Divã em
alta: por que tantas pessoas estão virando psicanalistas ou psicólogas?
Christian
Gonçalves era um bem-sucedido advogado, chefe do departamento jurídico em uma
empresa. Acumulava 22 anos de experiência na profissão, e um dia, em uma sessão
de terapia, rememorou sua carreira.
"Estava
emocionado. Contei que tinha orgulho de ser a voz daqueles que não tinham voz,
de participar da concretização da Justiça", lembra.
Concluiu
dizendo que era por isso que ele não gostava de ser advogado. "Não?",
perguntou a analista.
Foi
um ato falho, mas Christian não teve tempo de falar a respeito. A sessão tinha
chegado ao fim.
A
cena o deixou pensando por dias. Até que concluiu que não foi por esses nobres
motivos mencionados que ele escolheu o direito. Foi por algo bem mais prático:
estabilidade financeira.
Filho
de pais "hippies", como ele descreve, Christian diz que optou por uma
carreira com mais chances de afastá-lo das oscilações de renda que marcaram sua
infância.
A
conclusão foi um ponto de não retorno. "A partir daí, a carreira se tornou
insuportável, careta, a gravata passou a me dar calor", lembra Christian.
Ele,
que já vinha alimentando um interesse pela psicanálise, mergulhou no assunto,
abandonou o direito e virou psicanalista.
"Hoje,
aos 51 anos, sou um ex-advogado que se converteu completamente à
psicanálise."
Christian
faz parte de um movimento que vem ganhando força. Profissionais de diferentes
áreas que decidem, a certa altura da vida, se tornar terapeutas.
Uns
combinam a nova atividade com a antiga carreira. Outros, como Christian, largam
tudo e recomeçam do zero.
Segundo
a Organização Mundial de Saúde (OMS), uma em cada oito pessoas tem algum
transtorno ou doença mental no mundo.
A
pandemia e as crises que se acumularam nos últimos anos trouxeram a saúde
mental para o primeiro plano das preocupações globais.
No
Brasil, de acordo com um levantamento da ONG de saúde Vital Strategies, em
parceria com a Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), do Rio Grande do Sul,
os casos de depressão entre 2019 e 2022 (ou seja, antes e depois do auge da
crise de covid-19) aumentaram 41%.
Cada
vez mais celebridades de diversas áreas, como recentemente o cantor sertanejo
Zé Neto e o vocalista da banda de pop rock Imagine Dragons, Dan Reynolds, falam
sobre a própria experiência, o que vem ajudando a derrubar tabus.
Quando
se percebe um aumento de casos e se fala mais sobre o assunto, é natural que a
procura por ajuda também cresça.
Nos
Estados Unidos, a porcentagem de adultos que fazem algum tipo de terapia saltou
de 9,5% para 12,6% entre 2019 e 2022, segundo a NCHS, a agência governamental
para estatísticas de saúde.
Isso
acaba, consequentemente, impulsionando a demanda por mais profissionais.
No
Reino Unido, por exemplo, a Associação Britânica de Aconselhamento e
Psicoterapia registrou um salto de 27% de associados entre 2020 e 2023.
Por
aqui, a tendência também é de alta. O Censo Brasileiro de Psicologia, de 2022,
mostra que mais da metade (53,6%) dos psicólogos em atuação no país se formaram
depois de 2010.
O
Censo da Educação Superior aponta que a procura por cursos de psicologia
disparou no Brasil. Entre 2010 e 2021, o aumento de matrículas nessa graduação
foi de 112,4%.
No
ano passado, na Fuvest, principal vestibular do país, psicologia ficou atrás
apenas de medicina entre os cursos mais concorridos.
• Os novos
terapeutas
A
Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ), ao captar o
aumento da demanda, criou um projeto de bolsas para formação de
afrodescendentes, indígenas e refugiados.
Além
disso, criou um programa de formação para os chamados "leigos",
profissionais que não vêm das áreas mais próximas da psicanálise, a psicologia
e a medicina.
Aqui,
cabe uma breve explicação para esclarecer as diferenças.
A
psicologia é um campo amplo que trata do comportamento humano e de processos
mentais.
Um
psicólogo profissional cursou uma faculdade de psicologia, um curso de ensino
superior com duração média de cinco anos, e fez estágios supervisionados.
Já
a psicanálise tem uma abordagem que busca compreender camadas da mente humana:
o inconsciente e o subconsciente.
Um
psicanalista profissional tem uma formação universitária prévia — em qualquer
outra área do conhecimento — e fez depois um curso livre de psicanálise, que
dura em média dois anos.
Os
psiquiatras, por sua vez, são médicos. Eles cursam medicina e se especializam
em saúde mental.
Em
geral, os psicanalistas são psicólogos ou psiquiatras. Mas o crescimento do
interesse da sociedade pela saúde mental e o aumento da demanda por
profissionais está abrindo as portas para gente com outras formações.
