6×1: a
insustentabilidade dos argumentos econômicos
Na
última semana a bandeira pelo fim da jornada de trabalho 6×1 retornou à agenda
pública brasileira. A pauta, que tomou muito setores da esquerda de surpresa,
tem atraído milhares de trabalhadores e trabalhadoras que veem suas vidas
sufocadas pela jornada extenuante e por condições de trabalho cada vez mais
precárias. Não são poucos os relatos nas redes sociais de sobrecarga e assédio
no âmbito de trabalho e só a petição pública feita pelo Movimento Vida Além do
Trabalho (VAT) já conta com mais de 2 milhões de assinaturas.
A
forte adesão à proposta de acabar a jornada 6×1 e reduzir a jornada é um grito
de socorro contra a subordinação do tempo da vida somente ao trabalho, com
escalas que desorganizam a vida, com baixos rendimentos e ausência de
oportunidades de trabalho. O grito é tão forte que sensibiliza grande parte da
sociedade, especialmente, a juventude que busca ter horizontes mais promissores
para a sua vida. A vida não é só trabalho. Pelo contrário, o trabalho precisa
proporcionar as condições para as pessoas viverem ela em todas as suas
dimensões. Mesmo quem trabalha na jornada “padrão” 5×2 está cansado o
suficiente para saber que deve ser desumano trabalhar seis dias e folgar um,
que nem sempre coincide com o domingo. O fim de semana de dois dias é curto e
passa rápido – mal se descansou e o final de domingo se apresenta angustiante
com o retorno ao trabalho na manhã seguinte. Na 6×1 não há fim de semana, há um
respiro breve entre outros seis dias de trabalho.
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As pessoas querem viver além do trabalho
A
onda de protestos na sociedade contra a jornada 6×1 expressa um
descontentamento mais amplo das pessoas com o mundo do trabalho.O sentimento é
que se trabalha muito, se recebe insatisfatoriamente e resta pouco tempo para o
descanso, o ócio, o lazer, a sociabilidade com a família e os amigos, o estudo,
o cuidado com a saúde física e mental, a vida sexual e outras tantas dimensões
que compõem o ser humano para além do trabalho. Ecoa-se o grito desesperado de
quem percebe que sua vida está toda em função do trabalho e da reprodução
social, ao passo que as coisas que importam são postas em segundo plano. Não há
dúvida que o trabalho é um eixo estruturante da vida social. O problema não é
trabalhar, mas somente trabalhar e entrar em uma dinâmica de luta pela sobrevivência
que não lhe permite viver. Vale lembrar que a média salarial no Brasil, ainda
que tenha tido um crescimento anual de 4%, é de R$ 3.222,00, segundo dados da
PNAD (abril, 2024), e que 53 milhões de brasileiros necessitam uma ocupação ou
uma ocupação melhor, somando desocupados, desalentados, pessoas sem condições
de trabalhar mas que gostariam, trabalhadores sem carteira assinada ou que
estão em busca de estratégias de
sobrevivência. Ainda, possuir um trabalho formal não é garantia de que se tenha
um trabalho não precário.
A
juventude tem encontrado um mundo do trabalho que lhe parece insuportável, para
o qual está levantando sua voz e dizendo: isso não é vida. Ainda que a atenção
no último período tenha se dado aos chamados “jovens sem-sem” (sem estudo e sem
trabalho), o que corresponde a 25% dos jovens brasileiros, há hoje 70% de
jovens inseridos no mercado de trabalho. Não à toa o movimento VAT é encabeçado
por jovens, a exemplo do seu principal expoente Rick Azevedo. A promessa de que
a educação lhes salvaria tem resultado em frustração para muitos, apesar de
ter níveis de escolaridade superiores
aos de seus pais não tem garantido uma vida melhor. Aproximadamente 15% dos
jovens que se formaram no ensino superior conseguem emprego na sua área de
formação (NUBE, 2020). Há ainda uma grande frustração com o que se encontra no
mercado de trabalho, que não somente é incapaz de proporcionar recompensas
financeiras satisfatórias como oferece ocupações em que as pessoas não se
realizam.
