quarta-feira, 13 de novembro de 2024

O mistério da derrota: Como combater o fascismo com uma política econômica neoliberal?

O resultado das eleições municipais para as esquerdas foi um desastre anunciado com meses de antecedência. Hoje, analistas e atores políticos saem à cata de causas e responsáveis pela derrota eleitoral. Dentro da multiplicidade de opiniões, há um fio condutor nas análises. Em sua grande maioria, essas análises ignoram, ou apenas tangenciam, a economia política e os novos padrões de acumulação de capital que produzem mudanças na sociabilidade e, por consequência, no comportamento eleitoral.

As últimas eleições municipais são mais um prego no caixão da ordem institucional do pós-ditadura. Agora, quem se esgota é a social-democracia, representada por PT e PSOL. Esse esgotamento reflete a perda de importância da base social dessa corrente política, os trabalhadores assalariados do setor formal. A desarticulação do mercado de trabalho formal produz seus efeitos na representação política.

O esgotamento é institucional. Se na Nova República o pacto político consistiu na alternância entre dois partidos, um socialdemocrata operário e outro neoliberal, com o MDB como instrumento de controle sobre uma base aliada amorfa representada no Centrão, o Golpe de 2016, tentando destruir o PT, destruiu o partido neoliberal e alçou, com parte do golpe, o partido de sustentação para dirigir o país.

Michel Temer com a sua “Ponte para o futuro” capturou a alta burguesia rentista, que exigia o fim dos pactos sociais históricos, como a CLT e a própria Constituição, sobretudo os direitos sociais. Como apêndice importante, o fim do patrimônio público brasileiro, que deveria ser privatizado aos rentistas. A concentração de renda, sempre uma das maiores do planeta, aumentou, e como o capital é finito, a desigualdade aumentou junto. Se os ricos ficam mais ricos em uma conjuntura de baixo crescimento, é porque estão tirando dos mais pobres. E não menos importante, consumindo o capital social acumulado, esterilizando-o pela via do entesouramento.

Essa conjuntura deixou na política nacional um espaço sideral, o qual foi ocupado pela extrema direita, a principal força política popular do golpe de 2016. Assim como aconteceu em 1964, o neoliberalismo casou-se com o fascismo, fazendo com que, a cada eleição, a extrema-direita avançasse nas principais cidades, como ocorreu no nordeste em 2024.

Longe de entender as questões estruturais do desempenho eleitoral do campo social-democrata, as direções políticas parecem ver apenas o que é circunstancial e, portanto, apresentam exclusivamente diagnósticos e propostas de solução circunstanciais.

As medições publicadas de quantos prefeitos cada partido elegeu, sem diferenciar o peso eleitoral e econômico de cada município, contribui para que o panorama pareça amorfo. Pode levar a uma superestimação ou subestimação do peso de cada campo ideológico, seja esquerda, direita ou centro. Campos ideológicos analisados desligados da realidade social, por suposto.

No campo da esquerda, o “identitarismo” é escolhido o vilão da magreza das urnas. As chamadas pautas identitárias foram utilizadas como legitimação, na ausência de políticas governamentais de desenvolvimento social e econômico. Constatada a impossibilidade das chamadas pautas identitárias mobilizarem por si só, sem correspondência nas melhorias concretas nas condições de vida, a aderência a essas pautas é eleita como responsável pelo afastamento dos partidos da população em geral. Como se as lutas antirracista, por direitos sexuais e reprodutivos e pelos direitos LGBT’s fossem repudiadas pelo eleitorado.

Em um senso comum mais amplo, na esquerda, mas senso comum, o culpado seria o “pobre de direita”. Este personagem, surgido na internet no período de ascensão do bolsonarismo, é elevado à categoria sociológica por certa academia. Que Max Weber qual nada, a explicação é dada pelo sociólogo brasileiro Tim Maia, que se não falou do “pobre que vota na direita”, pensou.

A figura do “pobre de direita” reforça a tese de um conservadorismo congênito do povo brasileiro. Portanto, a esquerda deveria modular o seu discurso para a direita. Houve até candidato petista a prefeito que repudiou a “ideologia de gênero”.

Outra explicação é mais etérea, mais genérica. O problema da falta de votos seria de “comunicação”, que a esquerda não tem domínio das redes sociais, campo em que a extrema-direita nada de braçada. A comunicação certamente é ruim. É ainda pior quando não se tem o que comunicar.

Pela linha política do governo, a única obra disponível é a responsabilidade fiscal, para a alegria do grande capital financeiro e para aquele segmento que o economista André Lara Rezende classificou como lúmpen do asset, a fauna de fundos e operadores localizada na avenida Faria Lima e adjacências.

