A
exortação da maternidade ideal: uma face do sistema patriarcal
A história do patriarcado é essencial para compreender melhor a lente
com a qual se analisa a maternidade atual e o porquê dessa exigência de uma
maternidade ideal, na qual as mães só serão reverenciadas e adoradas se
abdicarem de si mesmas em prol de um “bem maior” – a prole. Essa é a história
contada pelos donos do poder, que destruíram vidas ao longo dos séculos.
Apontar as características que engendram esse sistema opressor é, portanto, a
primeira tarefa para tentar desmantelá-lo.
A primeira mulher a falar sobre o patriarcado, Gerda Lerner, o
fez em seu célebre livro, “A criação do patriarcado”, publicado em inglês em
1986, mas traduzido para o português somente 33 anos depois. Essa
importantíssima obra foi a primeira a tratar da história da dominação
masculina, exclusão das mulheres dos espaços públicos e da sua restrição ao
âmbito privado, doméstico e familiar; a autora foi tão relevante que, desde
1992, o prêmio Lerner-Scott (Scott foi uma outra pioneira no estudo da história
sobre as mulheres), é concedido anualmente à melhor tese de doutorado sobre
‘História das Mulheres nos Estados Unidos’.
Em seu livro, Lerner enaltece a importância da história na
emancipação de gênero e justifica, na a-historicidade das mulheres, o
nascimento do patriarcado. Esse sistema social, portanto, se estabeleceu e se
oficializou a partir de um processo histórico, no qual os homens foram
colocados como os únicos sujeitos da história.
A desvantagem educacional sistemática das mulheres afetou sua
autopercepção, a capacidade de conceituar a própria situação e a habilidade de
imaginar soluções sociais para melhorá-la. Isso não apenas as afetou
individualmente, mas, muito mais importante, alterou a relação delas com o
pensamento e a história. As mulheres, por mais tempo do que qualquer outro
grupo estruturado na sociedade, viveram uma condição de ignorância ensinada,
alienadas da sua própria experiência coletiva por meio da negação da existência
da História das Mulheres. (LERNER, 2022, p. 31).
Segundo a escritora, a subordinação sexual das mulheres foi
institucionalizada pelas normas mais antigas de que se tem notícia, sendo
imposta pelo próprio poder estatal. Assim, o Estado reforçava, por meio das
leis e dos códigos penais, uma necessidade social de contenção das mulheres,
enquanto, dentro do seio familiar, a dependência econômica as reprimia ao locus
doméstico. A ideologia reforçava ainda a ideia de que a mulher respeitosa era
aquela que aceitava a sua domesticação. Anna Karenina, de Lev Tolstói, serviu
como exemplo do que poderia ocorrer às mulheres que quisessem sair desse lugar.
Quando o fundamento religioso arrefeceu no século XIX, a
justificativa da inferioridade das mulheres tornou-se científica.
Naquele momento histórico, a explicação mais recorrente entre os
tradicionalistas para a existência do patriarcado estava relacionada a
elementos biológicos, como a capacidade reprodutiva feminina e a maior força
corporal dos homens, o que justificaria a divisão sexual do trabalho e a
dominação masculina. Segundo a teoria, os homens seriam historicamente
provedores de alimentos devido à sua força física, habilidade, peso e
agressividade; essas características os tornariam melhores caçadores. No
entanto, esse argumento já foi refutado há algum tempo por evidências
antropológicas, principalmente em relação a sociedades de caçadores-coletores,
nas quais, na maioria das vezes, a caça era uma atividade auxiliar, pois o
abastecimento dos alimentos mais importantes vinha da coleta e da caça de
pequenos animais, atividades essas executadas principalmente por mulheres e
crianças (LERNER, 2023, p. 44). Diante disso, nessas sociedades antigas, a
regra era a complementaridade entre os sexos, e as mulheres detinham um status
relativamente alto. Mais adiante, a psicologia moderna reforçou a ideia de que
as diferenças biológicas entre homens e mulheres justificavam a hegemonia
masculina.
As aplicações da teoria de Sigmund Freud à criação e educação
dos filhos, por exemplo, popularizaram o velho argumento de que o principal
papel da mulher era ter e criar filhos. Nesse sentido, a máxima freudiana
segundo a qual “a anatomia é o destino” reacendeu o argumento da supremacia
masculina.
