‘Trump é
uma doença’, diz o xamã Yanomami Davi Kopenaw
Somente
neste ano, o xamã Yanomami Davi Kopenawa foi recebido pelo papa Francisco, no Vaticano, foi destaque da Salgueiro na Sapucaí, no carnaval do Rio de Janeiro, e aplaudido efusivamente durante o Festival de Cinema de Cannes, na França.
Contudo, em Roraima, sua terra natal, precisa circular dentro de viatura
escoltado por policiais armados.
Kopenawa,
de 68 anos, além de xamã, é um líder político ativo na denúncia dos garimpeiros
que invadiram ilegalmente a Terra Indígena Yanomami. Por
defender os direitos do seu povo, não pode andar livremente.
Além
dos garimpeiros, ele faz questão de nomear os políticos que, na visão dele, são
inimigos dos Yanomami e da floresta amazônica, como o presidente recém-eleito
dos Estados Unidos Donald Trump e o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Em
entrevista exclusiva para a Repórter Brasil, Kopenawa comparou Trump a uma
“doença”, afirmando que o político republicano representa uma ameaça aos povos indígenas e
ao meio ambiente.
O
líder indígena teme que a influência de Trump e de outros líderes com
ideologias de extrema-direita possa abrir caminho para a exploração desenfreada
das terras indígenas.
Kopenawa
também faz duras críticas a Bolsonaro, a quem considera um “filho da ditadura
militar” que nunca se importou com os indígenas ou com o meio ambiente. Ele diz
que Bolsonaro “estragou tudo” em seu governo, permitindo a intensificação do
garimpo ilegal no território Yanomami e a deterioração da saúde do seu povo.
O
povo Yanomami, que habita a maior terra indígena do Brasil, ainda enfrenta uma
crise humanitária e de saúde, agravada pela invasão de 70 mil garimpeiros
ilegais. Intensificada durante o governo Bolsonaro, a invasão trouxe doenças
como malária e gripe, além de contaminar os rios com mercúrio, afetando a
água potável e os peixes, que são a base da alimentação Yanomami.
A
desnutrição infantil chegou a afligir 63% das crianças menores de cinco anos e
resultou na morte de 570 crianças Yanomami por desnutrição e doenças evitáveis entre 2019 e 2022.
Kopenawa
demonstra esperança em relação ao compromisso do governo Lula (PT) no combate
ao garimpo ilegal, mas faz críticas em relação à atenção à saúde. Ele reconhece
os esforços do governo atual para reverter os danos causados pelos governos
anteriores. No entanto, alerta para a necessidade de ações mais efetivas, como
a retirada total dos garimpeiros do território ancestral e o envio de mais
profissionais de saúde.
O
xamã é também um escritor reconhecido internacionalmente. É autor dos
livros A Queda do Céu (Cia das Letras, 2010) e O
Espírito da Floresta (Cia das Letras, 2023), ambos escritos em
parceria com o antropólogo Bruce Albert.
As
obras foram traduzidas para diversos idiomas, inspiraram filmes e documentários
e tornaram-se marcos do pensamento ecológico e antropológico contemporâneo,
apresentando ao mundo a cosmologia Yanomami e a importância da floresta para a
saúde do planeta.
“Flecha
para tocar o coração da sociedade não indígena”, escreve Kopenawa, quando
alguém pede uma dedicatória nas obras.
Os
xamãs do povo Yanomami, conhecidos como xapiri thëpë, são fundamentais na
cultura e na cosmologia do povo. Atuam como intermediários entre o mundo
material e o mundo espiritual, conectando-se com os espíritos da floresta
(xapiripë), para buscar orientação, cura e proteção para a comunidade.
Davi
Kopenawa é o mais conhecido desses guardiões da sabedoria ancestral e um dos
responsáveis por manter o equilíbrio entre a humanidade e a natureza.
Os
xamãs aprendem por meio de sonhos, visões e do uso de substâncias psicoativas,
como o yãkoana – um pó feito a partir da resina de árvores do gênero Virola,
que permite acessar o mundo espiritual e receber ensinamentos dos xapiripë.
Após
um hiato de 12 anos, aconteceu, em novembro, um encontro histórico de xamãs
Yanomami na comunidade Yakeplaopi, em Palimiu, às margens do rio Uraricoera,
uma das localidades mais afetadas pela invasão de garimpeiros ilegais. O evento
reuniu mais de 500 indígenas, sendo 62 xamãs, de 18 regiões de Roraima e
Amazonas, e celebrou os 20 anos da Hutukara Associação Yanomami.
