EXTREMA DIREITA: Por que devemos falar de fascismo?
Os movimentos
fascistas não acabaram com as mortes de Mussolini e Hitler. Pelo contrário, a
experiência fascista extrapola a presença física desses dois.
O dia 9 de novembro é
celebrado como o “Dia Internacional contra o Fascismo e o Antissemitismo”. Para
além, é um dia marcado por tributos e recordações, em especial na Alemanha, que
rememora a “Noite
dos Cristais” (Kristallnacht), massacre
antissemita que resultou em destruição e vandalismo nas sinagogas em todo o
Reich em 1938, e a queda do Muro de Berlim, fato que possibilitou a
reunificação do país, em 1989.
Com 17 anos de
antecedência, em 1921, nessa mesma data, em Roma, uma moção de Michele Bianchi
proclamou a constituição do Partido Nacional Fascista. O mais curioso é que
Bianchi, assim como Mussolini, era sindicalista e foi membro do Partido
Socialista Italiano, mudando seu pensamento a partir do apoio à entrada da
Itália na Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Para fins de conhecimento, no
recém-formado governo fascista, Bianchi era considerado o “colaborador mais
próximo de Benito Mussolini”, ocupando o cargo de secretário-geral, e,
posteriormente, foi demitido em 1923 ao assumir o Grande Conselho do Fascismo,
sendo, um ano depois, eleito para a Câmara dos Deputados. Todavia, para
entendermos como o fenômeno do fascismo, tema deste opúsculo, cresce e incorpora
adeptos, mesmo na contemporaneidade calejada por seus sinais, discursos e
alvos, é necessário compreender qual é a substância do fascismo, o seu
significado, qual é a sua ameaça e como podemos defini-lo.
·
O que é fascismo?
Antonio Scurati,
importante escritor e professor da Universidade de Milão, apresenta uma
perspectiva embasada no pós-guerra de que o fascismo só pode ser compreendido e
debatido a partir da consciência de que é um fenômeno propriamente italiano, ou
seja, com raízes na península e características próprias daquela região. O
motivo de sua proliferação nos últimos anos, segundo o estudioso, deve-se ao
não enfrentamento dos próprios italianos com seu passado e à proliferação de
elementos “neofascistas” no mundo, que são incorporados por atores políticos
extremistas de acordo com suas necessidades e finalidades locais.
Para Salvemini e
Roselli, o fascismo é definido como uma política que se utiliza da burocracia
para substituir as velhas classes dirigentes. Em si, o fascismo é incapaz de
realizar até mesmo seus objetivos e de resolver as contradições da sociedade
capitalista, apresentando uma solução vazia de conteúdo para diversos problemas
e buscando no discurso antidemocrático a saída para sustentar seus planos de
permanência e proliferação. A democracia, desse modo, torna-se a antítese da
apologia autoritária defendida pelos líderes fascistas, evitada a qualquer
custo na sociedade autocrática. O nacionalismo, acima dos ideais humanitários e
democráticos, porta mais que um projeto de poder ou permanência, sendo
percebido por seu desejo de normalizar o terror e a violência. Isso está em seu
DNA.
Segundo Robert Paris,
em seu livro As Origens do Fascismo,
o Risorgimento pode
ter deixado uma lacuna propícia aos discursos fascistas, no que diz respeito à
falta de participação das massas populares e à vulnerabilidade da burguesia
enquanto classe, gerando um cenário de atraso no desenvolvimento econômico e
retrocesso das estruturas italianas. A partir disso, entendemos o que Giovanni
Gentile, filósofo, político e figura expoente do fascismo italiano, observa e
define em Origini
e dottrina del fascismo: “o fascismo é um segundo Risorgimento”.
Os objetivos das classes subalternas são diluídos e substituídos pelos
interesses “nacionais”, num processo de subversão do sentido de “popular”, que
passa a ser compreendido como “interesse nacional”. Assim, tanto a classe
burguesa — que apoiou a gênese do movimento fascista como meio de sobrevivência
e alcance de poder — quanto a classe trabalhadora não ofereceram forte
resistência ao “novo Risorgimento”, visto o terreno formado e propício para que
os ideais de Mussolini fossem germinados e evoluíssem.
