A história
de aventura e medo do francês que interpretou mascote na Copa de 1998
Quando
Morgan Segui recobrou a consciência, ele concluiu que iria morrer.
Apenas
três horas antes, ele havia sofrido uma queda gravíssima, de um penhasco remoto
de quase 40 metros de altura em Timor-Leste, país a cerca de 2 mil quilômetros
ao norte do litoral da Austrália.
Agora,
ele estava caído no chão em uma densa floresta, gritando por ajuda, mesmo que
não houvesse ninguém por perto.
"Senti
que minha camiseta estava molhada, mas não sabia de onde vinha aquele
líquido", contou Segui ao programa de rádio Outlook, do Serviço Mundial da
BBC.
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"Quando
toquei minha cabeça, percebi que parte do couro cabeludo estava solto, como se
fosse uma banana descascada", relembra ele. "Levei os dedos um pouco
mais para cima e senti um buraco na cabeça. Imediatamente pensei: 'vou morrer'."
Ensanguentado
e com os dedos quebrados na sua tentativa de frear a queda, Segui passaria
cinco dias perdido nas profundas selvas de Timor-Leste. Seu resgate seria dos
mais incomuns, liderado por um grupo de cabras selvagens.
Morgan
Segui conta sua experiência no seu livro Cinq Jours au Timor ("Cinco dias
em Timor", em tradução livre).
Mas
sua história de aventuras começou muitos anos antes e muito longe de Timor-Leste.
Tudo começou nas ruas e nos céus de Paris, na França.
• Os céus da cidade-luz
Segui
conta que seu espírito aventureiro surgiu na infância, quando leu seu livro
favorito: Onde Vivem os Monstros (Ed. Cia. das Letrinhas, 2014), do escritor e
ilustrador Maurice Sendak (1928-2012).
"Sempre
me imaginei em um pequeno bote, cruzando o mar e conhecendo esses monstros
apavorantes, em uma festa com eles", ele conta.
Repleto
de sonhos de aventuras e frustrado pela vida na escola, Segui abandonou os
estudos ainda jovem, para entrar no circo. Ele se tornou acrobata profissional.
Segui
era tão bom no que fazia que acabou participando da cerimônia de abertura da
Copa do Mundo da França, em 1998. Ele se fantasiou como o mascote do Mundial –
o galo Footix – e permaneceu no ponto mais alto do Stade de France, em
Saint-Denis, durante os jogos.
Mas
Segui conta que, apesar do sucesso e do reconhecimento profissional por ter
participado de um dos eventos esportivos de maior audiência do mundo, o
trabalho durante a Copa o levou à reflexão.
"Parado
no teto do Stade de France, a 45 metros de altura, pensei: 'Não vou dedicar
todo este dinheiro, todo este esforço, toda a minha vida, apenas aos grandes
eventos. Quero fazer algo mais.'"
Ele
saiu do mundo das acrobacias e começou a viajar pelo mundo, fazendo todo tipo
de trabalho. Segui foi fotógrafo, cinegrafista, pasteleiro e abriu um café, em
países como Marrocos, Cazaquistão e Timor-Leste, para onde se mudou em 2017.
• A vida na ilha
Desde
o início da sua vida em Timor-Leste, Segui ouvia os moradores locais falarem em
um local sagrado – uma grande montanha em uma ilha a cerca de 33 km da capital
timorense, Díli.
Conhecida
como monte Manucoco, a formação rochosa tem cerca de mil metros de altura. Ela
se ergue da densa floresta tropical que cobre a ilha de Ataúro e é parte
importante das tradições culturais de Timor-Leste.
Segui
descreve a si próprio como um fanático por correr e caminhar – e a montanha
parecia um objetivo perfeito. Inspirado pelo protagonista do seu livro favorito
na infância, ele conseguiu uma pequena embarcação que o levaria de Díli até
Ataúro.
"Quando
cheguei à praia, como sempre acontece em Timor, muitas pessoas vieram me
ajudar", relembra ele.
"Contei
que iria escalar o monte Manucoco e eles disseram que já era muito tarde e que
seria melhor que eu retornasse."
Mas
Segui decidiu ignorar o conselho. Ele estava convencido de que, com seu ritmo,
teria tempo mais que suficiente para completar a subida e descer antes do pôr
do sol.
"É
claro que esta é uma decisão que você não pode tomar em relação à
montanha", alerta ele. "É uma postura muito arrogante e
perigosa."
"A
primeira regra da montanha é que o bom caminho é aquele que você pode cancelar
ou postergar para o dia seguinte. Mas eu não ouvi as advertências."
