Brasil
Paralelo: programa que capta ‘mecenas’ para combater a esquerda já chegou a 284
escolas e ONGs
Quando
escolheu o Centro Educacional Conselheiro, o CEC, uma escola privada
tradicional do município de Nova Friburgo, na zona serrana do Rio de Janeiro,
Joana finalmente relaxou. Depois de alguns meses em dúvida, ela confiou que o
CEC seria o lugar ideal para que sua filha pudesse concluir o ensino
fundamental. Mas a ilusão durou pouco. E a culpa, segundo a mãe, é da invasão
da produtora de extrema direita Brasil Paralelo na unidade escolar.
“Minha
filha estudou lá por dois anos, de 2021 a 2023. Ela gostava bastante da escola.
Era um ambiente acolhedor, com professores dedicados e uma estrutura que sempre
nos passou segurança”, relata Joana. Tudo começou a mudar quando ela passou a
receber e-mails da direção da escola anunciando uma parceria com a Brasil
Paralelo.
A
CEC é uma das mais de 285 instituições que a Brasil Paralelo anuncia como
parceiras do Projeto Mecenas, o “maior e mais importante” da produtora.
Funciona
assim: pagando um valor superior a mil reais (em valores de 2022), os chamados
Membros Mecenas bancam “bolsas” para “melhorar a educação e a cultura” no
Brasil. Na prática, esse dinheiro custeia assinaturas da Brasil Paralelo para
escolas e instituições filantrópicas exibirem seus documentários e cursos para
os alunos.
O
objetivo da produtora é combater o suposto domínio da esquerda nas instituições
educacionais, segundo reuniões entre a empresa e os membros de 2023 e 2024 e
mensagens obtidas pelo Intercept Brasil. É um ganha-ganha: além de ampliar seu
domínio em instituições de ensino, a empresa também aumenta sua base de
assinantes com um discurso caritativo.
Em
2022, apenas uma “bolsa” custava R$ 1.668. O preço caía conforme mais “bolsas”
fossem compradas: 75 bolsas saíam por R$ 23.880, o equivalente a R$ 318,40
cada. Assim, o programa incentiva grandes doadores.
As
informações sobre o projeto são restritas a seus membros, mas o Intercept teve
acesso a vídeos de 17 reuniões, assim como aos relatórios enviados aos membros.
Em
uma das reuniões, a Brasil Paralelo afirmou ter 400 mil assinantes e uma
comunidade de 6 mil membros Mecenas. Nas reuniões virtuais, identificamos a
presença de pequenos empresários, médicos e profissionais liberais, sobretudo
do sul do país, entre os Mecenas.
Os
números divulgados internamente pela produtora impressionam: em junho de 2024,
23.100 pessoas, entre estudantes e famílias, foram impactadas pelos conteúdos
bancados pelos membros Mecenas. Em fevereiro, eram 4.757 assinaturas que já
haviam sido distribuídas por meio do programa.
A
Brasil Paralelo procura instituições alinhadas ideologicamente para o projeto,
mas também incentiva que os mecenas façam indicações de entidades e escolas
para receberem as bolsas.
“Sabemos
que o progressismo investe há décadas em falsos projetos sociais com o objetivo
de emburrecer o povo, destruir valores familiares, normalizar o crime,
incentivar o aborto. Não tendo condições de se defender, essas famílias acabam
sendo reféns desse ‘cativeiro cultural’, tornando-se massa de manobra
eleitoral”, explica uma uma mensagem enviada por um dos representantes da
empresa a um interessado em entrar para o programa, deixando claro o objetivo
do projeto.
• Economia paralela: o
clube dos mecenas
Os
membros Mecenas são tratados como uma espécie de clube, com benefícios e
incentivos. “Você não será igual aos outros membros, você será o membro mais
próximo da Brasil Paralelo” foi a frase que a produtora disse para convencer um
assinante a se tornar um Mecenas, em relato publicado no Reclame Aqui. Outro
relatou ter ganhado uma caneca.
Em
junho de 2024, a Brasil Paralelo lançou um clube de benefícios, com descontos
em serviços como academias e restaurantes, principalmente para divulgar
empresas de outros mecenas – um “conceito de economia paralela”, explicou um
representante da produtora na reunião de junho.
Há
também encontros presenciais para incentivar a adesão ao programa. Os pagantes
mais generosos, que financiam mais de 100 bolsas – ou seja, gastaram R$ 34.680
por ano, em valores obtidos pelo Intercept –, têm direito a encontros anuais
com os outros mecenas.