Eles
não são poucos. De acordo com o Censo Brasileiro de Psicologia, 16,7% dos
psicólogos no país têm outro diploma universitário.
Ruth
Naidi, presidente da SBPRJ, diz que a procura de psicólogos e médicos pela
formação em psicanálise não se alterou nos últimos anos. Mas a de leigos, sim.
"Freud,
o criador da psicanálise, não queria restringir o ofício de psicanalista aos
médicos. Ele recusava a ideia da psicanálise como uma ciência médica",
diz.
Para
Naidi, a psicanálise requer uma formação humanista. "Isso, infelizmente, é
difícil de se adquirir na faculdade de medicina. A de psicologia favorece um
pouco mais, mas é incompleta".
Por
isso, segundo ela, os profissionais leigos contribuem com um olhar diferente,
especialmente os que vêm de áreas humanas e sociais.
É o
caso de Milton Kazuo Norimatsu. Aos 68 anos, ele fez um longo caminho até se
tornar psicanalista. Começou na primeira faculdade, de engenharia.
Nem
chegou a concluir o curso, nos anos 1970, mas a Escola Politécnica da
Universidade de São Paulo (USP) o ensinou a "fazer contas", o que
abriu o caminho para que ele construísse uma sólida carreira, que chegou ao fim
em 2004.
Naquele
ano, gerente financeiro de um escritório de advocacia em São Paulo, Norimatsu
sentia que a saúde não andava bem. Sofria de insônia e chegou a passar por um
procedimento de cateterismo.
Além
disso, achava que estava saturado do trabalho. "Isso despertou uma voz
interior que dizia que eu iria morrer se continuasse trabalhando como executivo
na área financeira", lembra.
"Interpretei
aquilo no sentido literal, mas hoje percebo que a ameaça era morrer
interiormente. Eu estava na crise da meia-idade."
Ele
largou o emprego e se dedicou integralmente à faculdade de direito, que estava
começando. Em 2009, agora formado e inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil,
Milton sentia a mudança de ares.
Sair
do "universo lógico-matemático para ser advogado representou um maior
reconhecimento da minha dimensão humana", diz.
"Mas
algo dentro de mim exigia um olhar mais ampliado."
Ele
seguiu na advocacia, porém sempre inquieto. Até que, em 2019, começou uma
pós-graduação em psicoterapia junguiana — ou psicoterapia analítica, linha que
enfatiza mais o inconsciente e busca integrar aspectos pessoais e universais da
psique humana, enquanto a freudiana foca mais no passado e nos conflitos
internos.
Em
2022, com a nova formação, encerrou as atividades no direito e começou a
atender como terapeuta.
"Concluí
que a maior obra a ser feita estava dentro de mim. Trata-se do processo que
Carl Gustav Jung [fundador da psicologia analítica] chamou de 'individuação',
que em termos reduzidos pode ser considerado um processo de diferenciação que
objetiva o desenvolvimento da personalidade individual."
Marta
Neckel Menezes, 58 anos, de Chapecó, também teve uma longa carreira antes de se
dedicar à saúde mental.
Começou
como datilógrafa aos 14 anos, cursou direito e se tornou servidora pública no
Tribunal Regional do Trabalho de Santa Catarina, de onde se aposentou após 26
anos de serviços prestados.
Aposentada,
fez cursos de capacitações voltadas ao desenvolvimento humano, mas um dia se
deparou com a grade curricular da faculdade de psicologia — e se encantou. Em
2022, aos 56 anos, ela se formou.
• Os desafios
de recomeçar
Largar
a carreira ou se desdobrar entre o emprego atual e o investimento para se
tornar terapeuta traz uma série de desafios, que vão de privações financeiras a
etarismo.
Marta
Menezes lembra que os gastos com mensalidades, livros e deslocamentos, além de
psicoterapia pessoal e eventos de extensão, foram consideráveis. Ainda mais que
sua fonte de renda passou a ser apenas a aposentadoria.
A
pediatra Renata Rossi, de São Paulo, atualmente se divide entre a medicina e a
psicologia. Ela cita também que o retorno financeiro, pelo menos no início da
carreira, pode não compensar. Ainda mais quando se é médico.
Foi
só na terceira vez que o trabalho com a saúde mental ameaçou entrar em sua vida
que ela o abraçou de fato. A primeira foi no vestibular: passou em medicina e
em psicologia, mas optou pela primeira.
Na
graduação, ao definir a especialidade, ela cogitou a psiquiatria infantil, mas
acabou indo para a cardiologia pediátrica. Mais de 20 anos depois, o cenário
mudou.
"A
pandemia foi crucial. Por ser médica e trabalhar em hospital, fiquei separada
dos filhos, tendo uma vida dupla com muito estresse no trabalho e muito tempo
livre e calmaria em casa", lembra.
Pouco
antes dos primeiros meses de quarentena, Rossi começou a registrar e estudar
sonhos, se interessou por neurociência. Acabou caindo na psicologia analítica
de Jung, que hoje é seu trabalho, duas vezes por semana. Nos outros dias, segue
no hospital.