Nesse
sentido, mais que uma crítica pontual ao regime de jornada trabalho seis por
um, há uma manifestação social latente sobre as relações com o trabalho e as
condições em que se trabalha. O nível de adoecimento psíquico decorrente do
trabalho é alarmante e atinge toda a classe trabalhadora. Só em 2022, segundo o
INSS, mais de 209 mil pessoas foram
afastadas do trabalho por transtornos mentais em nosso país. Reproduz-se uma
sociedade adoentada, com jornadas exaustivas, assédios de diferentes natureza,
pressões por resultados crescentes, insegurança financeira e a convivência com
o medo permanente de perder o emprego. Para a OIT (2022), houve um aumento
significativo no número de pessoas com algum problema de saúde mental, com um
total de 13% de pessoas em 2019 em nível mundial e, estima-se, que 12 bilhões
de dias de trabalho são perdidos devido a esse tipo de problema, custando ao
redor de um trilhão de dólares à economia. Há uma relação direta entre jornadas
extenuantes e adoecimento físico e mental do trabalhador.
Quanto
à juventude, segundo o Dossiê da Fiocruz de 2024, Panorama da situação de saúde
de jovens brasileiros, entre 2016 e 2022 , identificou-se que a taxa de
acidente de trabalho foi maior entre os jovens em comparação com as demais
faixas etárias – 219,78 casos para jovens de 20 a 24 anos, 209,44 no caso de
jovens de 25 a 29 anos, ambos calculados
por 100.000 habitantes -, indicando uma maior exposição dos jovens ao
acidente de trabalho, tendo como causa primeira as circunstâncias relativas às
condições de trabalho. Os grupos profissionais mais notificados entre os jovens
foram os trabalhadores da produção de bens e serviços industriais e os
inseridos nas atividades de serviço, vendedores do comércio em lojas e
mercados. Além disso, na última Conferência da Juventude em 2023, o tema da
saúde mental foi o mais lembrado, recebendo 41% das propostas para resolução do
problema. Não à toa, já que 8 a cada 10 jovens entre 15 e 29 anos apresentaram
algum transtorno de saúde mental em 2022. Para a Fiocruz, o número de
notificações de jovens com transtorno mental relativo ao trabalho é maior entre
os jovens de 25 a 29 anos com prevalência do sexo feminino. As principais
causas são estresse pós-traumático, transtornos de adaptação, transtorno misto
ansioso e depressivo e ansiedade generalizada.
Em síntese, é um quadro assustador para o futuro do país.
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A jornada 6×1 é apenas parte do problema
Não
obstante, seu enfrentamento tem o potencial de mobilizar pautas historicamente
centrais das lutas dos movimentos dos trabalhadores. Revogar a jornada 6×1
parece um passo importante na direção da redução da jornada de trabalho em
geral – nunca é demais lembrar que as 44 horas por semana (acrescidas das horas
extras) foram instituídas há 36 anos na Constituição Federal de 1988 e que o
Brasil está bastante defasado frente experiências bem-sucedidas de
implementação de jornadas laborais abaixo das 40 horas semanais em diversos
países, tais como as experiências recentes de instituição de jornadas de quatro
dias na Islândia, na Alemanha, na França, na Inglaterra, na Bélgica, nos
Emirados Árabes, entre outros.
Vale
também lembrar que uma parte significativa dos trabalhadores brasileiros não
tem acesso aos direitos do trabalho, muitas vezes trabalhando numa escala 7×0,
isto é, sete dias de trabalho sem descanso, a exemplo de muitos trabalhadores
informais, por conta própria e de empresas de plataformas digitais – atualmente
cerca de 40% dos trabalhadores estão na informalidade, traço histórico da
formação do nosso mercado de trabalho. Com um excedente estrutural de força de
trabalho que se manteve durante o processo
de industrialização e da expansão do assalariamento, o nosso passado
escravocrata legou à população negra, especialmente às mulheres, os trabalhos
mais precários, com os piores salários e as piores condições laborais. Em um
mercado de trabalho heterogêneo e marcado pela desigualdade, a informalidade e
a precariedade não são específicas de um ou outro momento, mas marcas
estruturais que se acentuaram no período neoliberal.
