Danielle
Tega: Um jornalão amigo e a serviço do golpismo
“Aceitem a democracia”, diz o título de um “artigo de opinião”
publicado no jornal Folha de São Paulo em 10 de novembro de 2024 pelo o
golpista e genocida Jair Bolsonaro. Por quais motivos um jornal de tal alcance
referendaria tal publicação? “É a tentativa de normalizar a extrema-direita”,
comentaram acertadamente colegas nos momentos seguintes à difusão do artigo,
trazendo reflexões sobre o contexto político atual, em um quadro global de
Mileis, Trumps, Marçais, Bolsonaros e tudo que suas ideias e ações concretizam.
Está longe dos propósitos deste texto aprofundar as necessárias
discussões sobre bolsonarismo, conservadorismo, neoliberalismo ou sobre as
disputas em torno do conceito de democracia. As linhas que seguem têm um
objetivo que, embora modesto, pode contribuir com o debate: elas são menos
sobre o autor do texto, e mais sobre o veículo que o recompensou com um espaço
nobre de exposição. Afinal, essa não foi a primeira vez que a Folha de São
Paulo tentaria normalizar a extrema-direita, tampouco que apoiaria regimes
autoritários.
No ano passado, na véspera de completar mais um ano do golpe de
1964, o editorial do jornal, ou seja, o espaço em que o veículo manifesta
aquilo que pensam seus editores-proprietários, já havia chamado atenção. Sob o
sugestivo título “Bolsonaro de volta”, afirmava que “O bolsonarismo até
poderia, se abandonasse a violência e o autoritarismo, liderar uma oposição
saudável ao PT. Esse não é infelizmente, o desfecho mais provável.”
Agora, pasmem, essa foi a “versão melhorada” de uma anterior.
Publicada na edição virtual e corrigida horas depois, o editorial precedente
dizia o seguinte: “Opondo-se ao petismo, o bolsonarismo pode dar vigor à
política brasileira – desde que abandone a violência, a atitude antidemocrática
e a polarização irracional”.
Sabemos que a dissimulada reivindicação por democracia presente
no título do artigo de opinião está longe de significar um “abandono da atitude
antidemocrática”, tal como demanda o editorial. Nos dois momentos, estão em
pauta estratégias para a “normalização” do bolsonarismo, dessa extrema-direita
que compactuou com a morte de mais de 700 mil pessoas durante a pandemia
covidiana, que planejou o golpe de 08 de janeiro de 2023, que faz constantes
ataques às populações indígenas, negras, LGBTQIAPN+, e que defende a ditadura
militar.
Não podemos esquecer que, ainda como deputado federal, em 2016,
o voto de Jair Bolsonaro no processo de impeachment foi acompanhado da frase
“Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma
Rousseff”. Talvez não seja demasiado ressaltar que esse “coronel” homenageado
por Bolsonaro é um dos maiores torturadores da ditadura militar. As sequelas
deixadas pela repressão e pela tortura permanecem até hoje na sociedade
brasileira, como podemos observar em muitas pesquisas acadêmicas sobre o tema,
em testemunhos publicados e no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade
(CNV).
A tortura foi uma prática sistemática durante a ditadura.
Homens, mulheres e crianças sofreram torturas. Lésbicas, bissexuais, gays,
travestis. A ditadura militar também sequestrou, torturou e assassinou pessoas
indígenas, camponesas, negras. O Relatório Final da CNV é ambíguo nesta
questão. Divulgado no final de 2014, as mortes e desaparecimentos teriam
atingido 434 pessoas. No entanto, levantamentos feitos por seus Grupos
Temáticos apontam quase 1.200 camponeses, e mais de 8 mil indígenas mortos
durante a ditadura. O belo livro “Os fuzis e as flechas: história de sangue e
resistência indígena na ditadura”, escrito pelo jornalista Rubens Valente e
publicado pela editora Companhia das Letras em 2017, é uma referência
inescapável sobre o tema.
Diante dessas informações, seria possível amenizar o que foi a
ditadura no Brasil? Para a Folha de São Paulo, sim. Basta recuperar o editorial
“Limites a Chávez”, de 17 de fevereiro de 2009, no qual o jornal usa o termo
“ditabranda” para dizer que, no Brasil, a ditadura não teria sido “dura”, mas
“branda”.
Vamos ao dicionário. Brando: aquilo que se caracteriza pela
docilidade, pela flexibilidade; afável. Que reflete suavidade, doçura. De pouca
intensidade. Macio.
O que a ditadura deveria ter feito para ser considerada “dura”
pela Folha de São Paulo? Talvez compactuar com a morte de 700 mil pessoas? Bem,
o já citado editorial de 31 março de 2023 dá a entender que nem isso seria o
suficiente.