Categoricamente, o
fascismo é caracterizado pelo medo ao diferente, pela forma violenta de
expressão, pelo populismo e pela exaltação de um líder, pela repressão e pela
criação de um contínuo estado de ameaça (seja ele econômico, político ou
social). Umberto Eco, filósofo e semiólogo italiano falecido em 2016, apresenta
a urgência em apontar a ameaça causada pelo fascismo, que está longe de ser um
momento restrito à história italiana. O fenômeno, para Eco, se adapta conforme
as circunstâncias, culturas e particularidades específicas, ganhando um novo
corpo a cada época. Por isso, na visão do autor, podemos falar em “fascismos”,
lamentavelmente, inclusive, em nossa contemporaneidade.
·
O falso sentimento de
grandeza
Um dos interesses do
fascismo é criar um gosto pelo monumental, pelo mitológico e pelo fantasioso,
com o intuito não apenas de subverter, mas também de iludir os sentidos. Essa
falsa consciência não pode ser separada de uma degradação da historicidade e da
temporalidade, sendo evidente na pretensão (tanto do nazismo quanto do
fascismo, por exemplo) de retomar referências históricas que remetam à
grandeza: “Reich de Mil Anos” ou “Terceira Roma”. Valoriza-se, portanto, o
espaço em detrimento da temporalidade. A busca por uma “identidade perdida”,
criando antagonistas e contradições que justifiquem a liberação desordenada dos
impulsos, tem por finalidade a construção de uma lógica que justifique o
discurso do “fim da história”. A tara fascista pelo trágico e pelo apocalíptico
perdura ao longo dos anos, tornando-se motor de muitos discursos espalhados
pelo mundo. Por quê? Justamente pela prisão que o medo constrói. São em
momentos de aparentes mudanças e crises que o fantasma do fascismo volta a
assombrar.
·
Qual a face atual do
fascismo?
Há muitos anos,
media-se a força de uma ideologia não somente pelo número de seus adeptos, mas
pelo impacto causado por suas manifestações públicas de apoio. Passeatas,
manifestações nas ruas, protestos — todos esses instrumentos eram utilizados no
intuito de mostrar apoio ou insatisfação com coisas ou pessoas, com regimes ou
líderes. O primeiro grande impacto público do fascismo em terras italianas, sem
dúvida, foi a “Marcha sobre Roma”, em 1922, sob a batuta de Benito Mussolini,
manifestação fascista com características de golpe de Estado. Essa demonstração
pública de apoio fez com que as estruturas democráticas daquele país ficassem
vulneráveis aos ataques políticos que viriam a suceder.
É importante lembrar que os movimentos
fascistas não acabaram com as mortes de Mussolini e Hitler. Pelo contrário, a
experiência fascista extrapola a presença física desses dois. Outros países europeus vivenciaram o fascismo sob a
regência de líderes autoritários, naquele contexto, como Salazar em Portugal e
Franco na Espanha, pois esse múnus ditatorial engloba relações de poder em uma
escala macro, além de interesses sociais e econômicos que abrangem mais do que
o Estado e o governo. As ditaduras fascistas demonstraram aversão à pluralidade
de pensamento e à democracia, pois o “oposto” é considerado uma ameaça desde a
sua manifestação inicial. Por conta disso, há uma necessidade vital no fascismo
em seguir padrões e controlar, sem medida, tudo o que envolva um risco para sua
permanência no poder.
O modus operandi
continua o mesmo nos dias atuais: perseguição, violência e intolerância. O
filósofo Theodor Adorno, em seu livro Aspects of the New Right–Wing Extremism, nos alertou, na década de 1960, sobre o retorno do fascismo e
que não devemos “subestimar esses movimentos por causa de seu baixo nível
intelectual”. Com a democratização e a expansão das mídias sociais, esses
movimentos extrapolam as limitações geográficas e se organizam em novos blocos:
não são apenas organismos partidários, mas digitais. A produção de conteúdo nas
redes digitais, financiada por reacionários e bilionários espalhados pelo
mundo, tornou-se matéria imprescindível na arena de disputa da hegemonia.
A estratégia de
expansão do fascismo atual (ou neofascismo, se preferir) está alicerçada em
quatro colunas: 1) atuação nas redes digitais; 2) rompimento do debate baseado
em fatos; 3) nova roupagem para valores reacionários; 4) desinformação e
expansão de fake news. A internet se tornou um veículo primordial e necessário
para os extremistas na disputa por espaço e hegemonia política e, por conta dos
bons resultados nos últimos anos, no que diz respeito às eleições ao redor do
mundo, o fluxo de desinformação é contínuo, sem parar. Os alvos são sempre os
mesmos: a política é descredibilizada; a democracia é posta em risco; a
misoginia e o racismo são adotados como princípios norteadores.