Kopenawa
destaca a importância dos xapiri (xamãs) e critica a relação do homem branco
com a natureza, afirmando que o “homem da mercadoria” busca apenas explorar os
recursos naturais para enriquecer, sem se importar com as consequências para o
meio ambiente e para os povos indígenas.
O
xamã enfatiza a necessidade de uma mudança de mentalidade por parte do homem
branco, para que ele aprenda a respeitar a natureza. Ele expressa com veemência
sua aversão ao uso do ouro, associando-o à ganância e à destruição.
Ele
diz que o ouro é o “sangue” da terra, da floresta e de seu povo, manchado pelo
sofrimento causado pelo garimpo ilegal. E faz um apelo para que as pessoas não
usem ouro. “Tem que parar com isso. Não precisam se enfeitar com joias. Não
precisam de anéis e colares. Podem usar outras coisas, usar algo que não seja
com sangue”, afirma.
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Confira a entrevista.
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Repórter Brasil – Como
o senhor avalia o trabalho do governo para retirar os garimpeiros da terra
Yanomami? Essa luta já terminou?
Davi
Kopenawa – A luta pela defesa do meu povo Yanomami, da nossa terra, da água e
da floresta é antiga. O branco vem destruindo a natureza e perturbando os
indígenas que moram aqui há milhares de anos. A mudança do governo para Boa
Vista (em fevereiro, o governo federal inaugurou uma casa de governo na
capital de Roraima) facilitou o trabalho contra os garimpeiros na terra
Yanomami. O governo Lula apoiou a causa e se mostrou contrário à continuidade
do garimpo ilegal e ao sofrimento do povo.
·
O que mais preocupa o
senhor em relação ao garimpo?
O
garimpo traz doenças, violência e muitos problemas. Os garimpeiros chegam com
máquinas, gasolina, bebidas alcoólicas e armas, além de trazerem doenças e
maltratar o povo Yanomami. Apesar da operação do governo ter resultado na
retirada de muitos garimpeiros e na destruição de suas máquinas, o problema
persiste. Muitos continuam escondidos ou compram novos equipamentos, contando
com apoio à distância.
·
O que falta ser feito
agora?
Precisamos
retirar mais garimpeiros. Eles não saíram todos. Estão escondidos nas montanhas
e na Venezuela, esperando o governo sair para voltar. E estão voltando.
·
E como está a saúde do
povo Yanomami? A malária, a fome e as doenças?
A
malária, a gripe, a disenteria e as verminoses continuam. A doença não vai
embora. Falta cuidado com a saúde dos Yanomami. Faltam médicos, enfermeiros,
técnicos, equipamentos, medicamentos e borrifação para matar mosquitos. A
doença não passou. Os parentes que vivem perto do garimpo continuam adoecendo.
A malária é um bicho perigoso para todos, não só para os indígenas. Falta um
governo que cuide da saúde, que organize um plano de trabalho e cure os
Yanomami nas comunidades, levando equipamentos e medicamentos.
·
O garimpo ilegal
aumentou e a saúde piorou muito no governo Bolsonaro. O que o senhor sente
quando vê o ex-presidente?
Vocês
escolheram o homem errado. Erraram ao pensar que ele era bom. Para mim, para os
Yanomami, ele é filho da ditadura militar, que nunca gostou dos indígenas do
Brasil. Ele não é um homem bom, não é amigo dos índios, da terra, dos rios e do
meio ambiente. Ele é contra o nosso país.
·
O senhor luta há
muitos anos pelo seu povo e pela Amazônia. Tem uma trajetória muito rica. O que
te dá força para continuar?
Eu
sinto e sonho com a Mãe Terra, com a grande alma da terra e da floresta. Isso
me dá força para continuar lutando.
·
O senhor é como uma
ponte entre o mundo dos brancos (napë) e o mundo Yanomami. Como se sente
nesse papel?
Sou
tradutor do meu povo. Escuto o português, que é difícil, mas consigo entender.
