A
democracia não é uma empresa
A
suposição da democracia liberal de que os partidos políticos devem competir por
votos da mesma forma que as empresas competem por clientes é uma armadilha
perigosa. Ela reduz a votação a uma mera escolha transacional e apaga a visão
participativa da autogovernança.
##
A
maioria de nós tem um partido político preferido. Mesmo que não gostemos de
muitas de suas políticas, sua retórica ou seu líder, e vejamos nossa
preferência como um compromisso, esse partido é o mais próximo de nossos
valores e é a alternativa que preferiríamos ter no governo.
Ao
mesmo tempo, pode parecer que não temos nenhuma escolha real na prática. Se
apenas um partido é tolerável, ou todos os outros são totalmente intoleráveis,
pode parecer que estamos apenas votando contra partidos ruins, em vez de votar
em um bom.
Se
essa opção menos ruim se afastar o suficiente dos nossos valores, podemos
decidir parar de votar no mal menor até que alguém ofereça uma visão que valha
a pena apoiar. Ou seja, podemos decidir que nenhum partido pode contar com
nosso apoio incondicional — se os partidos querem nossos votos, eles terão que
conquistá-los.
Mas
deveríamos ter essa expectativa? Os partidos políticos deveriam ganhar nossos
votos? Com base na visão de senso comum da democracia liberal, parece que a resposta é obviamente sim — a única alternativa seria a lealdade partidária incondicional. No entanto, se
entendermos o que essa expectativa implica em relação à política, e o que a
democracia real exige, então veremos que a resposta é não.
Para
responder a essa pergunta, precisamos primeiro entender o que é democracia. As
definições de democracia destacam que é uma palavra grega antiga que significa
“o governo pelo povo” ou citam
frases como “governo do povo, pelo povo, para o povo” ou “o consentimento dos governados”.
Muitas vezes tratamos essas descrições como intercambiáveis, mas elas derivam
de duas filosofias políticas distintas com visões radicalmente diferentes da
política democrática. A conexão com “governo” vem da antiga tradição republicana, enquanto o foco em
“consentimento” foi introduzido pelo liberalismo moderno. Essas duas teorias da democracia levam a
conclusões opostas sobre se os partidos devem ganhar nossos votos.
·
A analogia da escolha do consumidor
Se
a democracia é sobre consentimento, como na visão liberal, então a expectativa
de que os partidos devem ganhar nossos votos se encaixa na forma como pensamos
sobre a maioria das escolhas consensuais.
A
escolha consensual por excelência é a do consumidor. Por exemplo, consumidores
que procuram café podem esperar encontrar dezenas de cafés competindo para
oferecer um bom café a preços baixos em lojas legais, talvez até inovando.
Nenhum café pode contar com lucro incondicional: sempre podemos ir a outro
lugar, fazer café em casa, trocá-lo por chá ou ficar sem cafeína. Se os cafés
querem nosso dinheiro, eles precisam conquista-lo.
A
dependência das empresas por essas escolhas consensuais dá aos consumidores
muita vantagem. Se nosso café favorito aumentar os preços, iremos com menos
frequência; se a equipe for rude, pararemos de ir; se o proprietário doar para
uma instituição de caridade antiética, podemos organizar um boicote. Se outros
consumidores se juntarem a nós em número suficiente na retenção de seus lucros,
o café terá que melhorar ou sair do mercado. Coletivamente, essas escolhas
individuais constituem a “mão invisível” do mercado: o sistema de incentivos de
mercado que explora o desejo do café por lucro para impulsionar a concorrência
e garantir uma ampla seleção de bons cafés.
Essa
analogia da escolha do consumidor foi aplicada de forma influente à política em
1942 pelo economista e teórico político Joseph Schumpeter. Schumpeter descreveu a democracia
como um método pelo qual “indivíduos adquirem o poder de decidir por meio de
uma luta competitiva pelo voto do povo”. Ele via a competição eleitoral
como análoga à competição de
mercado: partidos (empresas) oferecem políticas (produtos) aos eleitores
(consumidores), cujos votos individuais (compras) se combinam para criar
incentivos que exploram o desejo dos partidos por poder (lucro), impulsionando
assim a competição e garantindo uma boa governança (produção eficiente).