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O falacioso argumento econômico
Os
principais argumentos daqueles que se posicionam contrariamente ao fim da
jornada na escala 6×1 são de natureza econômica – o que por si só é um fato
interessante, pois no campo da sociabilidade, da autonomia humana e da saúde
física e mental não há margem para dúvida: a escala 6×1 é péssima. A síntese do
argumento econômico é que eliminar a possibilidade de escala 6×1 teria por
efeito a redução de empregos e o aumento de custos para os negócios e,
portanto, aumento de preços para os consumidores e prejuízo para as empresas.
Os defensores da manutenção atual fazem “terrorismo” ao dizer que a simples
aprovação da proposta seria ruim para o conjunto da economia, com perda de
competitividade (e falência) das empresas, gerando aumento do desemprego.
Trata-se
de um argumento recorrente, utilizado em outros momentos históricos para
alarmar a sociedade que a introdução de um direito ou proteção social quebraria
a economia e o país – foi assim quando da implementação do 13º salário ou do
salário mínimo. Para exemplificar, se o governo brasileiro tivesse ouvido os
economistas hegemônicos (neoclássicos), a grande mídia e os setores
empresariais, não teria instituído a política de valorização do salário mínimo
em 2004 em diante. Os argumentos hegemônicos apontavam que a elevação do
salário mínimo geraria inflação, desemprego, informalidade e um imenso déficit
nas contas públicas. Todos sabemos que os resultados não foram os previstos,
pelo contrário, é incontestável que o salário mínimo teve efeitos muito positivos
sobre a economia e uma melhora do bem estar de muita gente.
O
fato é que o custo do trabalho é baixo no Brasil e não representa uma ameaça à
competitividade das empresas. Entre 2012 e 2019, o custo unitário do trabalho
na indústria teve tendência de queda. Em 2019 a queda foi de 3,6%, sendo o
terceiro país com maior redução, atrás da Argentina e da França em primeiro e
segundo lugar. Segundo a Confederação das Indústrias (2020), o principal fator
para a queda do custo do trabalho foi o aumento da produtividade, cujo
crescimento médio foi de 2,9%, somado à queda do salário real em 1,3%.
Na
comparação do salário mínimo no plano internacional, segundo levantamento da
OCDE em 2021, considerando seus países integrantes mais Brasil e Rússia, o
valor da hora trabalhada foi de US$5,2 para o Brasil, deixando o país na 30°
posição, a frente somente do México, cujo valor/hora trabalho é de US$ 3,3. Em
primeiro lugar com o melhor valor/hora trabalho está Luxemburgo com US$27,7,
seguido de Holanda com US$26,2 e Austrália com US$25,2.
Por
outro lado, o Brasil possui uma das mais altas jornadas anuais do mundo.
Segundo levantamento da OCDE (2022), o Brasil ocupa a 4° posição de 46 países
considerados, com uma média anual de 1936 horas trabalhadas. Em primeiro lugar
está o México com 2128 horas, seguido de Costa Rica com 2073 horas e, em
terceiro lugar, Colômbia com 1964 horas anuais. Recordar-se que, durante o
discurso de posse da presidenta do México, Claudia Scheinbaum, em outubro de
2024, a nova mandatária apontou como promessa do governo a redução da jornada
de trabalho de 48 horas semanais para 40 horas. Já os países com a menor média
anual são Alemanha em primeiro lugar com 1349 horas anuais, seguido de
Dinamarca com 1363 horas e Luxemburgo com 1382 horas.
O
importante é enfatizar que a redução da jornada de trabalho é uma demanda
elementar dos trabalhadores no capitalismo, uma vez que os ganhos de
produtividade decorrentes dos avanços tecnológicos, de processos e de gestão
permitem se produzir cada vez mais com menos trabalho. Reduzir a jornada de
trabalho com preservação dos salários é uma forma de distribuir esses ganhos de
produtividade construídos pela coletividade.
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O fim da escala 6×1 e a adequação dos negócios à nova realidade
A
benéfica extinção da jornada 6×1 produziria efeitos modestos e diferenciados
entre as empresas, conforme o setor de atividade, a estrutura de mercado e o
porte do negócio. Em todo caso, as empresas se adequariam à nova realidade e
essa excrescência que pesa sobre os ombros de milhões de trabalhadores deixaria
de ser prevista na lei.