As
reuniões explicam alguns desses eventos presenciais. No início de abril de
2024, por exemplo, a produtora anunciou um “encontro exclusivo” com Michael
Schellenberger, o jornalista por trás do Twitter Files, o vazamento de
informações do X que Elon Musk soltou para atacar o STF brasileiro.
Em
São Paulo, em junho, outro desses encontros reuniu o deputado Marcel van
Hattem, do Novo, e o economista Hélio Beltrão com os membros. No mesmo mês, a
Brasil Paralelo disponibilizou camarotes para o evento com Jordan Peterson –
aquele divulgado por Cristina Junqueira, a CEO do Nubank, que causou uma crise
de reputação no banco.
Nas
reuniões virtuais, a Brasil Paralelo apresenta os resultados do programa,
descreve os documentários em produção, apresenta os números com entusiasmo e
fala sobre aspectos estratégicos na sua produção de conteúdo. Por exemplo,
formar professores com valores alinhados aos da produtora.
Em
fevereiro, um dos temas discutidos com os membros foi a Conferência Nacional de
Educação, a Conae. Nós mostramos, em janeiro, que o evento quase foi aparelhado
por bolsonaristas.
Na
reunião com os membros daquele mês, o roteirista da produtora Helton Medeiros
citou a Conae para falar sobre a importância de estar na “linha de frente” da
educação para atingir as pessoas que “vão moldar e construir as próximas
legislações voltadas à educação”, mencionando a conferência.
Os
conteúdos pagos da Brasil Paralelo incluem cursos como “o que é capitalismo” e
“harmonia conjugal”, segundo o material de divulgação. A produtora divulga
conteúdos conservadores, que questionam o feminismo e desafiam consensos, como
o aquecimento global.
Um
outro questiona a versão de Maria da Penha sobre a violência doméstica que
sofreu, e transforma Marco Antônio Heredi, o agressor condenado, em possível
inocente. A peça foi alvo de repúdio de pesquisadores e entidades ligadas aos
direitos humanos. Um ano depois da divulgação massiva do material, Maria da
Penha foi incluída no Programa de Proteção de Testemunhas do Ministério dos
Direitos Humanos por ter sido alvo de ameaças. Um dos roteiristas do episódio
disse, em uma reunião com os membros Mecenas, que o “caso Maria da Penha não
era bem assim como diziam”.
Muitos
conteúdos, como o documentário que diz que o golpe de 1964 aconteceu por conta
de uma ameaça comunista no Brasil, são considerados revisionismo histórico e
refutados por historiadores. E os críticos foram ameaçados de processo pela
produtora, preocupada em descolar sua imagem do bolsonarismo radical e se
posicionar como um ‘Netflix de direita’.
Um
dos conteúdos carro-chefe do Mecenas é a série infantil Pindorama, que reforça
a narrativa colonialista do “descobrimento” do Brasil por Pedro Álvares Cabral.
O desenho, que pinta o colonizador português como herói, foi exibido para 180
crianças na Casa da Criança Santa Ângela Osse, na favela de Heliópolis, em São
Paulo.
“A
gente começa nos 6, 7 anos, que é o público para começar a entender a
mensagem”, disse a coordenadora do projeto, Thaís Diniz, na reunião aos
membros. Segundo ela, o desenho foi exibido para pelo menos 400 crianças só
naquela instituição.
Para
a pesquisadora Renata Nagamine, que analisou a Brasil Paralelo em seu
pós-doutorado do núcleo de Religiões no Mundo Contemporâneo do Cebrap, a
produtora atualiza uma narrativa sobre história que era corrente no Brasil há
décadas, e difere do modelo pluralista consagrado na Constituição de 1988. “São
narrativas diferentes que concorrem em um espaço específico, que é a escola, um
espaço privilegiado de sujeitos que irão recontar essa história”, explica.
“A
escola é percebida como esse espaço de modelagem do futuro. E por isso tem
estado no centro do que na análise a gente chama de disputa no Brasil,
sobretudo na última década”, explica. “O ensino da história aparece como
crucial porque naquele espaço o sujeito em formação se constitui com essa
imaginação do passado. A reimaginação do passado importa porque ela participa
da modelagem do futuro”.
• Instituto que defende
homeschooling é case de sucesso
Faltavam
10 dias para o segundo turno das eleições presidenciais de 2022. Em uma sala
pequena, no bairro de Pajuçara, na periferia de Natal, crianças e adultos
sentados em cadeiras de plástico se aglomeravam em uma tela de computador.
O
espaço tinha uma parede estampada com os dizeres “ciências e geografia”, além
da figura de um átomo, mas o conteúdo ali era outro: uma reunião com
representantes da Brasil Paralelo.