Já nas décadas iniciais do século XIX, mulheres norte-americanas
ressignificaram sua posição na sociedade. Em geral, mesmo as feministas
aceitavam a ideia de que a superioridade de seus valores estava atrelada ao
papel materno. O argumento era de que teriam direito à igualdade porque, como
mães, tinham mais possibilidade de aprimorar a sociedade (LERNER, 2019, p. 56).
Com advento do sistema capitalista, o patriarcado foi conformado
e reinventado; a relação entre os dois é umbilical, no sentido de que a
transformação social da função sexual e reprodutiva das mulheres em mercadoria
é um dos arrimos em que se sustenta a propriedade privada.
Segundo Friedrich Engels, em seu livro A origem da família, da
propriedade privada e do Estado, a mudança social das relações matrilineares
para patrilineares foi o alicerce para a criação da propriedade privada; assim,
como não era possível, à época, o mapeamento das informações genéticas da prole
(o exame de DNA só foi possível nos anos 1950), as mulheres foram obrigadas a
permanecer no domínio doméstico, a fim de garantir que a propriedade privada
permanecesse com os descendentes legítimos de seus maridos. Por esse motivo, o
achatamento da sexualidade feminina foi fundamental para a criação e manutenção
da propriedade privada, corroborada pela normatização do direito sucessório.
Bell Hooks, em seu livro Teoria feminista – da margem ao centro,
faz uma interessante afirmação sobre a razão pela qual muitas mulheres ainda
não despertaram para o movimento feminista, assim como para as opressões que o
patriarcado causa em seus corpos, mentes e psiquês, e, enfim, porque ainda não
articularam de forma coletiva uma resposta à desigualdade de gênero. A razão é
que, sob a regência do sistema capitalista, o patriarcado foi ordenado de tal
maneira que o sexismo restringe certos comportamentos e certos âmbitos, mas dá
abertura a outros. Assim, “a ausência de restrições extremas leva muitas
mulheres a ignorar os domínios nos quais elas são exploradas ou discriminadas;
isso pode inclusive levá-las a imaginar que nenhuma mulher é oprimida” (HOOKS,
2019, p. 32).
Atualmente, a visão androcêntrica ainda é considerada neutra, e
a força masculina se impõe especificamente nessa circunstância, porque o
domínio de um gênero sobre o outro dispensa qualquer justificação. Assim, não
há necessidade de se legitimar o discurso e as manifestações do patriarcado:
elas são a forma como os seres humanos reconhecem o mundo, e “a ordem social
funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação
masculina sobre a qual se alicerça” (BOURDIEU, 2024, p. 24).
(…) é a divisão sexual do trabalho, distribuição bastante
estrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu local, de
seu momento, seus instrumentos; é a estrutura do espaço, opondo o lugar de
assembleia ou de mercado, reservados aos homens, e a casa, reservada às
mulheres; (…). (BOURDIEU, 2024, p. 24).
Fica claro que a diferença biológica entre os sexos – que se
conforma com a diferença anatômica entre os órgãos genitais – continua sendo
basicamente o único esteio em que se pauta a divisão social do trabalho,
servindo como justificativa pseudocientífica para a diferença socialmente
construída entre os gêneros e para a suposta fragilidade da natureza feminina,
apta ao cuidado dos filhos e aos afazeres domésticos.
Mesmo que se reconheça a existência de tantas conquistas
históricas que, a partir de lutas feministas, foram angariadas para e pelas
mulheres, ainda assim, não se pode negar a realidade patriarcal na qual todos
estão inseridos, ainda mais diante do que os números apontam: o Brasil
registrou 1.463 casos de mulheres vítimas de feminicídio no ano de 2023, ou
seja, um caso a cada 6 horas; esse é o maior número registrado desde a criação
da lei contra o feminicídio, Lei 13.104/20151.
Outro número alarmante, e que se relaciona com o locus ao qual a
mulher foi delegada no sistema patriarcal, diz respeito ao tempo dedicado aos
afazeres domésticos: ainda em 2022, são as mulheres que mais sentem o peso das
tarefas domésticas e do cuidado com outras pessoas. Elas dedicam, em média,
mais de 20 horas semanais a isso, enquanto os homens dedicam um pouco mais da
metade desse tempo, 11 horas semanais, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios Contínua de 2022, que investiga as formas de trabalho distintas
da ocupação remunerada.
