Câncer e
morte de crianças intrigam comunidades próximas a lavouras de frutas
ATÉ
OS QUATRO MESES, Ana Laura Freitas era saudável e esperta. Antes de completar
um ano, no entanto, a bebê perdeu a vida após enfrentar problemas respiratórios
e ser diagnosticada com um câncer infantojuvenil raro e agressivo.
“Ela
iniciou a quimioterapia, mas teve quatro paradas cardíacas e faleceu”, comenta
com a voz embargada a mãe Silvana Freitas, 28 anos, moradora da comunidade de
Tomé, em Limoeiro do Norte, no Ceará.
Laura
faleceu em maio deste ano, com apenas 11 meses, de leucemia linfocítica aguda.
O caso reforçou uma suspeita dos moradores, de que o alto consumo de
agrotóxicos por lavouras de frutas na região está adoecendo a comunidade.
No
Baixo Jaguaribe, onde fica a vila de Tomé, ocorrem duas vezes mais internações
por câncer do que nos municípios vizinhos sem produção de frutas em larga
escala. Registram-se também quatro vezes mais mortes por câncer.
Os
resultados são de um estudo publicado em 2017 por pesquisadores da UFC
(Universidade Federal do Ceará), que analisaram dados de 2000 a 2012. Eles
estudam há anos os impactos do uso extensivo de pesticidas em comunidades
rurais do estado.
“Não
é coincidência que os locais onde ocorrem mais casos de câncer infantojuvenil
estejam próximos a perímetros irrigados”, afirma o pesquisador Saulo da Silva
Diógenes, membro do Núcleo Tramas (Trabalho, Meio Ambiente e Saúde), da UFC.
“As pulverizações levam à contaminação da água e criam um ambiente de risco que
favorece o desenvolvimento do câncer infantojuvenil”, explica.
Tomé
é cercada por grandes lavouras de banana, melão, mamão, acerola, coco, goiaba,
pitaya e tomate, que recebem aplicações de pesticidas com frequência.
“Minutos
após as pulverizações serem realizadas, fica um cheiro forte no ar, chega a ser
incômodo”, queixa-se Silvana.
Outro
estudo do Núcleo Tramas constatou “fortes evidências” de que casos de
malformações congênitas e puberdade precoce na mesma comunidade rural, que tem
apenas 3 mil habitantes, tinham “relação com a intensa exposição dessas
crianças e de suas famílias aos agrotóxicos na região”.
Pesquisadores
ouvidos pela Repórter Brasil apontam dificuldades para realizar pesquisas que
comprovem a relação entre agrotóxicos e doenças. Uma delas é a falta de
acompanhamento dos casos suspeitos pelos órgãos públicos de vigilância. Mas os
cientistas apresentam cada vez mais estudos estabelecendo essa conexão.
Segundo
Diógenes, por exemplo, pesquisas já demonstraram que os agrotóxicos alteram a
forma de expressão dos genes das células responsáveis pela produção dos óvulos
e espermatozoides.
“As
manifestações vão acontecer tanto na pessoa exposta naquele momento, quanto nas
gerações seguintes”, explica o pesquisador. No caso das crianças, as chances
dos cânceres se desenvolverem é maior, pois o sistema imunológico não está
formado”, continua.
O
surgimento repentino de casos de câncer, abortos espontâneos e doenças
congênitas instaurou o medo na comunidade, que evita consumir a água que chega
às torneiras.
“O
canal que fornece água para a comunidade é o mesmo usado pelas empresas para
irrigar os cultivos. Ninguém tem confiança de beber essa água. Quem tem
dinheiro compra água mineral ou toma a água fornecida pela empresa”, conta
Silvana.
A
empresa em questão é a Agrícola Famosa, que fornece água potável em carros-pipa
à população uma vez por semana. A Repórter Brasil entrou em contato com a
companhia para saber como é feito o tratamento da água fornecida e questionar
se a empresa conhece as denúncias contra os agrotóxicos. Até o momento, no
entanto, a firma não respondeu.
• Suspeitas envolvendo
agrotóxicos serão debatidas na COP30
O
caso da pequena Laura é um dos muitos relatos dramáticos expostos durante o
Tribunal Popular dos Agrotóxicos, um ato simbólico realizado por movimentos
sociais no fim de outubro na Faculdade de Direito da UFC, em Fortaleza.
A
sessão apresentou uma peça de acusação simbólica que destaca os impactos do uso
extensivo dos pesticidas sobre o meio ambiente e o SUS (Sistema Único de
Saúde). O documento também critica isenções fiscais a esses produtos no Brasil,
maior consumidor de pesticidas do mundo.
As
conclusões serão discutidas e julgadas durante sessão especial do Tribunal
Penal Internacional na COP30, a ser realizada em novembro de 2025 em Belém
(PA). O tribunal é um organismo internacional permanente criado pelo Estatuto
de Roma, do qual o Brasil é signatário. A corte investiga e julga indivíduos
acusados de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de
agressão quando os casos são ignorados pelo Judiciário dos países membros.
“Esse
tribunal deve julgar os crimes praticados por instituições financeiras que
apoiam o agronegócio e consequentemente o uso de agrotóxicos”, explica a
advogada Magnólia Said, do Esplar, uma ONG que atua no semiárido com
comunidades dedicadas à agricultura familiar no Ceará.
No
estado se deu a primeira condenação de uma multinacional pela contaminação de
um trabalhador por agrotóxicos. Ao longo de três anos, Vanderlei Matos
trabalhou realizando misturas de pesticidas em uma fazenda e foi a óbito por
uma doença grave no fígado provocada pelas substâncias químicas.
A
empresa condenada foi a Del Monte, multinacional do setor de frutas que tinha
fazenda na região rural de Limoeiro do Norte, mesmo local onde fica a
comunidade estudada pelos problemas de saúde em crianças.