Os
adultos e crianças estavam em um encontro no Instituto Recebs, uma organização
que defende a educação domiciliar e forma tutores para ensinar crianças em
casa. Acrônimo de “Resgate da Educação Clássica no Ensino Básico e Superior”, o
instituto defende que os pais têm “direito de escolha” sobre colocar ou não os
filhos em uma escola, e conta com uma plataforma própria de ensino.
Era
nessa plataforma, criada pelo vice-presidente do instituto, o jornalista
Claiton Appel, que a Brasil Paralelo despejaria seu conteúdo. Leonardo Barbosa
e Thaís Diniz representavam a produtora na reunião, em um encontro registrado
no Instagram do instituto.
Fachada
do Instituto Recebs exibe banner que divulga parceria com a Brasil Paralelo.
Appel
afirma ter conhecido a Brasil Paralelo em 2018, quando procurava “filmes de
qualidade na internet para passar para as crianças”. Topou com a produtora e
gostou do que viu. “Eu quis assinar logo de cara, mas não tinha condição”, ele
contou, em uma entrevista à produtora.
Sua
mulher, Carmem Helane, fundadora do instituto, afirma que o documentário
“Pátria Educadora”, que entrevistou figuras como Luiz Phillipe de Orleans e
Bragança , foi o que fez a sua cabeça. “Eu chorei quando assisti. Na hora eu
pensei em levar tudo isso para os pais das crianças. Poderia fazer muito bem
para a educação delas e para ajudar na vida das famílias, já que, infelizmente,
muitas famílias daqui são desestruturadas”, ela narrou, também para a Brasil
Paralelo.
O
casal, então, recorreu à produtora para conseguir uma bolsa e usar o conteúdo
com as crianças do instituto. Deu certo.
“Nós choramos muito”, disse Appel. “Conseguimos passar bons valores para as
crianças. Até mesmo jovens que não conseguem ler, assistem, os pais colocam
conteúdos da BP para eles assistirem e aprenderem”.
O
casal se orgulha de manter o instituto com “90% de recursos próprios”. Neste
ano, no entanto, a organização recebeu pelo menos R$ 30 mil de uma emenda
parlamentar do deputado estadual Coronel Azevedo, do PL. Segundo Appel, são
1.300 pessoas na rede do Recebs.
Appel,
ex-diretor da Ordem dos Jornalistas do Brasil, tinha uma coluna no Jornal da
Cidade Online, conhecido por conteúdos de extrema direita, e também na própria
Brasil Paralelo.
O
instituto ostenta com orgulho a parceria com a produtora, e a divulgação é
mútua: a Brasil Paralelo fez um vídeo sobre o Recebs e publicou textos
elogiosos sobre seus fundadores. Esse é considerado um dos cases de sucesso do
projeto Mecenas.
Foi
Appel quem recebeu no aeroporto Thaís Diniz, o diretor de marketing Danilo
Feitosa em maio de 2023. O vice-presidente da Recebs segurava uma faixa de boas
vindas aos representantes da produtora no saguão de desembarque, feito
devidamente registrado nas redes sociais da Brasil Paralelo.
“A
gente ajuda eles com apoio através dos nossos membros com acesso à plataforma
da Brasil Paralelo”, disse Diniz, apresentada como “coordenadora Mecenas”, em
entrevista à Rádio Local 94FM. Na plataforma, ela explicou, “as pessoas têm a
oportunidade de estudar através da auto educação com os conteúdos da Brasil
Paralelo. Esse é o projeto Mecenas, um mecenato”.
Além
de atender crianças e famílias vulneráveis, a Recebs também ganha dinheiro
oferecendo cursos sobre homeschooling, modalidade de ensino domiciliar que é
ilegal no Brasil. A organização fornece materiais e formação para interessados
na modalidade, a um custo de R$ 300 por criança no nível fundamental.
O
instituto, em seu site, toma cuidado para dizer que “não incentiva o ensino
domiciliar”, apenas auxilia os pais que já tomaram essa decisão e fornece
materiais didáticos em sua plataforma de ensino. Nela, há os conteúdos da
Brasil Paralelo.
Segundo
o site, um colégio “parceiro”, chamado Luz do Ensino, fornece documentos
necessários para comprovar a presença dos alunos nos estudos, ou para
transferir o estudante para o ensino regular, declaração de IR, histórico
escolar e outros documentos para fins burocráticos.
O
único rastro do colégio Luz do Ensino, no entanto, é seu site na internet. O
CNPJ foi criado há pouco mais de um ano. Seus donos são os mesmos Claiton Appel
e Carmem Souza. E ele fica no mesmo endereço do Instituto Recebs. Na fachada,
um muro pintado informa que ali são oferecidos cursos de ensino fundamental e
médio e aulas de reforço – um banner com o logotipo de Brasil Paralelo faz
propaganda da parceria.