Vale pontuar que o Grupo Folha, dono do jornal, não deu apenas
apoio financeiro e ideológico ao golpe de 1964, mas apoio material à repressão
contra quem fazia a oposição à ditadura. Recorrendo novamente ao Relatório
Final da CNV, encontramos a confirmação de que a empresa emprestava seus
veículos para a Operação Bandeirante (Oban), um centro de investigações do
Exército que combatia as organizações de esquerda. Essas denúncias já haviam
sido assinaladas pela excelente pesquisa de doutorado de Beatriz Kushnir,
publicada pela editora Boitempo em 2004 com o título “Cães de Guarda:
jornalistas e censores, do AI-5 à constituição de 1988”.
O recorte acima não deve levar à falsa conclusão de que a
imprensa hegemônica (ou parte dela) seria a única responsável pela normalização
da extrema-direita – ainda que os ataques protagonizados pela Folha de São
Paulo e por outros veículos de comunicação aos governos petistas tenham
fortalecido uma direita extremista, que, pouco tempo depois, se voltaria contra
essa própria imprensa. De todo modo, o crescimento da extrema-direita e a
propagação de ideais antidemocráticos fazem parte de um panorama internacional,
no qual há uma intrínseca combinação entre os interesses do mercado e a
moralidade conservadora – combinação esta característica do neoliberalismo,
como ensina Wendy Brown.
Além disso, quando voltamos à conjuntura nacional, o cenário é
bastante complexo e encontramos até mesmo dentro da esquerda institucional
ações que contribuem para a normalização da extrema-direita. Citemos dois
exemplos.
O mais recente foi a participação de Guilherme Boulos, então
candidato à prefeitura de São Paulo pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL),
em uma sabatina promovida por Pablo Marçal, candidato do Partido Renovador
Trabalhista Brasileiro (PRTB) que ficou em terceiro lugar no primeiro turno da
capital paulista e cuja plataforma e ações políticas são notadamente coadunadas
à extrema-direita.
O segundo exemplo vem do governo federal. Em março deste ano, o
presidente Lula, do Partido dos Trabalhadores (PT), cancelou solenidades
programadas e impediu a realização de cerimônias relacionadas aos 60 anos do
golpe de 1964. Em entrevista para uma rede de televisão no final de fevereiro,
chegou a dizer que não ficaria “remoendo” esse passado e que o golpe já faria
“parte da história”. Mais que evitar atritos com os militares, o Lula os
defendeu: “os generais que estão hoje no poder eram crianças naquele tempo.
Alguns acho que não tinham nem nascido ainda naquele tempo”, disse na ocasião.
A ascensão, a consolidação e a normalização da extrema-direita
nos deixam com desafios imensos, comprometendo nossa imaginação política. O
reconhecimento dos diferentes responsáveis por essa situação é um passo
fundamental para o enfrentamento da atual distopia neoliberal.
• Anistia
vai pelos ares. Por João Filho
Quase dois anos após o atentado contra a democracia do 8 de
janeiro, o bolsonarista Francisco Wanderley Luiz, o “Tio França”, planejou um
atentado a bomba no Supremo Tribunal Federal, o STF. Levou explosivos ao prédio
do tribunal, mas não conseguiu entrar.
Jogou alguns rojões na direção do prédio e, ao ser confrontado
pelos seguranças, resolveu cometer o suícidio em frente à estátua da justiça,
na praça dos Três Poderes. Embriagado pela ideologia bolsonarista, Francisco
quis fazer do seu suicídio um ato político.
A polícia ainda investiga se há outras pessoas relacionadas
diretamente ao atentado. Mas as circunstâncias políticas já estão dadas. É
possível dizer com absoluta convicção que não se trata de um episódio isolado
ou ocorrido no vácuo.
Ao contrário do que afirmou Jair Bolsonaro no X, Francisco não
era um lobo solitário, um maluco qualquer, mas um fanático forjado pelas
paranóias produzidas pelos gabinetes do ódio e pelos discursos bélicos do
ex-presidente contra a democracia, especialmente contra o STF.
Assim como tantos outros golpistas do 8 de janeiro, o
catarinense foi candidato a vereador pelo PL e era um militante bolsonarista
ativo nas redes sociais. Pelo teor das mensagens publicadas por ele, trata-se,
sem dúvida, de um perturbado mental teleguiado pelas narrativas fabricadas pelo
bolsonarismo.
Em uma mensagem publicada no Facebook, Francisco antecipou o ato
terrorista que faria no STF: “Vamos jogar??? Polícia Federal, vocês têm 72
horas para desarmar a bomba que está na casa dos comunistas de merda: William
Bonner, José Sarney, Geraldo Alckmin, Fernando Henrique Cardoso… Vocês 4 são
VELHOS CEBÔSOS nojentos”, escreveu.
