quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Balanço da esquerda no final de 2024

Começando nossa análise da situação política atual pelo fim: a eleição presidencial de 2026 deveria ser nosso ponto de conclusão, mas a realidade impõe desde já entender que o campo da esquerda, especialmente o PT, não tem alternativa a não ser o nome de Luiz Inácio Lula da Silva para esse pleito. Lula se consolidou como a única liderança capaz de unir dois pontos cruciais: o compromisso com as pautas populares e a habilidade de negociação política. A popularidade de Lula é grande, principalmente devido à sua capacidade de comunicação e ao compromisso contínuo com as camadas mais pobres e vulneráveis. Ele fala uma linguagem acessível a todos, independentemente de nível cultural ou educacional.

Além de sua popularidade com as massas mais pobres, Lula demonstrou notável habilidade em negociar politicamente, conseguindo articular-se até com setores conservadores, algo raro para uma figura de esquerda. Essa habilidade, constatada em seus primeiros mandatos, é essencial atualmente, com um Congresso onde a esquerda ocupa apenas um quarto das cadeiras. Todos esses fatores fazem de Lula um candidato inevitável à sucessão de si mesmo. Esse sucesso, porém, levanta uma preocupação: se Lula for reeleito, ele deixará a presidência quase meio século após emergir como grande líder popular, algo raro em democracias complexas como o Brasil. Um caso comparável seria Fidel Castro, mas Cuba é um país menor e menos complexo, além de não ser uma democracia. Já alerto que não culpo Lula por o PT não haver gerado, neste longo período, lideranças comparáveis à sua; pelo que conheço do Presidente, ele se empenhou sempre em projetar nomes qualificados, entre eles, Fernando Haddad. Mas é um fato: o PT é menor que o assim-chamado lulismo. E essa situação, preocupante, se dá embora o PT seja o único partido no Brasil digno de ser chamado de partido! Apesar de termos dezenas de agremiações, o PT é a única com convicções políticas claras. Já tivemos, além dos sempre pequenos partidos comunistas ou socialistas, outro grande partido com valores definidos, o PSDB, que defendia sob o nome de social-democracia uma política considerada por alguns como neoliberal. Essa política buscava liberalizar a economia, ao mesmo tempo em que promovia políticas sociais melhores do que as dos governos anteriores no Brasil. No entanto, sendo atualmente o único partido digno de tal nome, o PT mostra o “deserto” restante de discussão política em que vivemos.

Alberto Carlos Almeida, cientista político, tem uma frase relevante: no Brasil, cada um tem direito a um partido para chamar de seu. Isso significa que, quando alguém perde uma disputa dentro de um partido, cria um novo partido para defender suas ideias. Tal postura dificulta a formação de uma educação política sólida, pois qualquer divergência se converte em ruptura, impedindo o crescimento de ideias dentro de uma família política comum. Esse é um dos motivos pelos quais temos tantos partidos, e a relação com eles acaba sendo patrimonialista, ou seja, cada partido se torna uma propriedade privada. Recentemente, o PRTB, partido sem representação no Congresso, lançou Pablo Marçal como candidato em São Paulo. Seguiu-se uma polêmica: teria havido, antes de sua indicação, um acordo para se entregar a direção do partido a uma pessoa específica – o que daria a entender que o PRTB seria tratado como propriedade privada. Essa tendência não é incomum nos partidos brasileiros – um modelo do qual o PT escapa. Aliás, já no começo do governo Lula 1, uma divergência irreconciliável dentro do PT resultou na criação do PSOL. É verdade que a divergência era radical, e não cabiam os dois grupos no mesmo partido.