Para
a economia como um todo, nada mudaria significativamente. Embora a alteração
dos custos das empresas e o repasse para os preços dependam de muitos fatores,
qualquer impacto seria pontual – once and for all, isto é, caso ocorra um
aumento de preços em determinados bens e serviço, esse aumento não se repetirá,
pois no momento seguinte a legislação será a mesma e, portanto, os custos
também.
A
elevação dos custos somente ocorreria simultaneamente ao aumento do nível de
emprego, na medida em que os negócios que utilizam a escala 6×1 decidam
contratar novos trabalhadores para suprir a ausência de força de trabalho
ocasionada pela transição para outras escalas, como a 5×2 ou até mesmo a 4×3.
Vale notar que, se isso acontecer, haveria um duplo benefício social: menos
trabalhadores em jornadas degradantes e o aumento dos postos de trabalho.
Portanto, o aumento de custos, por um lado, poderia produzir efeitos
compensatórios na economia como um todo em virtude do aumento da massa salarial
– mais gente trabalhando e proporcionando maior dinamismo econômico.
Como
indicado, o repasse de custos para os preços depende de muitos fatores e pode
variar significativamente de acordo com o segmento de atividade, a concorrência
e a estrutura de mercado. Em mercados muito competitivos, como bares e
restaurantes em grandes centros urbanos, o movimento dos preços deverá
acompanhar a dinâmica de acomodação das novas escalas de trabalho. Certamente
uma parte dos estabelecimentos buscará absorver a mudança legal sem novas
contratações de trabalhadores, sem que os custos sejam impactados nesse caso.
E, outra parte, que considera lucrativo manter o mesmo padrão de funcionamento
do estabelecimento, poderá ampliar as vagas, incorrendo em algum aumento de
custos, mas que se justificaria pelo volume de vendas – caso contrário não haveria
contratação adicional. Ao mesmo tempo, com mais tempo livre para as pessoas, as
atividades de lazer e cultura podem aumentar, o que traria mais clientes. Por
outro lado, em mercados dominados por redes de grandes empresas, como os
supermercados e farmácias, os novos custos associados à eliminação da jornada
6×1 podem ser absorvidos por esses negócios, de modo a produzir diferentes
combinações entre redução marginal da taxa de lucro e aumento marginal nos
preços dos bens e serviços vendidos.
Esses
seriam os efeitos econômicos mais gerais que poderiam ser esperados com o fim
da jornada na escala 6×1. Mas a realidade pode variar entre indústria, comércio
e serviço; entre pequena, média e grande empresa. A esse respeito, faremos
alguns apontamentos, destacando que a mudança é benéfica em todos os sentidos
para os trabalhadores e trabalhadoras, e em nada impactaria negativamente a
vida social – ao contrário. Assim como pode ser benéfica para economia, com
menor nível de absenteísmo, adoecimentos, ganhos de produtividade, com
trabalhadores satisfeitos e descansados, maior nível de atividade, pois pode
ampliar o consumo.
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Os pequenos negócios
A
realidade dos pequenos empreendimentos no país é penosa independentemente das
possibilidades de jornada de trabalho. De acordo com levantamento do Sebrae a
partir dos dados da Receita Federal do Brasil entre 2018 e 2021, 21,6% das
microempresas encerraram seus negócios após cinco anos de atividade, sendo essa
taxa de mortalidade ligeiramente menor para as empresas de pequeno porte (17%).
Tais dados estão considerando somente os empreendimentos formalizados. Segundo
o Sebrae, aponta-se como justificativa o pouco preparo pessoal, dado que é
pequeno o número de pessoas que passaram por algum tipo de capacitação; o
planejamento deficiente do negócio, dado que 17% dizem não ter feito nenhum
planejamento e 59% dizem ter feito para no máximo 6 meses; assim como uma
gestão deficiente. Esses fatores se associam à baixa produtividade que
caracteriza a dinâmica dos pequenos negócios no país, que operam com reduzida
intensidade de capital (tecnologia, máquinas e equipamentos). Alterações nas
possibilidades de jornada de trabalho dos empregados não seriam determinantes
para modificar a realidade dos pequenos negócios.