Perceba que a linguagem do texto segue à risca os padrões
delirantes da militância bolsonarista: tem uma provocação à Polícia Federal, um
prazo de 72 horas e chama de “comunista” qualquer direitista que não siga a
cartilha bolsonarista. O palavreado é muito parecido com o utilizado por
Carluxo em seus tweets e poderia ter sido escrito por qualquer militante
bolsonarista.
Em outras mensagens, Francisco deixa claro que fará do seu
suicídio um ato político que terá consequências positivas ao país: "Vamos
brindar?? Não chores por mim! Sorria!! Entrego minha vida para que as crianças
cresçam com liberdade. Que o coração de pedra dos homens maus e injustos
derreta igual açúcar. Assim os novos governantes terão atitudes mais doses
(doces). Aqui de cima posso ver claramente as cores do nosso lindo e amado
Brasil, verde, amarelo, azul e branco. SOMOS UMA NAÇÃO ABENÇOADA!".
O tom messiânico do texto mostra que ele se vê como um mártir da
causa bolsonarista.
O passado recente nos mostra que há uma alcateia de lobos
dispostos a usar violência e praticar atos terroristas para atingir seus
propósitos. Tivemos o episódio do caminhão-tanque que bolsonaristas planejaram
explodir no aeroporto de Brasília após a eleição de Lula.
Um pouco antes, tivemos o “Acampamento dos 300”, um grupo
paramilitar liderado por Sarah Winter que se instalou em Brasília em 2020 e
marchou em direção ao STF com tochas de fogo. Depois de presa, Winter admitiu
que as ameaças ao tribunal eram orientadas pelo Planalto.
Isso para não falar no plano dos militares para fazer uma
emboscada contra Alexandre de Moraes para sequestrá-lo ou do plano de golpistas
de 8 de janeiro para enforcá-lo na praça dos Três Poderes.
Não, Francisco não era um lobo solitário. Além desses e do 8 de
janeiro, há muitos outros episódios de violência liderados por extremistas
lobotomizados. O flerte com o terrorismo é uma constante nas narrativas
bolsonaristas.
Como se vê, o terrorista não surgiu do nada. Ele é fruto claro e
inequívoco da visão de mundo lisérgica e doentia do bolsonarismo e sua campanha
permanente contra a democracia. Jair Bolsonaro passou boa parte dos quatro anos
do seu mandato ameaçando o STF e incentivando a população a se armar.
Em 2021, durante um ato golpista na Avenida Paulista, o então
presidente afirmou: "Quero dizer a vocês que qualquer decisão do senhor
Alexandre de Moraes, esse presidente não mais cumprirá. A paciência do nosso
povo já se esgotou, ele tem tempo ainda de pedir o seu boné e ir cuidar da sua
vida. Ele, para nós, não existe mais".
Em diversos outros momentos, o então presidente incentivou o
povo a se armar para se preparar para uma guerra civil: “Povo armado jamais
será escravizado. Comprem suas armas”.
Ainda não se sabe se havia mais pessoas por trás do ataque
terrorista, mas não há dúvidas de quem forneceu o combustível ideológico. O
ex-presidente Jair Bolsonaro e outros líderes do bolsonarismo são politicamente
responsáveis por mais esse atentado.
‘Lobo solitário’? Terrorista é fruto do bolsonarismo.
<><> Chances da anistia foram pelos ares
Se a eleição de Trump nos EUA serviu para animar a tropa e fazer
o bolsonarismo estufar ainda mais o peito contra o STF, as novas explosões em
Brasília caem como um balde de água fria para seus propósitos.
Políticos bolsonaristas já admitem que, se as chances de anistia
eram remotas, agora são nulas. A Folha
teve acesso a conversas entre bolsonaristas do PL no Whatsapp e constatou o
clima de velório.
"Parece que foi esse cara mesmo. Agora vão enterrar a
anistia. Pqp", escreveu o deputado Gustavo Gayer (PL-GO). O colega de
Câmara Capitão Alden (PL-BA) respondeu dizendo que "lá se foi qualquer
possibilidade de aprovar a anistia". Em outra mensagem, o deputado Eli
Borges (PL-TO) escreveu: "se tentou ajudar, atrapalhou".
O sonho da anistia para os golpistas foi enterrado de vez com as
explosões em Brasília. A relação do atentado com o inquérito do 8 de janeiro é
evidente, e a Polícia Federal já informou que enviará a investigação para o
relator Alexandre de Moraes.
O ato terrorista reforça o óbvio: o 8 de janeiro “não foi um
domingo no parque" como o bolsonarismo insiste em querer fazer parecer.
Ele continua no imaginário bolsonarista e seus atos violentos seguem inspirando
parte da militância.
É fundamental e urgente que o país puna exemplarmente todos
mentores políticos desses atos terroristas. Anistia nunca mais!
Fonte: Outras Palavras/The Intercept
Nenhum comentário:
Postar um comentário