Paulo
Kliass: A falácia do equilíbrio fiscal
As
pressões exercidas pelas forças vinculadas ao sistema financeiro sobre o
conjunto da sociedade são gigantescas. Trata-se de um movimento já bastante
conhecido por nós que opera de forma bastante articulada entre os
representantes diretos da banca privada, os grandes meios de comunicação e uma
parcela nada confiável da alta tecnocracia da administração federal. Essa forma
deveras peculiar de articulação das relações incestuosas entre o capital
privado e o setor público ganha ainda maior relevância quando se trata de
definir questões estratégicas e de longo prazo para o país.
Na
administração do rame-rame da política econômica, seja no seu dia a dia ou no
semana a semana, os mecanismos de influenciar decisões no âmbito do aparelho de
Estado são recorrentes. Um dos casos mais emblemáticos e “pedagógicos” é o do
Copom e as suas decisões a respeito da política monetária. O Banco Central (BC)
utiliza para suas projeções os resultados da pesquisa Focus, realizada
semanalmente pela instituição. Trata-se de uma consulta formal encaminhada a um
grupo ultra seleto e composto apenas por 170 indivíduos, todos ligados a bancos
e demais instituições do universo do financismo. A partir de tais respostas,
forma-se aquilo que a grande imprensa depois transmite como sendo a opinião do
“mercado” a respeito de uma série de variáveis, inclusive o patamar da Selic
para as reuniões do Copom. E o colegiado tem confirmado de forma sistemática
tal desejo da banca privada.
Na
conjuntura mais atual, a estratégia deste pessoal tem se voltado para a
destruição de algumas conquistas que continuam preservadas no interior de nossa
Constituição. Trata-se de dar continuidade à eliminação de setores fundamentais
que o Estado brasileiro ainda mantém para oferecer serviços públicos
relevantes, a exemplo de educação, assistência social, saúde e previdência
social. Refiro-me à ampla campanha que os setores mais conservadores estão
orquestrando nos espaços de comunicação para que sejam eliminados os pisos
constitucionais para saúde e educação, além da desvinculação dos benefícios
previdenciários e assistenciais em relação ao salário mínimo.
• Haddad
envolve Lula na armadilha do financismo
Na
verdade, trata-se de um cenário que vem sendo insistentemente alertado pelos
economistas e analistas do campo progressista desde o primeiro dia do governo
do terceiro mandato do presidente Lula. O fato é que o ministro da Fazenda vem,
desde então, se dedicando de forma exaustiva à defesa de um programa rígido de
austeridade na condução das contas públicas. Assim, parece ter convencido o seu
chefe a respeito da necessidade do modelo contido no Novo Arcabouço Fiscal
(NAF). Ao encaminhar o Projeto que se transformou na Lei Complementar nº 200/23,
Haddad criou uma armadilha para o governo.
Afinal,
como não cansamos de advertir ao longo de todos estes meses, o NAF contém uma
bomba de efeito retardado, que implica a retirada dos pisos mínimos acima
mencionados e o recuo na política de valorização real do salário mínimo. Como
havíamos chamado a atenção, dificilmente o governo conseguiria aprovar medidas
contendo aumento de receita para os setores do topo da nossa pirâmide da
desigualdade. Assim, a única alternativa seguiria sendo as medidas ao estilo e
gosto de Paulo Guedes – a recorrente penalização dos mais pobres. Isso porque o
espírito austericida do teto de Gastos de 2016 se mantém no NAF: as despesas
estão proibidas de cresceram a mais de 70% do ritmo de elevação das receitas.
Some-se
a tal restrição bastante draconiana outra armadilha autoimposta que Haddad
convenceu Lula a adotar como lema de seu governo. Trata-se da injustificável
meta de “zerar o déficit primário” neste exercício orçamentário e nos próximos.
Com isso, segue intocável a retirada dos gastos com juros da dívida pública de
qualquer esforço de redução de despesas. Como pela própria definição
metodológica, “primário” é sinônimo de “não financeiro”, os R$ 855 bilhões
despendidos ao longo dos últimos 12 meses para o pagamento de juros passam ao
largo de qualquer tipo de corte, limite ou contingenciamento.