Traduzo para eles: “Olha, parentes, os brancos continuam falando sobre tirar a
riqueza da terra. O subsolo é a paixão da sociedade não indígena. Ouro,
diamante, pedras preciosas, nióbio para fazer o coração das máquinas. O branco
está apaixonado pelo minério para fazer dinheiro e negociar com outros povos.
Eles continuam querendo as madeiras, os madeireiros derrubam as árvores para
fazer dinheiro. Querem destruir os igarapés de onde bebemos, arrancar a riqueza
da terra indígena. Não querem que continuemos morando aqui, querem nos tirar,
nos colocar em outro lugar, onde não há ouro, onde não há nada”.
Os
Yanomami também me pedem para traduzir suas falas para o homem branco: “Homem
branco já tirou muita riqueza da terra. Por que querem mais? Onde estão
plantando essa riqueza? Onde estão guardando? Por milhares de anos, tiraram
muito, derrubaram as florestas. É essa a maneira de agir? Para onde estão
levando tudo isso? Por que o homem branco destrói a natureza? O que ele pensa?
E a água? O homem branco bebe muita água, está sujando a água, por quê?”. Sou
um tradutor. Traduzo para meu povo e para a sociedade não indígena, para que se
entendam melhor, porque o homem da sociedade está acostumado a extrair e
explorar o subsolo.
·
A Terra está se
vingando do homem branco com essas mudanças no clima?
Sim,
a Terra está revoltada com as ações humanas que não cessam. Mês após mês, ano
após ano, rios são destruídos, a água é poluída, os peixes morrem e as pessoas
adoecem. A sociedade não indígena só pensa em dinheiro e em explorar cada vez
mais. As autoridades, que deveriam proteger a natureza, ignoram as leis e
contribuem para o desmatamento crescente. Isso faz a floresta esquentar, secar,
e nossa Mãe Terra demonstrar sua raiva. Já estamos vendo os efeitos dessa
vingança em outros lugares, como na Europa e nos Estados Unidos, com incêndios
e desastres naturais. Essa destruição não para e está matando nossa Mãe Terra.
Podemos
fazer alguma coisa para evitar a vingança da Terra?
Não
há chance de voltar atrás, de normalizar. Não há homem que vá curar a nossa Mãe
Terra. Podem gastar dinheiro, fazer muitas reuniões bonitas, mas não vão
curá-la. Sou xamã, sou sonhador, o povo Yanomami é diferente. Escutamos a fala
da terra, e ela nos diz: “Olhem, Yanomami, cuidado, vou deixar o homem branco
sofrer, ele vai sofrer muito, vai sofrer pouco, vai aumentando”. A mudança
climática já criou raízes, se espalhou, está forte. Não há remédio para o
aquecimento global.
·
O senhor fala muito
sobre o sonho. Qual a importância do sonho para os Yanomami? Os brancos também
podem sonhar como vocês?
O
sonho não é só para os indígenas, é para todos. Vocês podem sonhar com outras
coisas. Com trabalho, com tirar ouro, tirar petróleo do mar, cortar árvores
para fazer papel, fazer veneno, mercúrio. Com aviões, carros, fábricas, com a
luz da cidade e os monumentos. O nosso sonho é diferente. Somos diferentes,
somos filhos de Omama, o rei da floresta, o rei do mundo. Sonhamos porque
estamos conectados com a grande alma da terra, com a grande alma da floresta,
com o vento, com a chuva, com o trovão, com a claridade, com o sol, com a lua.
Somos conectados de forma diferente. Como moramos na floresta, longe da cidade
e da luz, somos sonhadores diferentes. Sonhar bom ou sonhar ruim? Esse é o
sonho natural, como Omama criou para o povo da floresta. O povo da cidade
também sonha, mas muitos não sonham porque não dormem. Ficam andando,
festejando, bebendo. A cidade não tem escuridão, tem luz dia e noite. O branco
dorme pouco.
·
O que significou o
encontro recente de xamãs para o povo Yanomami?
A
Hutukara Associação Yanomami desempenha um papel crucial na defesa do nosso
povo. ‘Hutukara’ significa ‘mundo’, enquanto ‘associação’ é um termo da
sociedade não indígena, e ‘Yanomami’ significa ‘povo’. A Hutukara é a Lei do
Povo de Omama. Em 2004, não tínhamos essa estrutura, mas aprendemos com o homem
branco sobre a importância das leis. No mês passado, celebramos os 20 anos da
Hutukara com uma grande festa nas comunidades. Foi um evento bonito, valioso e
essencial para nós. Mesmo que muitos desconheçam ou duvidem, estamos cuidando
de tudo. A Hutukara é um símbolo de defesa da nossa terra e do planeta.