Segui
começou a escalada. Ele conta que, a partir dos 700 metros de altura, a
paisagem da montanha começou a mudar, passando a ser mais densa e hostil.
"A
selva começou a se tornar mais verde e profunda, com todo tipo de verde. Havia
muitos sons específicos de aves e insetos e todo tipo de odores."
"E,
como é a selva, as sombras começam a se apoderar de tudo porque ela é tão densa
que a luz não consegue entrar. É um lugar mágico, é tudo o que você precisa
para ser feliz", contou ele ao Serviço Mundial da BBC.
• Queda abrupta
Ao
chegar ao topo do Manucoco e pressionado pela chegada da noite, Segui descansou
por apenas 10 minutos e começou a descida.
Ele
decidiu seguir pelo mesmo caminho da subida, para reduzir o tempo do trajeto.
Mas, em certo ponto, o caminho o levou para um lugar de onde não havia saída.
"Eu
desci por aquele rio por cerca de uma hora, até chegar a uma cascata seca, por
onde não podia descer", recorda ele. "E já não havia forma de voltar,
fiquei preso em uma espécie de cânion."
"À
direita, havia uma série de florestas complexas, com cobras e aranhas, que não
podia atravessar. À esquerda, havia aquele penhasco. Decidi tentar escalar o
penhasco de 40 metros, achando que teria sinal de celular quando chegasse em
cima."
Segui
conta que os primeiros 30 metros de subida foram relativamente fáceis. Mas a
situação se complicou no último trecho, já que as chuvas haviam enfraquecido a
rocha, que estava úmida e parecia pouco estável.
"A
única coisa que havia era uma pequena árvore que sobressaía do topo e era só
onde podia me agarrar."
"Em
uma escalada, você sabe que uma árvore que sobressai do topo é sempre uma má
ideia, mas eu precisava tentar", explica ele. "Era a única
possibilidade."
Segui
tentou usar a árvore para levantar o próprio corpo, mas as raízes não
suportaram seu peso.
"Quando
as raízes se romperam, o tempo parou por cerca de 7 ou 8 segundos. Realmente me
lembro de tudo em câmera lenta."
"Observei
o ar, a parede, as pedras passando por mim lentamente. Pensei que precisaria
agarrar algo para me deter, mas só o que tinha disponível era a pedra. Por
isso, tentei agarrá-la com todas as forças, mas os meus dedos se
quebraram."
Segui
caiu quase 40 metros. Ele bateu a cabeça e ficou inconsciente por pelo menos
três horas.
• O instinto de mamífero
Quando
recobrou a consciência, ficou apavorado com a situação.
Parte
do seu couro cabeludo estava pendurada. Seus dedos estavam quebrados e ele não
conseguia mover o braço direito.
"Eu
me lembro da sensação de pânico", ele conta. "Era muito
doloroso."
"Era
uma espécie de emoção muito amarga, como vinagre na alma. Você sente que tudo o
que fez na vida foi ruim, todos os erros que você cometeu caem na mente como
uma pedra."
Ele
passou horas perdendo e recobrando a consciência de forma intermitente. Mas,
quando finalmente voltou a si, Segui conta que tinha uma clareza absoluta sobre
o que deveria fazer.
"Em
certo momento, senti que estava no meu território e isso me ajudou muito",
ele conta.
"Foi
muito reconfortante pensar na ideia de que, claro, não existem hospitais para
os animais selvagens e, mesmo assim, na maioria das vezes, eles se curam
sozinhos."
Segui
conta que havia lido sobre como os animais usavam o repouso e o jejum como
métodos para curar feridas e decidiu adotar estas mesmas medidas.
"Eu
disse, 'vou fazer como fazem os mamíferos: vou aproveitar, deixar de ter medo,
dormir o mais que puder e deixar que o mamífero dentro de mim tome as
decisões'. Depois disso, tudo ficou mais fácil."
Nos
três dias seguintes, Segui conta que ocupou seu tempo imaginando que iria
escrever um livro e que seria entrevistado para promover a obra.
Em
certo momento, ele tentou negociar com "os deuses" e prometeu parar
de beber se sobrevivesse. Em resposta, surgiu uma alucinação, com sua avó
perguntando "até a cidra de maçã?"
Por
fim, Segui conta que a ideia que mais o torturava não era a da morte, nem mesmo
a dor. O que mais o perturbava eram seus filhos.
"Eu
não sentia dor, mas sim tristeza", relembra ele. "Meu maior medo era
que a minha família não soubesse mais de mim, que ninguém encontrasse meu corpo
e que meus filhos nunca soubessem se eu morri ou, simplesmente,
desapareci."