Segundo
o Ministério da Educação, não há na legislação educacional brasileira nenhuma
previsão ou possibilidade de atendimento exclusivamente domiciliar nessa faixa
etária. “As famílias que não matriculam crianças e adolescentes na escola podem
ser responsabilizadas por abandono intelectual”, disse o ministério, por meio
de sua assessoria de imprensa.
• ‘Eles forçavam a barra
para a gente assistir aos conteúdos’
Entre
as organizações que receberam os conteúdos da Brasil Paralelo financiado por
terceiros também estão o G10 Favelas, em uma parceria celebrada por um
colunista da Folha, a Amigos do Bem, premiada ONG que atua com projetos sociais
no sertão nordestino, e o Instituto de Formação de Líderes, organização que
atua formando lideranças ultraliberais.
Só
na CEC, em Nova Friburgo, são 550 alunos que têm acesso aos conteúdos da Brasil
Paralelo por meio de 650 assinaturas. No início do ano, o longa “História do
Comunismo”, da produtora, foi exibido aos alunos do ensino médio da escola.
O
Intercept teve acesso às mensagens da escola aos pais sobre o tema. Nos
primeiros contatos, a CEC informava que os conteúdos da plataforma seriam
disponibilizados gratuitamente para os alunos e suas famílias. A princípio,
Joana não viu grandes problemas na parceria.
“Achei
que poderia ser algo inofensivo, talvez até uma oportunidade de ampliar o
repertório cultural da minha filha. Mas com o tempo, comecei a perceber que o
envio de e-mails se tornou mais frequente e insistente. Não era apenas um ou
outro conteúdo, mas uma avalanche de material sendo promovido diretamente pela
escola”, comenta, preocupada.
Além
dos e-mails, as redes sociais da escola também passaram a refletir essa nova
parceria. “Eles começaram a postar muito sobre a Brasil Paralelo, fazendo
resenhas dos vídeos, muitas vezes com um tom de validação do conteúdo”, diz
Joana. Um dos diretores tornou-se particularmente ativo, compartilhando vídeos
na página da escola, em que analisava os materiais da produtora, segundo ela.
Na
última postagem feita sobre a Brasil Paralelo, a escola indica o filme
“Unitopia”, sobre uma suposta doutrinação de esquerda e viés marxista nas
universidades públicas brasileiras.
Renata
Nagamine, do Cebrap, chama atenção para o fato de que a própria Brasil
Paralelo, assim como o público que consome suas produções, não se considera de
extrema direita – mas, sim, se apresentam como direita, conservadores ou apenas
só liberais. “A Brasil Paralelo anuncia a ambição de falar para todos”, diz
Nagamine. Como exemplo, ela cita o fato de diferentes políticos, de várias
matizes diferentes, passarem pelos programas da produtora.
Em
entrevista ao Intercept, ela já explicou que isso pode significar uma
radicalização da direita. “No processo em que a Brasil Paralelo se constitui
como um ator político relevante, o centro se deslocou para a direita”.
Na
escola em Nova Friburgo, o efeito foi percebido. Com o aumento das publicações
e a frequência com que o nome da produtora aparecia associado ao da escola,
Joana começou a sentir que algo estava errado.
“Não
era só uma parceria educacional; parecia uma tentativa de doutrinação. E isso
me deixou muito desconfortável, porque eu não queria que minha filha fosse
exposta a esse tipo de ideologia sem um contexto mais amplo e crítico”
desabafa.
Além
das sugestões para que os pais e alunos assistissem aos conteúdos em casa, a
CEC também promove exibições de filmes da Brasil Paralelo dentro da escola. Um
e-mail que o Intercept teve acesso informa que uma das atividades da educação
infantil em um dia letivo foi assistir o um filme “através da plataforma Brasil
Paralelo”.
“Eles
forçavam a barra para a gente assistir os conteúdos”, diz Joana. Foi por isso
que ela finalmente decidiu tirar a filha da escola no fim de 2023. “É uma
experiência traumatizante trocar uma criança de escola. Não era algo que a
gente queria fazer. Mas era uma pressão tão grande para ver esses filmes que
nos incomodou a ponto de preferir sair da escola”, explica.
A
CEC segue parceira da Brasil Paralelo. A escola não respondeu aos
questionamentos enviados pelo Intercept. Instituto Recebs e Brasil Paralelo
também ignoraram nossos e-mails.
Fonte:
Por Tatiana Dias e Paulo Motoryn, em The Intercept
Nenhum comentário:
Postar um comentário