sábado, 30 de novembro de 2024

49,9% dos medicamentos incorporados ao SUS entre 2022 e 2023 não estão disponíveis

Levantamento obtido por Futuro da Saúde aponta que 49,9% dos medicamentos incorporados ao SUS entre 2022 e 2023 não estão disponíveis à população. Eles representam 23 dos 47 tratamentos incorporados no período para diversas doenças, como esclerose múltipla, câncer de mama e osteoporose.

Por lei, o Governo Federal tem 180 dias para o fornecimento de medicamentos após a incorporação, que ocorre a partir da publicação de portaria do Ministério da Saúde no Diário Oficial da União (DOU) após todo o processo de avaliação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec). No entanto, o prazo nem sempre é cumprido pela pasta.

A análise foi realizada com base em informações públicas do DOU, do Departamento de Logística em Saúde e do Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos e OPM do SUS (SIGTAP). A ausência de contratos e códigos para os tratamentos indica que eles ainda não estão disponíveis.

O atraso pode trazer impactos à saúde da população. Associações de pacientes apontam que a demora para a disponibilização de medicamentos impacta no acesso da população ao tratamento mais adequado, já que, via de regra, o tratamento incorporado é melhor que o disponível atualmente no SUS. Já para a indústria farmacêutica, afeta a organização para produção, distribuição e suporte ao paciente.

Procurado, o Ministério da Saúde afirma em nota que “os prazos podem ser afetados por diversos fatores, como disponibilidade orçamentária, processos administrativos e logísticos, entre outros. O processo de incorporação pode levar alguns meses, e o objetivo é garantir que a decisão de incorporação seja bem fundamentada, levando em consideração os aspectos clínicos, econômicos e sociais da tecnologia em questão”.

Na sexta-feira, 1 de novembro, o secretário de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, Carlos Gadelha, afirmou, em entrevista exclusiva ao Futuro da Saúde, que o Ministério trabalha para atualizar os prazos, respeitando as necessidades dos usuários e do Governo.

•                        Atraso na disponibilidade de medicamentos incorporados ao SUS

“A Conitec hoje é a porta de entrada para o medicamento fazer parte do SUS. Espera-se que ela tenha um rigor e critérios claros, além do comprometimento com a escolha de tecnologias que são sabidamente custo-efetivas. O problema é que esperamos pela chegada do avanço de incorporação do medicamento e depois sofremos para que ele saia do papel para que a gente não tenha que viver essa falta de equidade entre os sistemas de saúde”, afirma Luciana Holtz, fundadora e presidente do Instituto Oncoguia.

Os 23 medicamentos incorporados entre 2022 e 2023 que não estão disponíveis para a população, segundo o levantamento, são indicados para tratamento de doenças como fibrose cística, câncer de mama, câncer de pulmão, doença de Fabry, atrofia muscular espinhal, esclerose múltipla, osteoporose, entre outras.

A disponibilidade de medicamentos incorporados ao SUS é um desafio de anos. Seja por falta de orçamento anual para custear a compra das novas drogas, seja por falta de atualização dos valores de Autorização de Procedimentos Ambulatoriais (APAC), existe historicamente uma falha no processo de oferta de novos medicamentos a pacientes.

O Ministério da Saúde tem buscado soluções nesse sentido, como uma possível proposta para compras centralizadas de medicamentos oncológicos, confirmada pela pasta ao Futuro da Saúde em julho deste ano. No entanto, não houve atualizações sobre as discussões desse tema.

Parte da reclamação de associações de pacientes está na falta de respostas do Governo frente aos questionamentos sobre a situação dos medicamentos incorporados, mas não disponíveis. É o caso da Associação Brasileira de Esclerose Múltipla (Abem), que busca respostas sobre a incorporação de um medicamento. Isso pode impactar, inclusive, no aumento da judicialização.

“Só há judicialização quando vemos a omissão do Estado em determinadas situações. Ninguém gosta de fazer. Quando o paciente se socorre por essa via, é porque é a última salvação, o último lugar que ele tem e, infelizmente, é o meio de acesso”, afirma Sumaya Afif, diretora Jurídica e de Advocacy da Abem.

Em meio a discussões sobre o impacto da judicialização da saúde no SUS e a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) acerca de processos que solicitam acesso a medicamentos não incorporados, há uma pressão para que o Ministério da Saúde resolva também a disponibilização de medicamentos já incorporados.

O caso do Zolgensma, por exemplo, é considerado simbólico por especialistas. Incorporado em 2022 através de um acordo de compartilhamento de risco e com custo de 5,7 milhões de reais por unidade, o medicamento só está disponível até o momento através da via judicial, o que eleva os gastos públicos para a sua disponibilização e cria restrições a famílias.

•                        Pacientes com câncer de mama

Um dos principais medicamentos oncológicos aguardados é o trastuzumabe entansina. Com indicação para câncer de mama tipo HER2 positivo, para pacientes que tenham sido operadas em estádio III e que tenham doença residual, o tratamento foi incorporado em setembro de 2022 e ainda não foi disponibilizado. O impacto estimado ao SUS com a sua incorporação é de R$881.936 milhões acumulados em 5 anos, em caso de não compartilhamento de doses.