É duvidoso que a estratégia de adotar o discurso conservador e dar tudo o que o mercado pede possa render frutos eleitorais no futuro. Alguns analistas ressaltaram o peso das emendas parlamentares impositivas. O peso dessas emendas certamente é grande. Mas vale para cidades como São Paulo ou Rio?

Ao reduzir o fenômeno eleitoral a comunicação e estratégia de marketing, esquece-se, proposital ou não, que a eleição é um fenômeno político. Acompanha essa despolitização, o fato de se reduzir a política a eleições. A derrota eleitoral é uma derrota política sobretudo.

E, difícil de admitir, há uma rejeição aos candidatos petistas e da esquerda em geral. Sem essa rejeição, os portoalegrenses não teriam reelegido o prefeito do dilúvio e os paulistanos reconduzido um alcaide corrupto, responsável por uma gestão desastrosa e que, antes do período eleitoral, era necessário fazer uma busca no Google para saber seu nome.

Importante lembrar, que em São Paulo Lula e Haddad ganharam as eleições e em Porto Alegre o atual governador quase perdeu a vaga no segundo turno para o candidato do PT. A rejeição persiste, mesmo após uma vitória na eleição presidencial contra todas as possibilidades. Entender as razões dessa rejeição pela esquerda no plano eleitoral é fundamental para a disputa política daqui para frente.

Acreditar que a esquerda vai recuperar terreno eleitoral assumindo as palavras de ordem da direita é, no mínimo, uma tautologia. Erro deveras repetido. E dentre as causas dessa rejeição não está o fato de a esquerda não fazer o discurso da direita.

O governo Lula é prisioneiro de uma conjuntura difícil, agravada pelas escolhas da política econômica. Ao não trazer resultados palpáveis, para além de um índice medíocre de crescimento do PIB, o governo erode sua própria base social. Pode-se evitar o impeachment com essa política, mas não se pode evitar a derrota nas eleições gerais de 2026.

A política econômica do governo é imposta pela esfera financeira do capital. Exemplo foi a pesquisa Quaest publicada em 02 de outubro. A aprovação do governo Lula caiu em sua base social. A maior queda foi entre idosos e pessoas que recebem até dois salários-mínimos.

A queda entre os idosos, de 59% para 49%, é fácil de entender. Lula anunciou cortes do Benefício de Prestação Continuada (BPC) para o ano de 2026, pois teria ficado assustado com o aumento do benefício nos últimos anos. O BPC vem sendo usado por pessoas acima de 60 anos que não conseguem mais se aposentar, assim por famílias cujos filhos adultos com alguma deficiência não conseguem trabalho.

Mas o governo ficou satisfeito? Lógico que não. Lula obteve aprovação no Congresso de uma Lei que permite que o INSS corte a aposentadoria de forma sumária, sem direito de defesa.

As medidas atendem à “necessidade” de uma política econômica neoliberal capitaneada por Fernando Haddad, que prometeu à Faria Lima déficit zero, o que vem exigindo medidas de contenção de investimentos e direitos sociais. Podem até assumir um discurso de taxação dos ricos – o que na prática não ocorreu até agora, pois lucros e dividendos continuam isentos –, mas os dados mostram que o aposentado entendeu o recado do governo.

Os trabalhadores que recebem até dois salários-mínimos também desconfiam do governo – a desaprovação subiu de 26% para 32%. Por mais que os dados gerais da economia apontem alguma melhora, o emprego criado é péssimo. Nas grandes cidades, o precarizado trabalha por mais de 10 horas, sem contar o transporte. Recebe pouco, embora pouco mais do que antes. O que aconteceu com a proposta de uma nova CLT? Da revogação da reforma trabalhista?

Como fruto do conformismo político, o governo assumiu um discurso naturalizante do empreendedorismo de desespero, retirando o qualificativo para criar, assim como coaching e Luciano Huck, a ideia de positividade. Lula chegou a afirmar que os trabalhadores não querem CLT. A eleição a vereador de Rick Azevedo, no Rio de Janeiro, indica, ao menos, uma contradição no discurso governamental. Elegeu-se defendendo uma reforma na CLT e o fim da escala de seis dias trabalhados, ou seja, a diminuição da jornada de trabalho com manutenção do salário.

O PIB pode crescer 10%. Em contrapartida, o emprego… emprego não, ocupação será sempre ruim, sem qualquer perspectiva de melhora. O neoliberalismo é tão violento que o crescimento do PIB, outrora com recepção mais positiva, não impacta mais na expectativa das pessoas.