Em democracias mais avançadas, divergências dão vida ao próprio partido. Em 2008, após uma disputa acirrada pela indicação presidencial entre Barack Obama e Hillary Clinton, ambos continuaram no Partido Democrata. Hillary Clinton tornou-se Secretária de Estado de Barack Obama e mais tarde foi candidata dele à sua sucessão. No Brasil, essa articulação é rara. Vejam o episódio da convenção do PMDB em 1982: quando Franco Montoro venceu a indicação, seu adversário Orestes Quércia ameaçou mudar de partido e pôr em risco sua vitória; Franco Montoro acabou-lhe cedendo a posição de vice em sua chapa. No caso, porém, não foi uma composição, mas sim uma quase chantagem por parte de Orestes Quércia. No debate que se seguiu a minha fala, uma pessoa levantou a questão da necessidade de um partido de direita democrático – e se nós, que não somos de direita, deveríamos lutar por isso. O problema é que, embora seja desejável um partido de direita democrático, essa ideia é mais defendida pela esquerda do que pela direita. Já tivemos essa sensibilidade democrática à direita, especialmente com o grupo que se formou em torno de Fernando Henrique Cardoso na década de 80, culminando em sua eleição presidencial em 1994. Esse movimento buscou mostrar à direita e ao empresariado que era possível disputar e vencer eleições sem recorrer a golpes ou ditaduras. Em parte, devemos a essa catequese da direita por egressos da esquerda a relativa paz institucional que vivenciamos do impeachment de Fernando Collor, em 1992, até o de Dilma Rousseff, em 2016. Foi provavelmente, em toda a nossa história, o único período em que tivemos uma direita democrática. Contudo, após perderem quatro eleições consecutivas, as forças de direita apoiaram o golpe de 2016. Pagaram um preço por isso: tornaram-se um sustentáculo – subordinado – da extrema direita. Às vezes, parece-me que a extrema direita é como um inseto que causa uma doença incurável: é difícil, uma vez assumido o extremismo, voltar a uma posição que se inscreva no arco democrático. Assim, durante duas décadas, mesmo quem tinha uma sensibilidade extremista votou num partido, o PSDB, que detinha um histórico de defesa dos direitos humanos e de preocupações sociais. Seus líderes vinham da luta contra a ditadura. Contudo, quando, para se chegar ao impeachment de Dilma Rousseff, o candidato por ela derrotado em 2014 se subordinou ao presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha, mesmo sendo este último acusado de delitos de corrupção, o peso das duas tendências se inverteu. Em vez de termos uma pequena extrema direita votando na direita, passamos a ter a direita seguindo a extrema direita. É o que hoje temos.

Na verdade, a educação da direita para aceitar a democracia deveu-se a uma parte da esquerda, que foi se moderando e se convenceu, em algum momento da longuíssima agonia da ditadura, de que a democratização não poderia vir da esquerda, ou só da esquerda, mas precisava de uma direita civilizada. Desta forma se estabeleceu uma divergência entre forças então progressistas, das quais umas foram criar o que pretendia ser um “grande partido popular” (que acabou sendo o PT), outras priorizaram uma grande aliança com a direita não (mais?) adepta de tortura, censura e ditadura. Essa segunda família acabaria sendo a coligação de Fernando Henrique Cardoso, que unia forças desde a direita moderada até a centro-esquerda. Na década de 2000 e em parte de 2010, a política brasileira era comumente dividida em três partes: um terço apoiava o governo do PT, outro terço fazia oposição, e o último era variável, mudando conforme a conjuntura. Eu criei as expressões “terço gordo”, para o desempenho vitorioso do PT, que ia além dos 36% e chegava quase aos 40, o que se mostrava suficiente para vencer eleições, ao se expandir e além disso atrair, no segundo turno, votos do terço neutro; e a de “terço magro”, para a queda do PSDB abaixo dos 30%. O terceiro terço era disputado, muito eleitor se convencia dele, a partir da campanha eleitoral. Esse foi um período em que, ao longo da campanha, a esquerda crescia. A discussão política atendia assim ao que dela esperamos: esclarecia propostas, desfazia mentiras, aproximava o eleitor de seu interesse. Isso parou de acontecer em algum momento – possivelmente, em 2014, quando a avalanche de mentiras e fatos plantados disparou. O breve iluminismo se esgotou, ante a intensidade do que ainda não se chamavam fake news, mas já tinha seus traços. A campanha de 2014 mostrou isso, com mentiras divulgadas na véspera da eleição e com a revista Veja espalhando cartazes com a capa do número datado do dia do pleito, quando já era proibida a propaganda política. Mas, para além das mentiras, esse esgotamento do debate político já mostrava o engessamento – que em breve ocorreria – dos três terços. Vejam que nos últimos anos, no Brasil como nos Estados Unidos, a derrota de Jair Bolsonaro e a de Donald Trump não diminuiu, longe disso, o número de seus simpatizantes ou partidários. Possivelmente, o deslocamento de todo o debate político para a questão da corrupção contribuiu muito para isso. Quando se fala de crimes, não há o que negociar. Podemos negociar políticas sociais, econômicas, tudo, mas com criminosos não há o que tratar. A criminalização da política, pelos lavajatistas, assim despolitizou o ambiente brasileiro, substituindo o diálogo pelo ódio. Nos últimos dez anos, esse engessamento se expressa no fato de que uma extrema direita assumiu o espaço da antiga direita. No Brasil e em outros países, essa extrema direita não adota os valores democráticos típicos da direita tradicional, como a europeia, dificultando o diálogo e reduzindo a disposição em mudar de opinião. Esse contexto também trouxe um desvio de foco para pautas moralistas, esvaziando a política e afastando questões essenciais. Lula, no entanto, é uma das poucas lideranças que conseguem transitar entre diferentes segmentos, inclusive entre setores conservadores, como demonstrado em seus primeiros mandatos. Os governos Lula 1 e 2, seguidos por Dilma, impulsionaram o que se chamou  a inclusão social pelo consumo, permitindo que a população de baixa renda adquirisse produtos básicos, beneficiando assim a economia nacional.