Reunimos mais de 300 pessoas, incluindo 62 xamãs – indígenas que cuidam da
saúde da terra, da floresta e do meio ambiente. Renovamos o compromisso de fortalecer
a Hutukara.
Encontro
dos xamãs ocorreu durante o evento de 20 anos da Hutukara Associação Yanomami
·
Por que foi escolhido
um local que sofreu muito com os garimpeiros para o encontro?
Uraricoera
é uma rota usada por garimpeiros ilegais. Por isso, construímos ali uma casa
que simboliza a resistência do povo Yanomami, como uma mensagem clara de que
esse caminho não é para garimpeiros. Eles podem explorar suas próprias terras,
mas a Terra Indígena Yanomami deve ser respeitada. No entanto, os garimpeiros
são persistentes. Essa casa foi construída como um marco para proteger os rios
da região e reforçar nossa luta.
·
O senhor acha que o
presidente Lula está realmente comprometido com a causa indígena?
Ele
é o melhor. O conheço desde 1988, quando construíram a Constituição Federal em
Brasília. Naquela época, ele já estava fazendo amizade com a gente. Lula foi
presidente e, na época, prendia os garimpeiros. Ele sonhava com um lugar sem
garimpo, sem fazendeiros, sem nada. Teve um bom pensamento e tentou, mas há
muita coisa destruída na cidade, nas comunidades, nos municípios. Bolsonaro
estragou tudo. Lula está tentando curar a cidade, os municípios e a terra
Yanomami. Ele está demarcando terras indígenas que nunca foram demarcadas. Ele
tem um bom pensamento, pegou uma caneta boa, como um homem honesto, para
escrever e salvar o Brasil. Não só os Yanomami, mas todo o país. Ele está
tentando, mas há muita gente ruim.
·
Como o senhor vê a
participação das suas parentes Sônia Guajajara, no Ministério dos Povos
Indígenas, e Joenia Wapichana, na Funai?
Não
somos muitos, mas precisamos de mais pessoas ao lado do governo Lula e dos
guerreiros Yanomami e indígenas que estão lutando. Elas aprenderam conosco.
Sônia Guajajara esteve na aldeia e Joenia Wapichana aprendeu com seu povo. Elas
se prepararam e nós as colocamos para serem guerreiras, guerreiras do povo
indígena e da cidade também. Elas estão aprendendo a resolver os problemas, mas
não vão resolver tudo. Têm muita responsabilidade que o governo repassou para
elas. É difícil para nós porque não conhecemos o papel político. Os indígenas
não conhecem muito. Elas estão aprendendo, andando junto com os xamãs, com o
movimento indígena de Brasília, com os deputados, senadores e outros que lutam
ao nosso lado. Estamos trabalhando para viver, para que todos tenham vida. Sem
a luta, vamos sofrer mais.
·
Existe algo que o
senhor gostaria de acrescentar, alguma mensagem importante?
Queria
falar mais sobre minha preocupação com o presidente americano [eleito] Donald
Trump. Esse cara não presta. Ele já cometeu muitos erros e temo que cause ainda
mais destruição. Bolsonaro parece apoiar essas ideias, e isso me preocupa.
Trump é como uma doença, um problema que abre caminho para o garimpo ilegal nas
terras indígenas, como as terras Kayapó, Munduruku e Yanomami. Não podemos
deixar isso acontecer novamente. Já houve muito sofrimento. Chega.
·
O que o senhor diria
para uma pessoa que está lendo esta entrevista usando um colar de ouro, um anel
de ouro?
Minha
mensagem é para todos na cidade: as pessoas estão fascinadas pelo ouro, usando
em anéis, brincos e outras joias. Mas precisam entender que ele é extraído de
terras indígenas. Esse ouro carrega o sangue do meu povo, das árvores, dos
rios, dos peixes e da Mãe Terra. Muitos estão morrendo por causa dessa
exploração. Tem que parar com isso. Não precisam se enfeitar com joias. Não
precisam de anéis e colares. Podem usar outras coisas, usar algo que não seja
com sangue.
Fonte:
Reporter Brasil
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