Caso
um negócio dependa integralmente da jornada 6×1 para se manter lucrativo, ou
seja, necessite superexplorar seus trabalhadores para sobreviver, não é
exatamente um negócio virtuoso. Cabe pensarmos se desejamos uma sociedade que
ratifique nos termos da lei os negócios que impõem jornadas exaustivas aos seus
trabalhadores para se manter operante. Mas esse não é o caso predominante. Em
geral, ou o pequeno negócio já está na informalidade – isto é, não tem a
totalidade de seus empregados com carteira assinada –, ou ele conseguiria
reorganizar sua força de trabalho em torno de outros regimes de jornada. Assim,
para os negócios que operam na informalidade (com escala 6×1, 7×0, sem direitos
trabalhistas etc.), pouco mudaria com o fim da jornada legal 6×1 – eles
continuariam superexplorando sua força de trabalho à revelia da lei.
Modificar
a jornada de trabalho não é solução econômica para os problemas dos pequenos
negócios, mas um avanço em torno de condições mais humanas de trabalho e de possibilidade de uma sociedade mais
organizada, além de poder abrir novas oportunidades. Para enfrentar o problema
econômico, o fundamental é construirmos um projeto político de desenvolvimento
socioeconômico que ofereça melhores condições para aqueles que desejam
empreender. Caberia, portanto, elaborar e aprofundar as políticas de
democratização do acesso ao crédito, suporte e capacitação para a gestão de
negócios, ampliação de programas de compras públicas no âmbito das prefeituras
e, sobretudo, um projeto mais amplo de desenvolvimento econômico que coloque a
estrutura produtiva do país em melhores condições de geração de postos de
trabalho de qualidade, o que por sua vez reverberaria positivamente sobre os
pequenos negócios. Os pequenos negócios dependem do nível de renda da
sociedade, ou seja, de uma dinâmica econômica com crescimento, visto que
salário é renda e esta se converte em consumo.
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Médias e grandes empresas: o capital preocupado
Em
momentos de questionamentos da exploração, os especialistas e representantes
das grandes empresas buscam justificar a manutenção do status quo sob um
argumento de perda de competitividade e uma posição oportunista de defesa dos
pequenos negócios. Esse fato chama a atenção, pois é sempre em torno da defesa
dos “vulneráveis” (pequenos negócios, trabalhadores e consumidores pobres,
etc.) que se mobilizam os principais discursos do grande capital. No momento da
competição econômica de mercado, os grandes negócios não se importam em quebrar
os menores, mas quando os direitos trabalhistas são postos na mesa o que ocorre
é uma manipulação oportunística na defesa dos mais vulneráveis.
Os
grandes negócios operam com escala elevada, possuem estrutura de custos enxuta,
têm poder de negociação com fornecedores, gozam de amplo acesso ao crédito (a
despeito da elevadíssima taxa de juros no país), departamentos de
contabilidade, marketing, tributos etc. que superam sobremaneira qualquer
capacidade de competição dos pequenos negócios. Nos bairros, os pequenos
mercadinhos, mercearias, frutarias, farmácias etc. não conseguem competir no
preço com as grandes redes. Os que sobrevivem o fazem a duras penas, amparados
por uma combinação de elementos que vão desde a clientela fiel ou o serviço
diferenciado, até a sonegação de impostos e o não cumprimento das leis
trabalhistas. Portanto, o fim da escala 6×1 não é o problema e a dinâmica da
concorrência permaneceria a mesma. Melhorar a condição dos pequenos negócios
está em outra esfera que não a da redução de direitos trabalhistas, como
enfatizamos anteriormente.
Quem
está verdadeiramente preocupado com a mudança são as grandes empresas, que
operam na legalidade e teriam de se adequar imediatamente aos novos parâmetros
de definição da jornada de trabalho. Para essas, todo avanço na legislação
trabalhista que possa implicar em redução da lucratividade e de poder sobre a
gestão da força de trabalho é um problema.