Para completar, assim
como fizera Mussolini na Itália ao tentar se aproximar da religião católica com
as concordatas envolvendo o Vaticano, com o intuito de maquiar sua violência e
autoritarismo sob o véu da piedade, atualmente são os fundamentalistas religiosos
(com menção honrosa à nossa bancada evangélica) que se prestam ao papel de
“serviçais” dos neofascistas.
O dia 9 de novembro é
reservado para lembrarmos as atrocidades do passado, para não repetirmos no
presente os mesmos erros e comprometermos o futuro de todos. Seria importante
que tomássemos cuidado com os movimentos de certos atores políticos por aí…
¨ O que significa ser antifascista e por que o bolsonarismo é o
fascismo do século 21
Desde as eleições
presidenciais de 2018, as palavras “fascista” e “fascismo” passaram a figurar
assiduamente no debate político, principalmente pautadas pelos discursos e
práticas de Jair Bolsonaro.
Assim como Bolsonaro,
nos Estados Unidos, Donald Trump também enfrenta uma
<><> Mas o
que significa ser fascista e antifascista?
Armando Boito Júnior,
professor Titular de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), explica que o fascismo é um movimento social reacionário que se
situa nas camadas intermediárias da sociedade capitalista, ou seja, nas classes
médias, e tem como principal objetivo a eliminação da esquerda do processo do
político.
Segundo ele, o
fascismo tem uma ideologia “de culto à violência, anticomunista, contrária aos movimentos de modernização e
democratização dos costumes e da sociedade”,
e é um regime político cujo auge pode desembocar em uma ditadura
fascista, onde há a paralisia das liberdades coletivas e individuais.
Na mesma linha,
Valério Arcary, doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP),
explica que o fascismo surge para anular a força política da classe
trabalhadora para garantir a manutenção e o desenvolvimento dos negócios
capitalistas.
Para atingir esse
objetivo, afirma Arcary, a primeira meta do fascismo é anular os movimentos de
esquerda para, como ocorre no Brasil, "poder avançar na ruralização
da Amazônia, impor a superexploração sem contrato de trabalhos no mundo urbano,
anular a luta das mulheres por direitos iguais”, por exemplo.
Arcary entende o
bolsonarismo como um exemplo de fascismo do século 21, por isso movimentos
antifascistas também têm sido observados no Brasil. “O seu objetivo é subverter
todas as liberdades democráticas conquistadas pela geração da década de 1980.
Diante disso, surge um movimento antifascista, que tem como objetivo, então, a
defesa das liberdades democráticas e, portanto, interromper a corrente
fascista”, agregando todos aqueles que defendem as liberdades democráticas,
sendo, portanto, heterogêneo, explica Arcary.
<><> E o
neofascismo?
Diferente do fascismo,
o neofascismo traz certas particularidades do século 21, em relação ao
movimento fascista do século 20, organizado em torno de regimes como o de Adolf Hitler, na Alemanha, o de Benito
Mussolini, na Itália, o de António Salazar, em Portugal, e o de
Francisco Franco, na Espanha.
Segundo Valério
Arcary, “o neofascismo é o fascismo do século 21. Os fascistas do século
21 são uma família, mas o gênero é fascista. Assim como fascismo do século
20 tinha o salazarismo, franquismo, nazismo. Mas era um movimento de um mesmo
gênero, eram todos fascistas, divididos em várias famílias. O bolsonarismo é o
fascismo brasileiro do século 21”.
Boito Júnior destaca
que no neofascismo brasileiro há um grande envolvimento da classe média, e à
diferença do fascismo clássico, há um alinhamento aos setores da burguesia mais
ligados ao capital estrangeiro, criando uma espécie de fascismo neoliberal.
“O governo neofascista
no Brasil organiza prioritariamente os interesses do capital estrangeiro,
abrindo a economia privatizante, desregulamentado e cortando direitos dos
trabalhadores. É o programa neoliberal. Então, não tem contradição nenhuma
dizer que o fascismo brasileiro é neoliberal.”
<><> O
caso brasileiro em questão
Alguns autores
brasileiros se negam a utilizar o termo neofascismo ou fascismo para
o cenário atual, por acreditarem que não há elementos suficientes para tal
caracterização. Boito, no entanto, alerta: “Aqueles que ainda relutam ou
recusam estão subestimando o perigo que nos ameaça, porque todo governo
fascista tem como programa máximo implantar uma ditadura, usando o conceito de
fascismo você está consciente desse perigo, não utilizando você está subestimando o
perigo.”