<><> Consumo ou educação política?

Contudo, houve críticas a essa política de inclusão social, apontando que ela não gerou uma consciência política. Faltou ao PT, nos governos de Lula e Dilma, uma educação política que explicasse melhor o que é ser de direita ou esquerda, indo além de caricaturas e de campanhas baseadas em acusações de corrupção ou incompetência. Uma verdadeira educação política envolveria, em primeiro lugar, o entendimento das diferenças entre direita e esquerda a partir das propostas e dos valores de cada lado. Esse tipo de discussão se perde, quando as campanhas focam apenas em desqualificar o adversário, usando-se o argumento mais comum no Brasil – o da acusação de corrupção. (Por sinal, nos primórdios do PT, a acusação que mais se lhe fazia era de incompetência – a tal ponto que Paulo Maluf, que se apregoava como competente, foi certa vez ironizado por Lula, que disse que o adversário competia, competia e perdia).

O segundo ponto da educação política diz respeito às políticas públicas e sociais, importantes em governos social-democratas como os da Europa Ocidental e do Canadá após a Segunda Guerra Mundial. Esses governos, ao garantirem direitos básicos como saúde, educação, transporte e segurança públicos, buscavam igualar as oportunidades no ponto de partida, o que tornava e torna toleráveis as desigualdades no ponto de chegada. Vou dar exemplos de falta de educação política observados nos governos do PT, de Lula e Dilma Rousseff. Antes disso, lembro o comentário do cientista político Luciano Martins, amigo pessoal de Fernando Henrique Cardoso, que nos anos 90 criticou o PSDB por este não ter promovido uma educação política na sociedade brasileira. Embora ele não tenha detalhado o que entendia por essa educação, é algo que considero importante, e tentarei explicar com base em alguns exemplos. Durante o governo Lula, ele frequentemente se mostrava feliz em seus discursos ao dizer que as pessoas mais pobres estavam finalmente podendo fazer três refeições diárias e, ocasionalmente, consumir carne aos fins de semana. Isso foi simbolizado pela imagem do churrasco com picanha, representando o ganho de conforto e prazer para a população de baixa renda. Além disso, houve uma expansão no acesso à linha branca, com mais brasileiros adquirindo geladeiras, fogões, micro-ondas, máquinas de lavar, que eram itens antes inacessíveis para muitos. Contudo, esse discurso e essa imagem eram eticamente neutros. Lula enfatizava o conforto e o prazer, mas não apresentou o combate à fome como uma grande questão ética. A erradicação da fome foi comunicada mais como uma conquista de bem-estar do que como um objetivo moral elevado. O PT, assim, se distanciou da retórica ética que o caracterizava quando estava na oposição, onde sempre defendia duas causas centrais: o combate à miséria e o combate à corrupção. Antes de assumir o governo, o PT era considerado um partido com forte compromisso ético, a ponto de muitos duvidarem que, ao chegar ao poder, ele conseguisse governar. Entretanto, ao longo do governo, houve uma mudança no discurso, mais focado em trazer conforto às classes populares e menos em sustentar uma bandeira ética. Esse foco na satisfação material criou uma abertura para que, na campanha de 2006, o adversário de Lula, Geraldo Alckmin, pudesse usar o slogan “Por um Brasil decente” – algo que seria inconcebível em outro momento. Essa abordagem foi um dos fatores que enfraqueceram a imagem do PT, especialmente junto às classes médias, muito sensíveis ao tema da ética na política. Esse episódio ilustra como o PT, entre 2003 e 2016, não conseguiu – ou nem tentou – manter uma visão ética robusta em sua comunicação. Essa falta não só afetou a percepção do partido, mas também enfraqueceu o que considero essencial em uma política progressista: uma ética positiva. Diferentemente da direita, que frequentemente limita a ética à ausência de corrupção – que é uma forma do que chamo ética negativa, uma ética da contenção e não da ação –, a esquerda deve ter uma ética afirmativa, que promova valores como alimentação para todos e uma vida digna.