Mesmo assim, os epígonos do financismo exigem mais. Os ministros Fernando Haddad e Simone Tebet nem esperaram o segundo turno para anunciar a preparação de um pacote de cortes de gastos. Nem assim aplacam a sanha do chamado mercado. Qualquer editorial da grande imprensa basta para que ministros corram a fazer juras de bom mocismo fiscal.

O bom mocismo fiscal consiste em referendar a nova estrutura orçamentária e política, com algum peso para a direita encostada em Arthur Lira. As emendas parlamentares assumiram parte do papel do executivo, realizando investimentos em municípios, com alguma função concorrencial com o executivo, com direcionamentos específicos para prefeitos e vereadores em obras que as prefeituras não conseguem realizar em virtude do endividamento e dos baixíssimos orçamentos.

Mas isso vale para municípios menores. Como já dito, grandes cidades o impacto é bem menor. Assumir a desculpa das emendas esconde um fato simples e importante: o governo federal não executa quaisquer investimentos públicos em função do “arcabouço fiscal” com “déficit zero” inventado por Fernando Haddad.

Sem investimentos sociais, não há qualquer inserção do governo federal nos municípios. Qual escola, qual ponte, qual médico, qual UPA, qual moradia popular foi construída ou contratada em seu município nos últimos dois anos? A esquerda passou a acreditar de forma messiânica na liderança carismática de Lula. Apenas o seu toque seria suficiente. Lula não transferiu votos. Eis um dado dessa eleição.

De fato, as emendas parlamentares fazem parte de uma nova estrutura política. Mas a política econômica de Lula e Fernando Haddad destruiu as candidaturas de esquerda em todo o Brasil. Basta ver os dados das capitais e das principais cidades do nordeste. A extrema direita entrou naquilo que a imprensa chama de “reduto” do PT.

Se o debate econômico, ou melhor, se a disputa da política econômica já foi resolvida, com a vitória da esfera financeira do capital, pouco resta para diferenciar esquerda da direita. A renúncia às pautas ditas identitárias completa essa indiferenciação.

Assumir o discurso da direita não é estratégia. É rendição. É preparar o terreno para o retorno da extrema direita ao executivo federal. Só para o executivo federal, diga-se. O Congresso, a maioria dos governos estaduais e, agora, de importantes prefeituras são ou dominados pela extrema direita ou dirigidos por figuras que cedem ao poder gravitacional do fascismo.

O que se avizinha é o alijamento das forças de esquerda da vida institucional do país. Esse objetivo não é ocultado pelos próceres do fascismo em nosso país. A saída é intensificar a luta política, que é escusado dizer que possui dimensões econômicas e culturais. Como combater o fascismo com uma política econômica neoliberal?

Entender as mudanças no mundo do trabalho e do padrão de acumulação no capitalismo brasileiro é necessário, mas não suficiente. É preciso bater no inimigo principal, que controla o orçamento público e a divisão do valor produzido socialmente. O capital financeiro, e seus aliados no agronegócio, na mídia, na religião e na burocracia estatal.

Só é possível ter uma estratégia política que mobilize forças sociais concretas, quando se identifica quem são os inimigos e quem são os aliados. A vitória ou a derrota, seja nas eleições ou fora delas, depende disso.

 

¨      Politizando a antipolítica. Por Bruno Machado

Desde as jornadas de junho de 2013, o crescimento da visão de mundo atrelada a antipolítica vem se tornando a maior força na política eleitoral brasileira. Isso se deve ao crescimento de um sentimento nacional antissistema difuso e pouco embasado teoricamente. O fracasso pujante do capitalismo vem tornando a pauta antissistema cada vez mais forte.

A esquerda anticapitalista tem tido dificuldade de absorver esse sentimento popular e a direita com suas pautas anti-Estado tem se saído melhor na opinião pública popular. Com a terceira eleição de Lula, a esquerda se vê cada vez mais numa perigosa posição de defensora do sistema vigente, enquanto tem que lidar com o poderoso pânico moral da direita.

O crescente fracasso do sistema capitalista, iniciado nas crises do petróleo da década de 1970 e acelerado pelo neoliberalismo dos 1980, se torna cada vez mais perceptível na estagnação do crescimento dos salários no mundo em paralelo ao crescimento dos faturamentos e lucros das grandes corporações multinacionais oligopolistas. Nos países centrais, esse fracasso sistêmico vem dando combustível ao racismo e à xenofobia. Já na periferia, onde a imigração tem menor relevância, o neofacismo se alimenta principalmente do fanatismo religioso, que é muito mais presente nos países pobres do que nos ricos.