O
Ceará foi também o primeiro estado, e único até agora, a aprovar uma lei que
proíbe a pulverização aérea. Trata-se da Lei Zé Maria do Tomé, de autoria do
deputado estadual Renato Roseno (Psol). Aprovada em 2019, a lei leva o nome de
José Maria Filho, conhecido como Zé Maria do Tomé, executado com 17 tiros em
abril de 2010. O líder comunitário e ambientalista lutava pela proibição da
pulverização aérea de agrotóxicos em Limoeiro do Norte.
Após
cinco anos da aprovação da lei, Roseno diz ser possível perceber resultados da
medida. “Ao contrário do que o setor alardeava, não houve queda da produção de
banana. Houve aumento de 2019 pra cá. Ou seja, o discurso fatalista, que
somente seria possível produzir com pulverização aérea, era falso”, destaca o
parlamentar.
• Outras comunidades
próximas a lavouras também relatam adoecimento
O
tribunal popular também ouviu relatos de adoecimento no assentamento Maceió,
localizado a 60 km da área urbana de Itapipoca, no litoral cearense, onde vivem
cerca de 900 famílias vizinhas a plantações de coco.
Foi
na comunidade que o adolescente Paulo Igor Martins, de 14 anos, foi a óbito em
apenas 16 dias.
Em
janeiro de 2019, ele saiu de um aparente simples quadro de fadiga, pele e olhos
amarelados para falência total do fígado. No atestado de óbito consta “hepatite
fulminante”.
Parentes,
médicos e enfermeiros estranharam o adoecimento repentino do adolescente,
relembra a mãe, Israelita Martins, de 40 anos. Nos primeiros dez dias de
sintomas, ela e o filho foram ao posto de saúde diversas vezes, recebendo
sempre medicamentos para hepatite. “Ele sempre foi um menino muito vivo,
elétrico, saudável. Nunca teve problema de saúde”, recorda.
Após
a morte do filho, Israelita diz que os médicos pediram que ela deixasse o corpo
no hospital para estudos, mas ela se recusou e o levou para ser enterrado junto
à família.
Ela
conta que o menino cresceu em área cercada por lavouras de coco que recebem
pulverizações de agrotóxicos de forma constante.
Ainda
segundo Israelita, a fonte de água que abastece a comunidade é a mesma
utilizada por várias empresas para irrigar as lavouras de frutas. “Nunca foi
feito um teste para saber se essa água está contaminada, mas por muito tempo os
agrotóxicos foram lançados por cima da lagoa”, observa.
Uma
profissional de saúde que atuou no assentamento Maceió, mas que prefere não se
identificar, afirmou à reportagem que surgiram muitos casos de câncer, autismo
e depressão no local entre os anos de 2018 e 2023. Em 2017, quando ela chegou
na comunidade, “só tinham casos simples de pneumonia e bronquite”, afirma.
Segundo
o Painel Oncologia Brasil, do Datasus, Itapipoca registrou um aumento
considerável de casos de câncer a partir de 2018. No período de cinco anos
entre 2013 a 2017, a média era de 14 casos por ano na cidade. Nos cinco anos
seguintes (2018 a 2022), a média anual foi de 227 casos – 1.500% a mais do que
no quinquênio anterior.
Não
há dados específicos sobre o assentamento Maceió. A profissional de saúde conta
que os casos da comunidade foram notificados e encaminhados para tratamento no
serviço público, mas “não foi realizada nenhuma investigação sobre as causas”.
A secretaria de Saúde de Itapipoca foi procurada, mas não retornou até o
momento. O espaço segue aberto a manifestações.
O
pesquisador Diógenes também critica a falta de investigações por parte dos
órgãos de saúde. “A vigilância de saúde ambiental e de saúde do trabalhador
deveria investigar o que houve para, por exemplo, um jovem sofrer uma
hepatotoxicidade tão grosseira. Qual o contexto ambiental e de exposição a que
ele foi submetido?”, questiona.
• Pesquisadores dizem que
vigilância precisa investigar casos
Cientistas
ouvidos pela reportagem também apontam dificuldades para a produção de estudos
sobre os impactos dos agrotóxicos. O primeiro deles é o financiamento, “pois
essas pesquisas são caras e recebem cada vez menos recursos”, explica Mariana
Soares, pesquisadora da UFMT (Universidade Federal do Mato Grosso).
A
toxicologista e médica do Trabalho Virgínia Dapper também aponta a falta de
investigação dos casos como um dos problemas. “Cada caso de agravo decorrente
da exposição aos agrotóxicos deveria ser entendido como um caso sentinela que
deveria desencadear um processo de investigação no território, promovendo ações
intersetoriais e participativas de prevenção, proteção e cuidado”, destaca.
Na
visão da pesquisadora e professora aposentada da UFSC (Universidade Federal de
Santa Catarina) Sônia Hess, “as evidências científicas disponíveis já são
suficientes e mostram que há uma população extensa sendo contaminada pelos
agrotóxicos”.
Para
Hess, os órgãos de saúde têm ciência disso, mas o lobby do agronegócio
dificulta a investigação dos casos, opina.
A
médica Dapper conta que já chegou a ser “confrontada e chamada de ‘mentirosa’
por representantes do agronegócio, quando apresentava as evidências científicas
dos impactos dos agrotóxicos na saúde”.
Para
Diógenes, quando uma comunidade apresenta essas queixas, é “importante escutar,
pois eles estão no território e vivem na pele o problema”, diz. “Quando a
comunidade da Chapada do Apodi alertou sobre os casos de câncer, nós fomos lá e
comprovamos com os estudos que havia relação direta com os agrotóxicos”,
observa.
Fonte:
Repórter Brasil
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