Atualmente, com tantos países ditos desenvolvidos sofrendo um
déficit demográfico – circunstância diretamente associada ao aumento da
escolaridade das mulheres, ao investimento em suas carreiras, ao acesso à
contracepção, que potencializam a autonomia feminina e a escolha consciente por
uma vida sem filhos – é estarrecedor que, mundialmente, se esteja endossando
discursos e normas conservadoras. A título de exemplo, nos Estados Unidos,
expoente desse movimento, tem se fortalecido a ideia de penalização do direito
ao aborto, garantido por quase cinquenta anos pela Constituição
norte-americana, apelando-se, assim, para ‘expedientes autoritários de controle
do corpo feminino’ (IACONELLI, 2023, p. 208).
Portanto, a sociedade que não estabelece nem estimula condições
reais e satisfatórias para o exercício da maternidade, o que reduz as mães a
esse único lugar doméstico, é também a mesma que promove limitações às
mulheres, visando driblar o déficit demográfico, por meio da franca coerção ao
aborto – tanto social quanto normativa.
Foi Simone de Beauvoir, filósofa e escritora francesa, quem, em
1949, publicou seu livro O Segundo Sexo, que estabeleceu a maternidade como uma
das principais fontes de opressão das mulheres; a autora defendia, em seu
texto, que a maternidade é uma construção social, e que a decisão sobre
maternar não deveria ser forçada, mas sim consciente e livre. Para ela, o
discurso de que a maternidade era a finalidade natural do sexo feminino
pressupunha a existência de um instinto maternal, que estaria presente em todas
as mulheres, e que a única trajetória digna para o sexo era cumprir esse papel
de mãe, sempre conectada aos cuidados da família e à execução das tarefas
domésticas.
Outra filósofa também francesa, Elisabeth Badinter, em seu
estudo, acentuou dados relevantíssimos que contradizem a existência desse
suposto instinto materno. Segundo a estudiosa, no ano de 1780, em Paris, das 21
mil crianças nascidas, mil foram amamentadas pelas mães, mil foram amamentadas
por amas de leite, e as demais 19 mil foram entregues a pessoas encarregadas de
criá-las em domicílios localizados em pequenas províncias distantes das
famílias; esse era o costume da época, e a negligência com a vida e o bem-estar
de bebês e crianças era generalizado. Assim, os filhos desejados, cujos futuros
já estavam comprometidos em carregar o nome ou os negócios familiares, ou mesmo
em fazer bons casamentos, eram mantidos, enquanto os demais eram claramente
descartados.
Esses descuidos regulares, que compunham a própria cultura nesse
período, provocaram diversos problemas sociais, com novas gerações de
delinquentes, enjeitados, órfãos, adoecidos e incapazes.
Ao decorrer dos anos, foi-se percebendo que os bebês humanos não
podiam ser criados apenas no nível de satisfação das necessidades orgânicas, e
que a atenção particular e afetivamente investida era imprescindível. Feita a
matemática, a solução mais fácil era remeter as crianças ao colo da mãe,
reiterando o lugar da mulher na esfera doméstica. Enquanto isso, os homens
seguiriam suas vidas no espaço público. Assim, buscou-se dar conta no nível
privado de um problema coletivo (IACONELLI; 2023, P. 44-46).
O estudo apresentado por Badinter demonstrou, portanto, de
maneira irrefutável que o instinto materno é uma construção ideológica para
responder a problemas socioeconômicos. Ela, dentre tantos outros pensadores,
também apresentou a forma como essa pseudoteoria foi sendo criada e incutida na
sociedade.
O instinto materno atribuído à mulher converte, dessa forma, um
discurso ideológico em um fato científico. O questionamento válido levantado
pela filósofa é o de que, se realmente existisse uma predisposição inata da mulher
ao cuidado, como explicar que, ‘por séculos, as crianças morreram como moscas
sob olhares complacentes de pais e mães, sem que o dito instinto materno
operasse impedindo tamanha omissão?’ (IACONELLI, 2023, p. 47).