Apenas
três grandes grupos de redes de farmácias detêm 40% do mercado no Brasil: Grupo
RD (Raia e Drogasil), Grupo Pague Menos (Pague Menos e Extrafarma) e Grupo DPSP
(Pacheco e São Paulo). Em 2023, o faturamento do setor cresceu 13,5%, atingindo
R$ 91,3 bilhões, liderados pelas grandes redes. Resta pouca dúvida sobre a
capacidade financeira dos grandes grupos em absorverem eventuais elevações dos
custos com o trabalho decorrentes do fim da exploração ao nível percebido na
jornada com escala 6×1. Não obstante, embora o lucro das grandes redes de
farmácia possa absorver tais custos, a disputa com o capital nunca é fácil –
somente com muita pressão e mobilização social este avanço poderá ser atingido.
O
caso das grandes redes de supermercado não é muito diferente. De acordo com a
Associação Brasileira de Supermercados, os quinze maiores supermercados
faturaram mais de 348 bilhões de reais em 2023. A liderança do ranking é do
Carrefour, que faturou R$115,4 bilhões (33% do total), seguido pelo Assaí
Atacadista (R$72,7 bilhões) e Mateus Supermercados (R$30,2 bilhões). Juntos, as
três redes foram responsáveis por 62,6% do faturamento das grandes redes, o que
revela uma certa concentração de mercado no segmento econômico. Novamente,
pergunta-se: o fim da escala 6×1 é inviável para esses grupos?
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E o trabalhador?
Como
visto, não há razões para crer que, por si só, o fim da jornada 6×1 reduziria
os empregos, ao contrário, abre-se espaço para eventuais novas contratações que
compensam o tempo de trabalho liberado em determinados negócios em que a conta
da lucratividade faça sentido econômico e que tem funcionamento nos finais de
semana.
Ora,
no âmbito individual, caso a escala 6×1 seja abolida, pode haver uma parcela
dos trabalhadores cuja renda variável sofreria uma eventual redução – o caso
dos trabalhos que incluem comissões por vendas ou recebimento de gorjetas. É
verdade que parte dos trabalhadores nessa situação buscaria compensar a redução
do rendimento em outros postos de trabalho, sobretudo realizando bicos ou
freelancers. Nesse caso, seu rendimento poderia ser preservado ou até mesmo
elevado, a depender do trabalho eventual que o trabalhador encontrar.
No
entanto, para outra parte dos trabalhadores migrar para uma jornada
convencional 5×2 ou até 4×3 pode ser um alívio no sentido de devolver algum
controle sobre seu próprio tempo de vida. As pessoas estão exaustas e não
querem escolher entre trabalhar muito e não viver, ou trabalhar pouco e não
receber o suficiente para gozar de uma vida digna. Elas querem exercer
atividades que façam sentido para si e para a comunidade, com alguma autonomia
sobre seu tempo, com remunerações compatíveis que lhes permitam uma vida que
valha a pena viver. Certamente a existência da jornada 6×1 não contribui em
nada nessa direção.
*
Em
relação à dinâmica prática do consumo, a redução na jornada de trabalho não
significa que bares, farmácias e supermercados terão necessariamente seu
horário de funcionamento diminuído. E, caso isso ocorra pontualmente em
determinados segmentos e localidades, observamos que diversos países operam com
horários muito mais restritos de funcionamento de mercados e farmácias aos
finais de semana, por exemplo, quando comparados com o Brasil. As pessoas
deixam de consumir por isso? Não, simplesmente assumem essa condição como um
dado – inclusive muito saudável para a estruturação dos tempos de trabalho e de
não trabalho da sociedade – e se organizam da mesma forma que o fazem para
levar os filhos de segunda à sexta na escola, frequentar cultos e igrejas aos
sábados e domingos, entre outras tantas definições do tempo da vida social que
organizam a vida dos indivíduos e da coletividade.