Christian
Gonçalves, por sua vez, lembra do estigma de largar a carreira e começar do
zero, ainda mais quando já se tem estabilidade financeira e uma idade em que
não é comum dar uma guinada dessas.
"O
mais difícil foi, em dado momento, achar que eu precisava justificar para as
pessoas a minha vontade. Isso me assustava", diz.
"Financeiramente,
tive que dar alguns passos para trás, mas isso não me afastou do desejo de
permanecer aqui e continuar. Em algum momento, a questão financeira vai
melhorar."
• As vantagens
da experiência
Renata
Rossi diz que sua formação como médica é interessante e proveitosa no novo rumo
de sua carreira.
"Porque
lido diretamente com queixas do sofrimento humano", diz.
"Como
pediatra, tive oportunidade de me relacionar com pacientes psiquiátricos e com
famílias e suas dinâmicas."
Para
Milton Norimatsu, as profissões anteriores se somam, tanto no que representam
em sua trajetória como no serviço que ele pode oferecer aos pacientes.
"Houve
a profissão de ‘entrada’, executivo na área financeira, e a intermediária,
advogado, que mesclava a ‘razão’ da anterior com o lado humano. Finalizei com
uma profissão integralmente voltada ao humano", diz.
"Acredito
que essa trajetória me fez acumular experiências de vida que me diferenciam de
quem está começando agora. Mas ser diferente não é ser melhor nem pior."
A
idade, que pode fomentar preconceito, tem essa potencial vantagem da
experiência. Rossi acredita que tem uma visão diferenciada em relação a colegas
no início da carreira.
"Tenho
53 anos, é mais do que apenas uma outra profissão. São experiências acumuladas,
filhos, separações, mudanças de cidade e de país, perdas e lutos, conquistas…
São oportunidades para viver e reviver os acontecimentos, entender os ciclos em
nós e nos outros."
Para
o mercado, a chegada desses novos profissionais é bem-vinda. "O perfil é
mais eclético, obviamente", diz Ruth Naidi, da SBPRJ.
"Nunca
antes tivemos tantos candidatos negros ou com padrões financeiros mais baixos
ou profissionais leigos."
• Conselhos
para quem quer seguir esse caminho
Marta
Menezes acredita que quem estiver interessado em se enveredar para a psicanálise
deve estar mobilizado para se aprofundar para valer.
"A
pessoa tem que ter o desejo de estudar as práticas e saberes da psicologia, de
ocupar um lugar de escuta, acolhimento e cuidado", diz.
"É
preciso estar preparado para uma imersão profunda na dimensão mais radical da
existência humana."
Milton
Norimatsu ensina que viver o que se aprendeu, na psicologia junguiana, é
fundamental.
"É
compreender que existe uma dimensão em nossa psique, o inconsciente, que atua
de forma autônoma e que almeja ser conhecida. Deve-se mergulhar nesse processo
de autoconhecimento."
Renata
Rossi, por sua vez, dá um conselho prático: não se afobe.
"A
formação leva tempo. Se a pessoa já estiver bem estabelecida, dependendo da
idade e de outros fatores, pode fazer de forma mais gradual, focando numa
formação sólida antes do atendimento."
Para
ela, isso é essencial para combater o que acredita ser um grande perigo atual,
a medicalização da psicologia.
"Não
devemos olhar para sintomas e queixas como doenças a serem combatidas e
tratadas."
Aposentada
no TRT-SC, Marta vive a satisfação de se realizar em outra carreira.
"Desfruto
da alegria de participar da jornada psicoterápica dos meus pacientes e de
escutar as singularidades de cada sujeito que atendo — no que é dito, no que
falta dizer e no que impede que se diga."
Ela
e os outros profissionais entrevistados fazem coro à imensa maioria dos
entrevistados pelo Censo Brasileiro de Psicologia.
Segundo
o levantamento, 85,7% dos psicólogos do país se consideram realizados com a
profissão.
Para
Milton, o desenvolvimento de seu processo de individuação fez com que ele
tivesse experiências que iam além da esfera pessoal.
"Continham
aspectos mais gerais que, ao serem compartilhados, poderiam ajudar outras
pessoas que estivessem passando por problemas semelhantes aos que enfrentei,
especialmente na meia-idade."
Justamente
por isso, ele acredita que presta um serviço melhor à sociedade do que quando
era advogado.
"Como
executivo da área financeira, então, nem se diga", enfatiza.
"Vejo
muito mais sentido no que estou fazendo agora. A sensação de tédio constante
sumiu, minha vida se renovou."
Christian
Gonçalves também usa a antiga profissão como parâmetro para avaliar que, hoje,
se considera mais realizado.
"Se
na advocacia eu tenho que justificar e racionalizar para obter alguma coisa
objetiva, aqui na psicanálise eu lido com a subjetividade. Eu não tenho que ser
a voz. Eu sou a escuta."
Fonte:
BBC News Brasil
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