• As reações
ao pacote de austeridade
Haddad
parece ter se sentido à vontade para seguir avançando na pauta da austeridade e
foi antecipando algumas propostas na linha daquilo que há muito tempo defende a
intelligentsia da Faria Lima. Em suma, trata-se de focar o ajuste em cima das
despesas voltadas à grande maioria da população, sem nenhuma medida que
contemplasse a participação do grande capital e dos endinheirados em algum
sacrifício para que o tal “equilíbrio” fiscal fosse alcançado. À medida que a
perversidade das sugestões ia ganhando forma, intelectuais, dirigentes
políticos e até mesmo ministros passaram a questionar publicamente tal viés do
ajuste. O movimento social também começou a se manifestar de forma mais
contundente, a ponto de articular a divulgação de um documento duro contra o
ajuste de Haddad, contendo a assinatura dos partidos da base aliada e mesmo de
entidades que apoiam o governo.
Ao
que tudo indica, Lula percebeu os riscos envolvidos em seguir a rota sugerida
por seu auxiliar. Apesar do avanço da pauta da austeridade em razão da
passividade adotada pelo Chefe do Executivo até o momento, o fato é que ainda
existem alternativas para fugir da sanha austericida contra os mais pobres e
contra os direitos sociais. A entrevista do Presidente à RedeTV pode ter sido
um ponto de virada mais efetivo, uma vez que ele adotou um discurso mais duro
contra o “mercado” e sinalizou que não aceitaria um pacote apenas contendo
cortes nos benefícios dirigidos aos mais necessitados. Disse ele:
(…)
“Eu vejo o mercado [o mercado financeiro] falar bobagem todo dia, não acredite
nisso, eu já venci eles e vou vencer outra vez” (…)
Outro
aspecto relevante refere-se à própria falácia contida na ideia de equilíbrio
fiscal contida no NAF, bem como no discurso de Haddad e do povo da finança.
Afinal, ainda que o governo fosse exitoso na aprovação de tais medidas
austericidas, o fato concreto é que não existe equilíbrio fiscal algum. Mesmo
que a meta de zerar o déficit primário fosse alcançada (sabe-se lá a que custo
econômico, social, político e eleitoral!), as contas do Tesouro Nacional
seguiriam sendo deficitárias. Isso pelo simples fato de que não se pode isolar
as despesas financeiras das demais. Ainda que a malandragem metodológica se
utilize do artifício do adjetivo “primário” para não contabilizar os gastos com
juros, em termos econômicos estes valores saem das contas do governo federal e
impactam da mesma maneira que as demais rubricas, das quais os financistas
exigem cortes urgentes. Aliás, o próprio reconheceu na referida entrevista:
(…)
“não tem problema se o governo tiver que fazer uma dívida para construir um
ativo novo” (…)
Assim,
não existe o mundo da fantasia do tal do equilíbrio fiscal. O governo federal
seguiria sendo deficitário do mesmo modo e isso não significaria o fim do
mundo. Aliás, esse é o que ocorre na grande maioria dos países do chamado
capitalismo desenvolvido e também é o que tem ocorrido de forma sistemática no
Brasil ao longo da última década. Isso porque, ao contrário do que tentam nos
enganar os representantes do financismo, não se pode tratar as finanças
públicas da mesma forma como se analisa a economia de um indivíduo, de uma
família ou de uma empresa. Um Estado como o nosso é soberano e tem mais de 95%
de sua dívida pública denominada em moeda nacional. Pode eventualmente gastar
mais do que arrecada em alguns exercícios e isso não significa ingressar na
antessala da catástrofe social e econômica.
• Lula parece
ter se dado conta da encrenca
Existem
várias alternativas para escapar da armadilha imposta pelo sistema financeiro
ao governo, com a anuência de Haddad e os dirigentes da área econômica do
governo. O governo pode elevar suas receitas por meio de maior rigor na
fiscalização e pela redução significativa das benesses concedidas ao grande
capital por meio das desonerações e isenções generalizadas. O governo pode
acabar com o escândalo da isenção e lucros e dividendos da noite para o dia,
por meio de uma simples Medida Provisória. E pode implementar a cobrança de
Imposto de Exportação sobre as commodities sem necessidade de lei alguma, pois
isto já está previsto na própria legislação.
Por
outro lado, o governo pode adequar a atual meta da inflação à realidade e
propor aos ministros que compõem o Conselho Monetário Nacional (Fazenda e
Planejamento) que flexibilizem a rigidez dos atuais 3%. Com isso, fica reduzida
a base de argumentação dos falcões a exigirem maior rigor no patamar da Selic
estratosférica. Isso reduziria a carga de juros a ser prevista no Orçamento da
União.
Enfim,
soluções não faltam. Basta Lula oferecer vontade política na manutenção de seu
programa de governo e a busca da mobilização popular em torno da reorientação
em direção da rota desenvolvimentista. Se o financismo faz barulho, pressiona e
chantageia, cabe aos setores populares também lançarem esse debate na sociedade
e mostrar que – sim! – existem alternativas ao receituário neoliberal da
ortodoxia conservadora.
