento de custos, por um lado, poderia produzir efeitos
compensatórios na economia como um todo em virtude do aumento da massa salarial
– mais gente trabalhando e proporcionando maior dinamismo econômico.
Como indicado, o repasse de custos para os preços depende de
muitos fatores e pode variar significativamente de acordo com o segmento de
atividade, a concorrência e a estrutura de mercado. Em mercados muito
competitivos, como bares e restaurantes em grandes centros urbanos, o movimento
dos preços deverá acompanhar a dinâmica de acomodação das novas escalas de
trabalho. Certamente uma parte dos estabelecimentos buscará absorver a mudança
legal sem novas contratações de trabalhadores, sem que os custos sejam impactados
nesse caso. E, outra parte, que considera lucrativo manter o mesmo padrão de
funcionamento do estabelecimento, poderá ampliar as vagas, incorrendo em algum
aumento de custos, mas que se justificaria pelo volume de vendas – caso
contrário não haveria contratação adicional. Ao mesmo tempo, com mais tempo
livre para as pessoas, as atividades de lazer e cultura podem aumentar, o que
traria mais clientes. Por outro lado, em mercados dominados por redes de
grandes empresas, como os supermercados e farmácias, os novos custos associados
à eliminação da jornada 6×1 podem ser absorvidos por esses negócios, de modo a
produzir diferentes combinações entre redução marginal da taxa de lucro e
aumento marginal nos preços dos bens e serviços vendidos.
Esses seriam os efeitos econômicos mais gerais que poderiam ser
esperados com o fim da jornada na escala 6×1. Mas a realidade pode variar entre
indústria, comércio e serviço; entre pequena, média e grande empresa. A esse
respeito, faremos alguns apontamentos, destacando que a mudança é benéfica em
todos os sentidos para os trabalhadores e trabalhadoras, e em nada impactaria
negativamente a vida social – ao contrário. Assim como pode ser benéfica para
economia, com menor nível de absenteísmo, adoecimentos, ganhos de
produtividade, com trabalhadores satisfeitos e descansados, maior nível de
atividade, pois pode ampliar o consumo.
Falta examinar agora quais seriam as consequências reais para os
empregadores. E, muito mais importante, como seria possível construir, a partir
da luta protagonizada pelo movimento VAT, uma agenda contemporânea e abrangente
para recuperação geral dos direitos do Trabalho. É o que veremos num próximo
texto.
1 Como mostra Dal Rosso et al. no livro O futuro é a redução da
jornada de trabalho (2022, p. 26): “[…] algumas experiências começam a chamar
atenção, tais como na Finlândia (que está experimentando uma jornada de quatro
dias por semana e há uma proposta da atual primeira-ministra de instituir no
país uma jornada de seis horas diárias); experimentos, ainda que localizados,
de redução da jornada de trabalho estão em curso na Bélgica, na Escócia, na
Islândia, na Espanha, no Japão, nos Emirados Árabes, entre outros. Na Coréia do
Sul, ainda que a jornada permaneça longa, houve uma redução de 6,3 horas por
mês a partir de 2019. Na mesma perspectiva, a agenda da redução da jornada de
trabalho ganhou visibilidade com a posição do IG Metal da Alemanha a favor da Jornada
de Trabalho de 32 horas; o movimento “4dayworkweek” que iniciou na Nova
Zelândia e rapidamente teve adesão de empresas nos EUA, Grã-Bretanha, Irlanda e
logo depois em muitos outros países, inclusive no Brasil; na Grã- Bretanha, em
2019, o líder do Partido Trabalhista se posicionou favorável a semana de quatro
dias sem perdas de salários e, como último destaque, em outubro de 2020, o
Comitê Executivo da Confederação Europeia de Sindicatos (CES) sugeriu uma
agenda coordenada de negociações para a redução da semana de trabalho sem
redução dos salários e medidas para o controle do tempo de trabalho, qualidade
de vida no trabalho e garantia de renda em caso de doença”..
Fonte: Por Ezequiela Scapini, José Dari Krein, Marcelo Manzano e
Pietro Borsari, em Outras Palavras
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