No começo de meu trabalho como Ministro da Educação, mencionei essa visão à presidenta Dilma Rousseff, entendendo que o combate à fome e à miséria deveria ser tratado como uma causa ética fundamental. Não deveríamos deixar os temas éticos a cargo da oposição – que teria uma visão tímida da ética, apenas negativa – mas precisávamos assumir de volta essa que foi uma bandeira do PT. Dilma Rousseff gostou da ideia, e gostou de novo meses depois quando retornei ao tema. O fato de ter gostado também da segunda vez indica, porém, que o assunto tinha saído do seu radar: essa ideia foi perdida.  Em suma, a ética é fundamental para uma política progressista, que visa à emancipação do ser humano e à transição do “reino da necessidade” para o “reino da liberdade”, conforme conceituado por Marx. Outro episódio ocorreu no governo Dilma Rousseff, durante o lançamento das obras do conjunto habitacional do Pinheirinho, em São José dos Campos, no mês de março de 2014. Na ocasião, Dilma afirmou aos moradores que eles não deviam nada a ninguém, mas sim a si mesmos e à própria mobilização. Embora compreensível a intenção de evitar que políticos explorassem a entrega para fins eleitorais, essa fala desvalorizou a importância das políticas públicas e do papel do governo nas conquistas sociais. Dessa forma, criou-se uma impressão de que a mobilização popular já bastaria para alcançar essas conquistas, o que diminui o reconhecimento da política como um instrumento essencial de transformação. Esse caso exibe a dificuldade, ainda que nutrida pelas melhores intenções, de expor as políticas públicas como devedoras da política. É tal a aversão dos cidadãos comuns – e da própria presidenta Dilma Rousseff – pelos políticos que se joga fora o bebê com a água do banho. Mesmo que nossos políticos não estejam à altura de sua missão, não temos saída fora da política. Essa situação desperta uma dupla pergunta: por que o PT e a esquerda deixaram de ser atraentes para jovens idealistas e também para as camadas periféricas da população?