“As pacientes estão perdendo a chance de serem curadas, porque existe um tempo correto. Hoje, quando falamos de medicina de precisão, é o tempo correto para a paciente correta também. Essa situação é muito frustrante”, afirma Holtz.

Comercializado como Kadcyla, o medicamento é fabricado pela Roche. O produto foi aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2019 e, mesmo após a incorporação da Conitec, não está disponível para os pacientes do SUS como política de saúde. Apenas algumas instituições com mais recursos o oferecem ou as pacientes conseguem o direito ao tratamento por decisão judicial.

Em nota, a farmacêutica afirma que “há cinco anos, o país conta com uma inovação que tem o potencial de manter as pacientes em um cenário curativo, mas ela não está disponível a quem mais precisa dela. Uma realidade que temos o dever de transformar o mais rápido possível”. Ela ainda afirma que tem se colocado à inteira disposição dos órgãos públicos para colaborar e trazer mais celeridade ao processo de disponibilização.

A Roche aponta que, com base em dados disponíveis do DATASUS, aproximadamente sete novas pacientes por dia chegam à saúde pública com um quadro de câncer de mama HER2 positivo em estágio inicial e que não tiveram resposta completa após o tratamento neoadjuvante, aquele realizado antes da cirurgia ou radioterapia, cenário em que o trastuzumabe entansina entraria.

Holtz explica que o Oncoguia já buscou contato com o Ministério da Saúde em diferentes oportunidades. “Em alguns momentos a questão era custo, porque o orçamento já havia sido concluído, então não iria conseguir comprar um novo medicamento. Em outros momentos era o Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT)”, explica a presidente.

O câncer de mama é uma das condições que aguardam a publicação do PCDT, o que pode impactar na chegada do tratamento para a população. O texto de recomendação final foi aprovado em abril de 2024, mas não houve publicação no Diário Oficial da União. Não há previsão de quando será publicado.

“O PCDT também vai ajudar muito em não ter mais essa questão do meu SUS ser diferente do seu SUS. Porque, uma vez resolvida a questão do financiamento, temos quase certeza de que essa falta de equidade não vai acontecer. Hoje o maior pedido tem sido para que a incorporação de fato aconteça”, defende a presidente do Oncoguia.

•                        Medicamento oral para esclerose múltipla

Outro medicamento que se encontra nessa situação é a cladribina oral. Produzido pela Merck, é uma terapia não infusional para pacientes com esclerose múltipla remitente recorrente altamente ativa, doença degenerativa grave que afeta o funcionamento do corpo humano.

“É uma inovação no tratamento que também já estava disponível nos principais sistemas de saúde do mundo, como Reino Unido, Austrália e outros. A Merck  já vinha há alguns anos nesse trabalho com o Ministério da Saúde, tentando oferecer todas as evidências necessárias, todas as informações para a incorporação do produto. Felizmente, no ano passado, a gente teve a boa notícia dessa incorporação”, afirma Clóvis Brito, diretor de acesso da farmacêutica.

O principal diferencial do produto é ser oral, não demandando deslocamento de paciente e equipes de saúde dedicadas para fazer a infusão, como ocorre nos tratamentos convencionais para esse tipo de esclerose múltipla. Segundo a Merck, dados do DATASUS apontam para um grande deslocamento de pacientes, com cerca de 45% deles fazendo o tratamento fora do seu município.

“É importante lembrar que o Brasil é um pequeno continente e que tem pessoas que não moram em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, lugares que efetivamente não sentem tanto a desigualdade. É um medicamento que não exige que esse paciente falte ao trabalho ou aos estudos para fazer uma infusão”, afirma Afif, da ABEM.

No entanto, não houve ainda a disponibilização para os pacientes do SUS. No caso do PCDT para esclerose múltipla, o Ministério da Saúde publicou em 26 de setembro sua atualização. A pasta afirma, em nota, que o medicamento está em “processo de aquisição”. Ainda, aponta que existem outros 7 tratamentos incorporados para a doença.

“Entendemos a dinâmica da Conitec, o processo é moroso. Estar na posição deles também é desconfortável, porque depende de uma ação política, efetivamente. O Ministério poderia ter um cuidado em promover as informações mais atualizadas”, observa Afif, que aponta o modelo de fila de registro da Anvisa como um case a ser seguido para o processo de incorporação e disponibilização de medicamentos.

Clóvis Brito, da Merck, explica que a falta de previsibilidade sobre a compra do Ministério impacta na organização do mercado farmacêutico. Isso porque envolve produção, preparação, logística e treinamento de equipes, que irão dar suporte a médicos e pacientes.

“Não é uma característica só para a Merck, mas posso falar aqui em nome da indústria. São processos complexos e a gente reconhece isso, principalmente se tratando do maior sistema de saúde universal do mundo. Reconhecemos a necessidade de que isso seja feito da forma mais criteriosa possível. Mas trabalhamos com cronogramas e, obviamente, eles têm um impacto, porque é uma cadeia muito longa”, afirma Brito.

 

Fonte: Futuro da Saúde

 

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