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Insistimos que não se trata somente da questão econômica
Exagerando
no argumento, o que seria mais lucrativo para os negócios do que reduzir a
jornada 6×1? Aumentar para 7×0! Então por que isso não ocorre, já que seria
mais lucrativo? Porque há limites físicos (capacidade do ser humano aguentar) e
éticos (o quanto a sociedade tolera certos parâmetros de exploração). Acontece
que a escala 6×1 está adoecendo os trabalhadores de forma mais acelerada que a
jornada convencional 5×2, inclusive contribuindo para o aumento. O limite
físico já está sendo rompido, porém os trabalhadores adoecidos pelo excesso de
trabalho são, via de regra, rapidamente descartados e substituídos por outros,
e assim a roda continua a girar.
O
que tem sustentado até então a existência da escala 6×1 é o silenciamento da
pauta e do sofrimento associado, amparado pela força do empresariado do
comércio e de algumas atividades de serviço, que impuseram esse modelo de
jornada em seu próprio proveito. Agora estamos assistindo a uma onda de
contestação social da 6×1 – sua razoabilidade está sendo questionada pela
sociedade. O resultado pode ser um grande marco para a renovação da agenda da
classe trabalhadora em torno de pautas poderosas como a da redução da jornada
de trabalho.
<><>
A necessidade de uma agenda a favor dos trabalhadores e das trabalhadoras
As
mobilizações pelo fim da jornada 6×1 podem significar o início de um processo
que aprofunde a realidade complexa e penosa do mundo do trabalho em que nos
encontramos. Não só aprofundar como apresentar mudanças significativas na
realidade de milhões de trabalhadores e trabalhadoras, apresentando uma agenda
do trabalho que redefina as condições laborais, que abarque todos os
trabalhadores sob o leque dos direitos trabalhistas e que ressignifique o que é
trabalhar. Por isso, a luta pela redução da jornada 6×1 é só um dos desafios
que estão colocados, fazendo-se necessário também considerar ao menos dez
pontos essenciais para a construção de uma agenda a favor dos trabalhadores e
das trabalhadoras:
• primeiro,
que o trabalho possui centralidade na vida das pessoas, ainda que ele tenha
passado por reconfigurações e ressignificações profundas;
• segundo, que
as perspectivas neoliberais para resolver o problema do emprego e do trabalho
fracassaram. A diminuição e retirada dos direitos do trabalho, a exemplo da
Reforma Trabalhista de 2017, e o incentivo ao empreendedorismo comprovadamente
acentuaram a precariedade do trabalho;
• terceiro,
que o crescimento econômico é necessário para geração de empregos. Contudo ele,
por si só, não resolve o problema do trabalho;
• quarto, que
os postos de trabalho sejam repensados, considerando sua articulação e
existência a partir de demandas reais e concretas para atender as necessidades
sociais e ambientais contemporâneas;
• quinto, que
o Estado também seja fomentador e garantidor da geração de empregos, dado o
problema estrutural tanto da falta de trabalho quanto da falta de trabalhos
dignos;
• sexto, que a
luta pelos direitos trabalhistas precisa vir articulada à luta de demais formas
formas de discriminação, exclusão e opressão, considerando gênero e raça;
• sétimo, que
a proteção social e a proteção trabalhista abranja todos os trabalhadores,
independente da relação de trabalho estabelecida;
• oitavo, que
as instituições públicas responsáveis pela regulação do trabalho sejam
fortalecidas e não solapadas, como vem ocorrendo;
• nono, que a
diminuição da jornada de trabalho venha acompanhada de condições mais dignas para
os trabalhadores, garantindo tempo para o desenvolvimento de outras dimensões
da vida fora do trabalho, fazendo com que o trabalho tenha real sentido e
significado, assim como garantia salarial;
• décimo, que
os ganhos de produtividade acumulados ao longo do tempo, fruto de inovações
produzidas pelo conjunto dos atores sociais, seja melhor distribuído entre
trabalhadores e capitalistas.
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Por fim, que se possa viver além do trabalho.
Como
disse Antonio Candido, “a luta pela justiça social começa por uma reivindicação
do tempo: eu quero aproveitar meu tempo de forma que eu me humanize”. A
necessidade de uma agenda humanizadora a favor dos trabalhadores e das
trabalhadoras há muito já está colocada.
Fonte:
Por Borsari, Scapini, Krein & Manzano, no Jornal GGN
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