• Ataúro
No
idioma local, "ataúro" significa "cabra". Morgan Segui
aprenderia o significado da palavra tempos depois que um grupo de cabras salvou
sua vida, no ponto mais profundo do monte Manucoco.
Na
terceira noite após o acidente, Segui acordou assustado com os ruídos do que
parecia ser um animal grande se aproximando.
"Depois
de alguns minutos, percebi que eram cabras", ele conta. "Elas se
aproximaram muito e fiquei contente por estar coberto de folhas e galhos, de
forma que elas não me viam como ser humano. Para elas, eu simplesmente fazia
parte da vegetação."
"A
menor delas se aproximou com o focinho e olhou, como se dissesse 'uau, você
está arrebentado, mas acho que vai ficar bem'."
Para
surpresa de Segui, o grupo de cabras começou escalar o penhasco, caminhando
sobre o estreito caminho em zigue-zague pelas rochas. Elas forneceram a solução
para o seu principal problema.
"Foi
ali que eu disse 'não estou perdido'."
No
dia seguinte, Segui usou todas as forças para ficar de pé, mesmo com fraturas
no pé direito e em várias outras partes do corpo. Ele usou a camiseta para
imobilizar o braço quebrado e se dirigiu ao caminho usado pelas cabras.
"Levei
um dia inteiro para escalar o penhasco, porque fui muito, muito devagar",
ele conta. "Como se fosse um urso preguiçoso, tudo foi muito lento."
Quando
chegou ao cume, Segui parecia ter outra alucinação, como as que o atormentaram
nos seus momentos de delírio. Ele encontrou um portão e, atrás dele, uma
plantação de abacaxis.
"Eu
cheguei perto de um dos abacaxis e o toquei. Estava muito maduro",
relembra ele.
"Os
primeiros pedaços não passaram da minha boca, que estava muito seca. Parecia
uma esponja seca. Mas, quando as fibras e o açúcar finalmente chegaram ao meu
estômago, foi algo inacreditável para minha mente."
"Senti
que meus braços e minhas pernas conseguiam novamente se mover em
conjunto", recorda ele.
Segui
comeu e foi finalmente vencido pelo cansaço. Ele caiu adormecido sob as
estrelas.
• O retorno à civilização
Ele
agora tinha certeza de que iria sobreviver.
A
plantação de abacaxis significava que havia alguém por perto que poderia
socorrê-lo. Ele viu uma casa ao longe e se aproximou, tentando arrumar suas
roupas da melhor forma possível antes de bater à porta.
"Mas
demorei muito e, de repente, vi um homem sair com um estilingue apontado
diretamente para mim, enquanto eu tentava vestir as calças", ele conta.
"Ele
me viu com o couro cabeludo pendurado, tentando vestir as calças e explicar o
que havia acontecido. A única coisa que ele fez foi me abraçar e dizer:
'Obrigado, Jesus, por trazer este homem para o meu campo e dar forças para mim
e para minha família, para podermos reuni-lo à família dele'."
"No
mesmo momento, comecei a chorar."
Por
acaso, o homem se chamava Moisés. Ele levou Segui para casa, sua esposa o
atendeu e lhe deu de comer.
"Eu
estava comendo, mas, a cada mordida, olhava para eles e voltava a chorar",
relembra ele.
"Eu
estava muito feliz. Foi um momento muito profundo. Eu havia voltado à
civilização humana, à minha vida, à água, à comunidade, da melhor forma que
poderia imaginar."
Foi
assim que, depois de cinco dias angustiantes, Morgan Segui estava a salvo.
Quando
estava para ser levado de volta para Díli, Segui conta que agradeceu a Moisés
por toda a sua atenção. Ele diz que o recompensou financeiramente pela ajuda.
Ao
se despedir, o homem confessou: "Agora, preciso voltar porque estou
preparando o funeral da minha filha".
"Eu
disse 'o quê?'", relembra Segui. "Você tomou tempo do funeral da sua
filha para cuidar de mim? Não sei como agradecer e, agora, eu me sinto um
turista estúpido que caiu da sua montanha e fez você perder uma parte
importante do funeral da sua filha."
"Ele
me respondeu: 'não, não, você está vivo e precisávamos cuidar de você'."
A
experiência mudou a perspectiva de vida de Segui. Ele conta que deixou de ser
tão egoísta e, hoje, valoriza imensamente coisas básicas, como a água.
Segui
também se dedicou a ajudar as pessoas da região e incentivar projetos de
abastecimento de água potável.
"Desde
criança, tive muita sorte e a vida me deu muitas coisas", ele conta.
"Mas fui egoísta. Hoje, tento dar mais atenção às pessoas, em vez de
receber."
Fonte:
Programa 'Outlook', Serviço Mundial da BBC
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