¨
Haddad e sua tesoura
incongruente. Por Paulo Kliass
O
grande debate proposto pelos representantes do financismo em nosso país se
resume em concentrar a recomendação aos responsáveis pela política econômica
para que coloquem em prática a receita da tesoura. Trata-se da conhecida
lenga-lenga de que os males do Brasil são os gastos públicos considerados
excessivos, com a consequência “lógica” de que seria preciso cortar, cortar e
cortar. Essa agenda polêmica e destrutiva foi comprada em sua essência pela
alta tecnocracia encastelada nos espaços estratégicos da administração pública
federal, em especial aqueles voltados às decisões de política econômica ao
longo dos sucessivos governos.
Assim,
não é por mero acaso que assistimos, todos muito surpresos e indignados, a um
discurso uníssono saindo da boca dos endinheirados da Faria Lima e de
integrantes do primeiro escalão do atual governo Lula. O ministro Fernando
Haddad e a ministra Simone Tebet, por exemplo, mantêm-se há um bom tempo na
linha de frente do combate a conquistas históricas da maioria da população, tal
como estabelecidas nos pisos constitucionais para saúde e educação, bem como na
vinculação dos benefícios previdenciários ao valor do salário-mínimo.
Na
verdade, tudo se explica pela armadilha em que o terceiro mandato se viu
enredado a partir das iniciativas encabeçadas por Haddad no quesito da
austeridade fiscal. Ele terminou por convencer Lula de que não valia a pena
simplesmente revogar o Teto de Gastos, dispositivo
que havia sido introduzido na Constituição em 2016 por Temer/Meirelles e
mantido em seguida por Bolsonaro/Guedes. Assim, esta importante promessa de
campanha eleitoral de 2022 foi abandonada e em seu lugar foi colocada a Lei Complementar nº 200, tratando
no Novo Arcabouço Fiscal (NAF). Por meio do novo mecanismo, a essência da
austeridade no trato das contas públicas ficou mantida e está em vigência até
hoje. É sempre bom lembrar que, para sua elaboração, o projeto da referida
medida foi discutido apenas com o presidente do Banco Central e com alguns
poucos presidentes de bancos privados.
<><> Haddad insiste na austeridade
Parece
claro que não poderia sair nada de muito bom de uma articulação com tal perfil
de participantes. Haddad se recusou a conversar com economistas do campo
progressista ou mesmo outros que não compartilhassem do credo ortodoxo e
neoliberal. Infelizmente, ele conseguiu convencer Lula de tal proposta
conservadora e o austericídio segue fazendo parte integrante da
institucionalidade da política econômica brasileira. A lógica de buscar
superávit primário a todo custo se mantém e ela orienta todas as ações do
governo. Além disso, segue valendo a proibição de que as despesas orçamentárias
cresçam aos níveis necessários para promover minimamente a recuperação do
desastre representado pelos seis anos dos governos anteriores.
As
regras austeras do NAF limitam a evolução das despesas a apenas 70% do ritmo de
expansão das receitas. Mas, de forma malandra e maldosa, retiram do cálculo os
gastos com o pagamento de juros da dívida pública. Assim, caso o governo não
tome nenhuma iniciativa para flexibilizar ou superar tal restrição, abre-se o
espaço para que o financismo e os grandes meios de comunicação lancem as atuais
campanhas em prol do corte de despesas e da redução do espaço do Estado na
economia. Mas o importante a reter nesta análise é que toda essa tentativa de
emparedar Lula e sua equipe ocorre exatamente pelo fato de Haddad ter insistido
com outra ideia mirabolante e completamente fora de lugar. Não contente com a
adoção do NAF, ele veio com a obsessão inexplicável – transformada em meta de
governo – de zerar o déficit fiscal primário em 2024 e 2025. Uma loucura, uma
aventura liberaloide sob a forma de um verdadeiro harakiri encomendado.
No
entanto, a pronta e decidida reação do movimento popular e de setores
progressistas contra as tentativas de retirar direitos históricos da
Constituição terminaram por reorientar a ação de Haddad para incisões em outros
programas. Ao invés de reconhecer o equívoco da estratégia de eliminar o
déficit em tão pouco tempo, ele insiste em colecionar bilhões aqui e ali por
meio de sua super tesoura orçamentária. As medidas ventiladas até o momento
referem-se quase todas a cortes nas áreas sociais, com graves consequências
para a implementação de políticas públicas voltadas à maioria da população e, o
que é ainda pior, elas mantêm o governo completamente imobilizado em sua
necessária retomada dos investimentos públicos de vulto. Afinal, sem buscar a
recuperação do protagonismo do Estado no processo de desenvolvimento econômico,
social e ambiental, pouco resta a fazer senão aguardar o milagre das forças
livres da oferta e da demanda.