Dois exemplos dessa perda de apelo são a derrota do PT nas periferias de São Paulo e a ascensão de figuras como Pablo Marçal, que representam uma visão conservadora e individualista. Um caso interessante é o da deputada Tábata Amaral. Trinta anos atrás, alguém com seu perfil provavelmente se juntaria ao PT, que era o partido dos jovens idealistas empenhados em mudar o mundo. Hoje, o PT parece não atrair mais esse tipo de militância. Essa perda de apelo, tanto entre as camadas periféricas (em proveito de Pablo Marçal) quanto entre os idealistas de classe média (caso de Tábata Amaral, embora ela seja de origem pobre), que já formaram parte significativa da militância do PT, é um ponto que deve gerar preocupação e reflexão sobre o futuro do partido e da esquerda no Brasil. Os casos de Tábata Amaral e Pablo Marçal são instrutivos, embora seja importante, especialmente para um público de esquerda, lembrar que eles são diferentes e opostos. Na recente campanha eleitoral em São Paulo, Tábata Amaral foi quem mais corajosamente enfrentou Pablo Marçal. No entanto, ambos representam indicadores da deficiência do PT e da esquerda em atingir públicos que historicamente seriam seus. Tábata Amaral é jovem, idealista e assumiu a educação como bandeira. Nos anos 1990, seria natural que visse o PT como uma plataforma para seus valores e seu empenho. No entanto, na década passada, ela seguiu outro caminho, encontrando espaço para atuar na educação através de institutos do terceiro setor, financiados pelo setor privado, com foco na melhoria da educação pública básica. Há 30 anos, seria quase impensável que alguém como Tábata Amaral não se voltasse para o PT. Este reunia tudo o que eram propostas para um mundo melhor, inclusive as contraditórias entre si. Mas isso não mais acontece, e tal fenômeno deveria fazer perguntar por que o PT deixou de ser o desaguadouro para muitos que querem melhorar o mundo. Atacar a classe média não resolve isso. Criticá-la ou atacá-la não resolve essa questão fundamental.

O caso de Pablo Marçal é bem diferente. Ele aparenta não ter valores éticos, como se viu na campanha, mas atraiu muitas pessoas da periferia pobre de São Paulo, que viram nele uma solução pessoal e individualista para seus problemas. Neste caso, também é inútil tentar desmenti-lo ou refutá-lo (ainda menos, tentarem “explicar-me” por que ele não é um modelo positivo; eu o sei muito bem; se alguém não entendeu que eu sei, só posso lamentar). É preciso entender por que ele conseguiu essa conexão, enquanto o PT, que historicamente representa esse público, não. Esse problema lembra uma crítica feita por Elio Gaspari ao PSDB, quando esse partido estava no auge: ele dizia que, quando se discordava dos tucanos, eles repetiam a mesma posição com outras palavras, acreditando que a discordância se devia apenas a uma falta de compreensão. Agora, essa retórica aparece no PT . Quando alguém critica o partido, a resposta é explicar de forma paternalista e condescendente por que Tábata Amaral ou Pablo Marçal estariam errados e por que a visão petista estaria certa. Vemos assim um partido, que abriu tanto espaço à discussão e à divergência, sendo tomado por uma ortodoxia. Simplesmente explicam, inclusive a mim, por que Tábata Amaral estaria errada e por que Pablo Marçal seria ainda “um pouco” pior. Como se eu não tivesse minhas divergências dos dois. E pior, como se eu ou muita gente não soubesse pensar, e a única saída seria mais do mesmo, muito mais do mesmo. É muito preocupante essa postura, porque, simplificando, ela significa que quando algo não dá certo, em vez de consertar, se insiste no erro. A radicalização no erro é algo que deve ser evitado por quem faz política. Porque ela é um caminho seguro para a derrota! Isso ficou evidente na campanha para a prefeitura de São Paulo, onde o presidente Lula insistiu na candidatura de Marta Suplicy como vice, sem que isso trouxesse impacto significativo nos votos de Guilherme Boulos. A proporção de votos foi praticamente a mesma de quatro anos atrás, mesmo somando o histórico eleitoral de Marta Suplicy. Portanto, é essencial compreender o que está acontecendo, baixar o “salto alto”, respeitar a divergência e buscar entender o cenário atual.