Uma forma de deturpar esse desinteresse coletivo no exercício do
cuidado seria interpretar a entrega dos filhos como uma prova de amor, pois a
prole estaria, assim, afastada da nocividade da urbe, mesmo que à custa de um
imenso sacrifício das mães em prol da saúde de seus rebentos. Tal
interpretação, no entanto, não corresponde à realidade, principalmente porque
‘o fato de todas as classes da sociedade urbana – mesmo nas cidades menores,
menos ’empesteadas’ que as grandes – terem utilizado serviços de amas mercenárias
e aceito longas separações dos seus bebês’ (BADINTER, 1985, p. 12) deve ser
interpretado como uma forma de se libertar dessa árdua tarefa de criar, cuidar
e educar crianças.
Não podemos pensar que se tivesse havido algum amor materno por
ocasião do nascimento, ele se teria estiolado à falta de cuidados? Será absurdo
dizer que à falta de ocasiões propícias ao apego, o sentimento não poderia
nascer? Responder-me-ão que levando por minha vez a hipótese discutível de que
o amor materno não é inato. É exato: acredito que ele é adquirido ao longo dos
dias passados ao lado do filho e por ocasião dos cuidados que lhe dispensamos
(BANDINTER, 1985, p. 14).
Ainda hoje, a mulher considerada como uma boa mãe é aquela
cuidadora que se sacrifica e abnega da sua própria individualidade, para
dedicar-se exclusivamente aos cuidados maternos; mais do que aleitar e cuidar,
a mãe ideal, nesse contexto, é aquela que renuncia a qualquer aspiração para
além do âmbito familiar, e se dedica de forma única e exaustiva aos filhos.
Não se considera, porém, que o fato de mulheres terem filhos
ocorre em razão do sexo, enquanto que o fato de mulheres cuidarem dos filhos
ocorre em razão do gênero, que é uma construção social. É o gênero que vem
sendo o principal responsável por determinar o lugar das mulheres na sociedade.
Por fim, é importante considerar um fato relevante que consiste
na diferença entre a maternidade branca e a maternidade negra, levando em conta
os marcadores sociais que, no Brasil, se entrecruzam com os marcadores de raça.
Isso porque, enquanto a maternidade da mulher branca sempre foi estimulada,
houve, por um longo período, uma ideologia de controle da natalidade em relação
às mulheres negras; assim, ‘o maternalismo se presta perfeitamente aos
discursos que decidem que tipo de apoio e de controle cada mulher receberá para
viver sua maternidade, a depender de sua raça ou classe social’ (IACONELLI,
2023, p. 67).
A fala, diante da violência naturalizada, torna-se uma
importante ferramenta para a conscientização feminista. O lugar da fala,
segundo Débora Diniz, é onde os corpos sobrevivem, pois falar é testemunhar os
diversos efeitos do patriarcado sobre os corpos femininos. Ao testemunhar, as
mulheres disputam espaços de visibilidade diante dos poderes, que resistem em
reconhecer outros sujeitos como detentores da palavra. A fala também é uma
forma de recolocar as mulheres como elementos fundamentais na história.
Nesse sentido, o feminismo deve ser o elemento fundamental à
mudança de comportamento, ele é o reflexo necessário à opressão interseccional
que o patriarcado impõe aos corpos das mulheres, porque “a história do silêncio
forçado na vida das mulheres, do ocultar a importância da sua vida, a submissão
naturalizada a que fomos submetidas, abriu-nos pouco a pouco para o desejo de
um falar diferente” (DINIZ; GEBARA, 2022, p. 254); o feminismo, portanto, não
se trata de um patriarcado ao avesso, mas uma forma de viver que permite que
mulheres desempenhem diversificados papéis na sociedade.
Somente através da luta feminista será possível transformar a
a-historicidade em narrativa e a contenção ao extravasamento. Será apenas
através do movimento feminista que será possível que ‘as silenciadas e os
silenciados falem publicamente, e nos falem, para que também falemos de suas
riquezas para além da exploração que as falas patriarcais e brancas fazem
deles’ (DINIZ; GEBARA, 2022, p. 255).
Eis a ideia que permeia todo este texto: não existe uma
maternidade consciente sem uma consciência feminista.
Fonte: Por Dymaima Nunes, no Le Monde
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