Como as regras que regiam o mundo não estão funcionando mais hoje, as populações dos países centrais e periféricos têm buscado alternativas cada vez mais extremas. A esquerda mundial, mergulhada no reformismo, não tem soluções para além de uma defesa abstrata do aumento de impostos para os ricos, que comumente não se traduz em política pública, ou, quando o faz, não tem a relevância orçamentária que prometia. Por outro lado, a direita oferece um discurso “contra tudo que está aí” capturando esse sentimento difuso da antipolítica e se apropriando da religiosidade do povo brasileiro para desviar o foco do debate sobre o capitalismo e os reais problemas que afligem aos trabalhadores.

Como o sistema atual está flagrantemente em processo de desmoronamento, já era esperado que a força política com mais vigor seria a pautada pela retórica antissistema. Seja esse “sistema” entendido como o capitalismo gerido pela classe proprietária, o próprio Estado comandado por uma elite de políticos; ou, ainda, de maneira mais subjetiva e simbólica a própria modernidade “subversiva”, ou, por outro lado, a cultura do culto ao individualismo performático dos dias atuais. O conceito quase simbólico de sistema acaba se realizando tanto na frente concreta, sendo o capital ou o governo, quanto na abstrata, sendo a modernidade ou o individualismo.

Enquanto a esquerda eleitoralmente relevante fracassa em seu discurso superficialmente anticapitalista sem ser anticapitalista em seus projetos de nação, a direita cresce pela extrema-direita declarando guerra aos imigrantes nos países centrais e, nos periféricos, aos políticos costumeiramente corruptos e principalmente às regulações do Estado e aos impostos. Além disso, enquanto a esquerda combate o complexo tema do individualismo, a direita se aproveita do conservadorismo popular para atacar as pautas modernas relacionadas às minorias da franja mais moralista e de senso comum possível.

Se, por um lado, a esquerda vê o capitalismo como o sistema a ser derrubado ou, ao menos, amenizado; a direita vê no Estado, com seus impostos e legislações, o sistema a ser destruído ou, ao menos, contido. Como o capitalismo é um modo de produção despersonalizado, onde o capital é quem dita o que os capitalistas devem fazer, é muito mais difícil ser entendido como o sistema a ser combatido. Além disso, a classe proprietária como grupo demográfico é pouco reconhecida pela população, diferente dos políticos que governam o Estado e que são diariamente expostos na mídia, além de serem formalmente os que governam o povo.

O fato da esquerda utilizar o aparato estatal para realizar política social e investimento público a coloca na incômoda posição de defender os impostos. Isso inevitavelmente põe a esquerda no campo dos defensores do sistema, enquanto a direita se coloca como antissistema ao defender a redução do Estado e dos impostos. Essa desagradável posição política é agravada quando o governo de ocasião é ocupado por partidos de esquerda, como ocorre no Brasil hoje. Dessa maneira, todo o histórico papel antissistema da esquerda brasileira se vê tomado pela direita, que apesar de defender todos os fundamentos do capitalismo, consegue se vender como a alternativa ao status quo.

O desafio maior da esquerda hoje é retomar seu aspecto de alternativa ao status quo e demonstrar que é a direita que existe para manter o sistema em sua estrutura fundamental. Sem uma educação libertadora na base, resta aos sindicatos, movimentos sociais e estudantis o papel de florescer na classe trabalhadora sua consciência de classe e, por consequência, o entendimento de que o sistema é o capitalismo e que o Estado, seja qual for o partido eleito, é um instrumento do capital regido por forças políticas, econômicas e militares que vão muito além das eleições.

Se a esquerda intitula o capitalismo como sistema vigente e vê o individualismo como valor social a ser combatido, a direita enxerga no Estado o status quo e a modernidade como inimiga da moral. Dessa forma, não só é mais fácil defender o combate ao Estado do que o combate ao capitalismo como também é muito mais simples elencar a modernidade e os valores humanísticos atuais como imorais e antiéticos do que debater o individualismo, a autoexploração e a ilusão da meritocracia. Assim sendo, a raiva de ter que pagar impostos ao Estado e o pânico moral contra os novos costumes se tornam instrumentos muito poderosos, e aliados ao poder econômico e às lideranças religiosas conservadoras (que são maioria esmagadora) vem derrotando a esquerda no debate público por corações e mentes.

A disputa de narrativas que se dá na vida política brasileira vem se pautando no reformismo petista há duas décadas e isso pode ter reforçado a imagem pública da esquerda como defensora do Estado e dos impostos. Essa brecha muito bem aproveitada pela direita deu substância ao sentimento antissistema que põe o Estado como instância impositiva de costumes subversivos e achacador da economia popular. Resta a esquerda reconquistar a classe trabalhadora restaurando seu papel de alternativa antissistema, o que provavelmente só poderá ser realizado com o abandono do lulismo.

 

Fonte: Por Igor Grabois e Leonardo Sacramento, em A Terra é Redonda

 

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