Finalmente, vamos falar sobre os impasses atuais – começando pela contribuição civilizatória de dois presidentes extraordinários da história recente do Brasil. O primeiro é Fernando Henrique Cardoso. Sei que uma simples menção elogiosa a ele pode gerar reações, aqui, de quem não quer nem ouvir o que será dito. Mas, a meu ver, a grande obra de Fernando Henrique não foi tanto o Plano Real, que estabilizou a inflação e afastou do Brasil o incômodo terrível herdado da ditadura militar, a qual deixou o poder com uma inflação superior àquela que serviu de pretexto para a deposição de João Goulart pela direita brasileira, 21 anos antes. A principal façanha de Fernando Henrique, em minha opinião, foi normalizar a relação entre direita e esquerda. Lembro até uma declaração de Luis Nassif, dizendo que a maior obra dele foi transmitir o cargo para Lula… Em grande parte, foi isso mesmo: quando Lula transmitiu a presidência a Dilma Rousseff, foi a primeira vez na história do Brasil que um presidente democraticamente eleito recebeu o cargo de um igualmente eleito e entregou para outro, no caso outra, também eleita pelo povo. E precisamos que isso volte a acontecer, já que a deposição de Dilma Rousseff e a eleição mais que duvidosa de Jair Bolsonaro criaram um problema na normalização constitucional brasileira. De todo modo, a transição exemplar realizada por Fernando Henrique talvez tenha sido sua maior realização, ao reduzir a hostilidade política, que como se sabe tornou a crescer no governo Dilma Rousseff.

Já a grande obra de Lula, também a meu ver, foi permitir que uma boa parte da população brasileira alinhasse seu voto aos seus interesses ou sua consciência política. Nas primeiras eleições presidenciais de que Lula participou, era comum que os pobres organizados votassem nele, enquanto os pobres não organizados votavam em demagogos de direita. Foi a época em que estiveram no auge Paulo Maluf em São Paulo, Antônio Carlos Magalhães na Bahia e vários outros coronéis no interior do país. Com Lula, uma série de políticas públicas mudou a percepção de muitas pessoas mais pobres sobre sua situação, dando-lhes a sensação de que podiam atuar diretamente, em seu próprio nome, em vez de dependerem da sempre parca caridade dos grandes senhores oligárquicos. Esse avanço permitiu colocar o Brasil em uma linha que caracteriza as democracias avançadas, onde o voto se alinha com o interesse próprio. Essa consciência dos interesses próprios geralmente é mais visível nas classes com maior poder econômico, que votam e fazem campanhas para defender seus interesses. Agora, se sempre fosse assim, a direita teria o voto dos ricos e a esquerda o dos mais pobres, significando que a esquerda ganharia as eleições sempre. Aqui no Brasil, desde 2002, em todas as eleições livres, a esquerda ou centro-esquerda venceram, com exceção de 2018, desfigurada pela atuação partidária da Lava Jato, que incluiu a suspensão dos direitos políticos e prisão do candidato favorito, Luiz Inácio Lula da Silva.

Para evitar esse alinhamento de votos, a direita frequentemente introduz outras questões no debate, como as “guerras culturais”, nos EUA, onde pautas sobre sexualidade são trazidas com obsessão. No Brasil, tais pautas surgiram com foco inicial na educação, alvo de fortes investimentos e expertise dos governos petistas, especialmente Lula e Dilma Rousseff. No governo de Dilma Rousseff, apareceram factoides como “Escola Sem Partido” e “ideologia de gênero”, assustando famílias com receios infundados sobre a sexualidade de seus filhos, e afastando setores que ganharam com as políticas públicas dos governos petistas. Posteriormente, surgiram pautas como a luta contra o aborto, mesmo nos casos previstos na legislação, como o recente projeto de lei “pró-estuprador”, submetido por um deputado de extrema direita, que propunha uma pena de prisão mais severa para mulheres que abortassem do que para o próprio estuprador. Esse investimento em factoides e mentiras foi e é intenso. Recentemente, vimos isso nas eleições dos EUA, que Donald Trump venceu manipulando justamente esses medos, essas paixões negativas. No Brasil, a extrema direita conseguiu até mesmo a reeleição de prefeitos que não protegeram, das enchentes, Porto Alegre e, dos cortes de energia, como São Paulo.