<><> Lula hesita, mas não rompe com austericídio
Lula
parece ter ficado um pouco incomodado com a insistência do ministro em só
retirar direitos dos mais pobres. Mas, ao invés de questionar a essência
do cortar e cortar e cortar, tudo indica que a solução será
dar uma bicadinha também nas rubricas orçamentárias das Forças Armadas e na
redução de alguns itens de isenção e desoneração tributárias para as empresas.
O fato é que permanece a lógica de que os problemas todos se resumem a um
exagero de gastos e que a solução de tudo passa pela colocação da roda da
austeridade em movimento. Um tremendo equívoco do ponto de vista macroeconômico
e um grande desserviço em termos da pedagogia e da consciência da população em
relação às questões da economia e da política fiscal.
Ora,
se o foco realmente for este de cortar despesas, Haddad deveria mirar a conta
mais deficitária do Orçamento – o pagamento de juros. Além de se constituir na
rubrica que mais impacta negativamente a contabilidade fiscal, ela se
caracteriza também como uma alocação profundamente regressiva de recursos
públicos, uma vez que atende apenas aos interesses do topo da nossa pirâmide da
desigualdade social e econômica. Mas o fato é que a tecnocracia se defende de
tal sugestão com a desculpa esfarrapada de que as despesas financeiras seriam
não-primárias e, portanto, não colaborariam para a geração de superavit
primário (sic). Então bastaria abandonar de vez essa falácia do cálculo
primário e incorporar o conjunto das despesas para decidir por onde cortar.
Ao
longo dos últimos 12 meses, os gastos com juros da dívida pública consumiram
algo em torno de R$ 820 bilhões do Tesouro Nacional. Mas a estratégia de Haddad
passa ao largo desse volume expressivo de recursos públicos e mira apenas nas
contas de natureza social. Ao assumir como sua a narrativa da nata do
financismo, o ministro considera razoável que os contratos sociais envolvendo
os arranjos políticos e institucionais para previdência social, saúde e
educação possam ser dilacerados sem nenhum tipo de constrangimento, tudo em
nome do bom mocismo e em prol da austeridade fiscal. Já qualquer tipo de aceno
para estabelecer algum tipo de controle sobre os juros seria considerado um
acinte à ordem econômica, uma quebra de contrato inaceitável. Uma verdadeira afronta
aos Deus mercado. Uma loucura!
<><> Juros já consumiram mais de R$ 1 trilhão
Já
foi dito mais de uma vez que o mais razoável seria aceitar a realidade e
incorporar a possibilidade de um déficit nas contas de 2024 e seguintes. Esta
tem sido a regra dos últimos 10 anos por aqui e na grande maioria dos países do
chamado mundo desenvolvido. Ao contrário do que apregoam os arautos do
catastrofismo, a mando do povo da finança, nenhuma destas nações – e nem a
nossa! – vai quebrar por atravessar mais um exercício com tais características.
Inclusive pelo fato de que estaremos com as contas públicas deficitárias, mesmo
que Haddad se esforce ao máximo em seu intento austericida. Isso porque as
despesas financeiras também afetam o equilíbrio fiscal, assim como as demais.
Neste quesito, portanto, não tem como dourar a pílula com a safadeza “primária”.
Na real, estamos e estaremos com déficit por um bom tempo.
Lula
precisa saber que, desde 1º de janeiro do ano passado até setembro recente, o
seu governo já alocou um total de R$ 1,4 trilhão do Orçamento da União para o
pagamento de juros da dívida pública. E é importante sublinhar que neste volume
não estão incluídos os montantes para rolagem do endividamento. Trata-se apenas
e tão somente do pagamento de juros em sentido estrito da expressão. Se o
desejo de Haddad fosse mesmo sincero, bastaria tirar uma casquinha dali para
atender aos reclamos da tal da seriedade no controle do gasto público e contra
a gastança generalizada de recursos desperdiçados.
Ao
invés de ficar amealhando aqui e ali cortes aleatórios ou ameaças de facadas em
contas de interesse social, o presidente da República deveria orientar seus
auxiliares a promoverem a verdadeira justiça social, tributária e fiscal. Para
tanto, o caminho mais adequado seria o de cortar no gasto parasita e
ineficiente.
Fonte:
Outras Palavras
Nenhum comentário:
Postar um comentário