Outros autores, ainda,
caracterizam Jair Bolsonaro como um
populista de direita. Para o professor da Unicamp, essa é uma caracterização
“equivocada, porque significa dizer que o Jair Bolsonaro pertence a mesma
família política do João Goulart, do Leonel Brizola, só que mais à
direita”.
Segundo Boito, o
populismo é uma política personalista, que cultua a figura do líder. “Bom, o
fascismo fez isso com Hitler e Mussolini.” Na verdade, para o professor, a
personalização é uma tendência geral da liderança política na sociedade
capitalista, e não é suficiente para caracterizar um movimento político.
Em consonância,
Valério Arcary afirma que, no Brasil, mais do que reacionário, o movimento
fascista é da extrema-direita e contrarrevolucionário. “Temer era reacionário.
Bolsonaro é contrarrevolucionário. É qualitativamente mais perigoso,
destrutivo, é o inimigo da democracia”, defende Arcary. Para o estudioso, a
peculiaridade do bolsonarismo é ser implementação do fascismo por dentro das
instituições.
“Ele vai anulando as
próprias instituições do regime democrático liberal, em que há pesos e
contrapesos. Para os fascistas, é preciso tirar do caminho qualquer tipo de
fiscalização do Congresso Nacional e de limitação do Supremo Tribunal Federal.
Ele tem de anular as outras instituições e concentrar todos os poderes no
Executivo, porque o fascismo é a contrarrevolução, não é só reação”, afirma
Arcary.
¨ 9 de novembro: Dia Internacional Contra o Fascismo e o
Antissemitismo
O dia foi
escolhido devido à sua carga histórica: em 9 de novembro de 1938, ocorreu a
“Kristallnacht” (Noite dos Cristais) na Alemanha, que representou os primeiros
passos da perseguição aos judeus pelos nazistas
##
“Lutar contra o
fascismo não é radical, é necessário” – escreve o site DayAgainstFascism.eu,
que atesta a importância da luta e organiza campanhas antifascistas em todo o
mundo. A data 9 de novembro foi estabelecida pelo Parlamento Europeu como Dia
Internacional contra o Fascismo e o Antissemitismo, a fim de combater a
intolerância e os discursos autoritários.
O dia foi escolhido
devido à sua carga histórica: em 9 de novembro de 1938, ocorreu a “Kristallnacht” (Noite
dos Cristais) na Alemanha, que representou os primeiros passos da perseguição
aos judeus pelos nazistas. A data ficou assim conhecida devido à imensa
quantidade de vidros quebrados que cobriam as ruas nas cidades. Nesta noite,
tropas alemãs destruíram mais de 8000 casas e lojas judias, incendiaram
sinagogas e atacaram judeus por todo o país.
Após esse ato de perseguição,
as autoridades não se manifestaram contra os ataques: o Holocausto tomava
forma. A discriminação e exclusão aos judeus tornou-se uma política responsável
pelo extermínio de 6 milhões, além da tortura e prisão de um número ainda
maior. Além disso, o regime nazista também aprisionou em campos de concentração
aqueles considerados subversivos e ameaçadores do estado, como opositores,
comunistas e minorias étnicas das regiões dominadas.
As Leis de
Nuremberg, propostas em 1935, já haviam determinado o antissemitismo
nos códigos alemães. Sob o discurso de defesa da “honra e do sangue alemão”, os
semitas tiveram sua cidadania violada pela própria lei nacional. Nesse sentido,
é importante perceber que toda essa barbárie foi determinada legalmente e que
grande parte da sociedade alemã também participou e compactuou com as ações de
intolerância. O discurso de ódio e a propaganda nazifascista, que propagou
preconceitos por toda a Europa, foram instrumentos necessários para a
ocorrência desse genocídio. Dessa forma, a luta contra o fascismo não pode ser
nunca relativizada. É necessário combatê-lo em sua origem, em sua raiz.
Em tempos em que se
percebe a replicação de discursos preconceituosos e opostos aos direitos
humanos, é preciso olhar para o passado. E não só no dia de hoje. Porque não se
pode esquecer tudo o que foi realizado em nome do progresso, em nome da defesa
da família e em nome da pátria. Não se pode relativizar todo o extermínio
realizado por regimes fascistas até o dia de hoje. Não se pode esquecer todas
as barbáries cometidas. E principalmente, não se pode permitir que elas sejam
realizadas novamente.
Fonte: Por Railson
Barboza, no Le Monde/Brasil de Fato/Sindprev-AL
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