O alinhamento entre voto, participação e consciência política foi desfigurado pela história recente – pós-2008, isto é, após a crise econômica que dos Estados Unidos se espraiou pelo mundo, disseminando miséria, fome e mais geralmente perda de oportunidades. Uma discussão essencial hoje, nas redes, na mídia e nos ambientes políticos, é como o PT pode lidar com essa situação.

Um ingrediente interessante vem de 2011, quando Fernando Henrique Cardoso escreveu o artigo “O Papel da Oposição”, colocando a oposição no singular e destacando a oposição do PSDB, ao custo de ignorar o significativo desempenho de Marina Silva, na então recente eleição presidencial de 2010. Para ele, o PSDB não teria muito a propor aos mais pobres, que seriam eleitores do PT, mas à medida que esse contingente melhorasse de vida, o PSDB ganharia seus votos e suas convicções. A ideia de Fernando Henrique era que o PSDB atrairia os pobres, ao prosperarem e se tornarem de classe média. Na prática, hoje vemos antigos eleitores do PT nas periferias votando na extrema-direita, bem mais extremista do que o PSDB de então. Fernando Henrique errou quanto ao beneficiário, mas acertou, há 13 anos, quanto ao deslocamento. O que vimos nessa eleição revela a atração que a pauta do empreendedorismo exerce, somada ao receio das pautas sexuais mais liberais.

A campanha de Pablo Marçal, em São Paulo, mostrou também uma dificuldade do PT em atrair os trabalhadores de aplicativos. O PT denuncia a exploração desses trabalhadores e propõe regularização trabalhista com direitos previdenciários, mas muitos preferem a flexibilidade do trabalho com aplicativos, que lhes permite definir horários e evitar o controle rígido (e presencial!) do patrão, uma questão que a esquerda tende a desconsiderar. Essas questões ilustram valores que não têm sido captados pela esquerda. As candidaturas de Pablo Marçal e de Tábata Amaral – totalmente diferentes entre si, até porque ela foi quem mais o enfrentou durante a campanha – mostram o que a esquerda deveria refletir sobre seu discurso. Tábata simboliza os jovens idealistas, que preferem o trabalho direto em projetos de melhoria da educação pública, em vez da militância sindical tradicional, como tão bem foi conduzida pela APEOESP. Esse ponto merece atenção. Quando fui ministro da Educação, em 2015, percebi que havia três grupos na política educacional: o governo, os trabalhadores da educação e o terceiro setor, composto por ONGs e institutos que discutem expertise e propõem boas práticas, inclusive do exterior. O terceiro setor se dispõe a trabalhar com qualquer governo, o que por sinal – ante sua colaboração com o governo Temer, quando apoiou uma reforma do ensino médio que se mostrou confusa, e sua tentativa de cooperar com Bolsonaro, que não quis saber dele – só aumentou a desconfiança dos sindicatos do setor educacional público em relação ao mesmo terceiro setor. Mas o fundamental é que a esquerda recupere a capacidade de atrair. Parece que muito da atuação da esquerda na área educacional se resume ao clamor por mais verbas para a educação; isso é necessário, mas não suficiente. Por que a esquerda não investe em estratégias de mobilização e educação política, como as universidades de verão dos partidos europeus, em especial portugueses e franceses, que são grandes eventos de formação política para jovens? Falei disso a líderes do PT, que não mostraram interesse. Nossa esquerda, apesar de historicamente popular, não realiza isso. Isso atesta uma carência de novas lideranças e uma dificuldade em atrair um público jovem idealista, que se sente motivado por outras figuras políticas. Na prática, esse desinteresse leva a um distanciamento dos jovens, especialmente os idealistas. É crucial que a esquerda passe a tratar esses jovens não como “eles”, mas com dignidade e respeito. Afinal, falar sobre esses grupos na terceira pessoa, como um entomologista falando de insetos, em vez de como um político falando com seu interlocutor, é um grande erro. Se quisermos mostrar respeito, devemos falar na, melhor dizendo, com a segunda pessoa. Ou seja, para atrair e dialogar com essas pessoas, a esquerda precisa escutá-las e respeitá-las genuinamente.

 

Fonte: Por Renato Janine Ribeiro, em A Terra é Redonda

 

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