Essa teoria “competitiva” da democracia (e outros
modelos econômicos de política) influenciou muito o
liberalismo do século XX e ainda baseia a visão sobre democracia do senso comum
atual.
Se
perguntado, “Os partidos devem ganhar nossos votos?” Schumpeter (e a maioria
dos teóricos políticos liberais) diria que sim. Essa expectativa é essencial
para a operação da mão invisível do mercado político, o que significa que a boa
governança depende dos eleitores insistirem que os partidos ganhem seus votos.
Se continuássemos comprando de cafés ruins, eles não teriam incentivo para
fazer um bom café. Da mesma forma, se continuarmos votando em partidos ruins,
eles não terão incentivo para oferecer políticas populares.
“Falar
de partidos que conquistam nossos votos significa aceitar que nosso único papel
é votar, enquanto as elites políticas decidem como governar.”
Isso
pode parecer um modelo eficiente de política. Os partidos oferecem políticas
concorrentes, os eleitores escolhem o partido que preferem, e o vencedor
governa até ser julgado por seu desempenho na próxima eleição. Se um partido
tem más ideias ou governa mal, ele não ganhará votos suficientes e terá que
mudar de rumo ou ser substituído. Essa competição garantirá uma boa governança,
e os eleitores só precisarão fazer pesquisas básicas e opinar periodicamente,
deixando-os livres para se concentrar em suas vidas privadas.
Claramente,
a política real não funciona assim. Os mercados podem ser decentes para
entregar café, mas quantos partidos políticos desfrutam das classificações de
aprovação até mesmo dos piores cafés? Com que frequência os partidos “saem do mercado” e são substituídos? Se aceitarmos a
teoria competitiva, então talvez precisemos
apenas aumentar a competição por meio
de melhor regulamentação do
mercado político ou mais insistência para que os partidos ganhem nossos
votos. Mas antes de dobrar a aposta neste modelo de política baseado no
mercado, devemos considerar suas implicações de maneira mais ampla.
·
As premissas da democracia competitiva
Primeiro,
a teoria competitiva é altamente desigualitária, daí seu nome alternativo: a “teoria da democracia da elite”.
Ela sustenta que os políticos eleitos devem “fazer política e lei com pouca
consideração pelas demandas inconstantes e difusas feitas por cidadãos comuns”
(Schumpeter também achava que os políticos deveriam ser retirados de uma aristocracia hereditária). A
competição eleitoral ocorre inteiramente entre essa pequena elite, explorando
seu desejo de poder para incentivá-los a governar bem.
Em
contraste, à maioria das pessoas é negado qualquer papel na política além de
escolher seus líderes (Schumpeter também achava que era perfeitamente legítimo restringir
o direito de voto com base em sexo, raça, riqueza ou religião). Assim como os
consumidores deixam as decisões sobre como o café é feito para os cafés, os
eleitores deixam as decisões sobre
o que está na cédula para os partidos.
A
exclusão da maioria das pessoas da tomada de decisões políticas não é um efeito
colateral da teoria competitiva, mas um de seus objetivos principais.
Schumpeter acreditava que “a massa de
eleitores é incapaz de ação que não seja uma debandada”, e, portanto, argumentava que as
instituições políticas devem garantir que os eleitores “não controlem seus
líderes políticos de forma alguma, exceto recusando-se a elegê-los”.
Para
evitar quaisquer “repulsões espontâneas” que
possam impor a vontade do povo ao governo, Schumpeter também instou as elites
políticas a “fabricar” a vontade pública por meios “exatamente análogos aos métodos da
propaganda comercial”. Idealmente, o argumento político deveria ser “a tentativa de
distorcer premissas volitivas existentes em uma forma particular e não
meramente a tentativa de implementá-las ou ajudar o cidadão a se decidir”.
Segundo,
a teoria competitiva implica uma visão hiperprivatizada da sociedade. Quando a
democracia é tratada meramente como um meio para agregar escolhas privadas, a
sociedade é reduzida a meramente um instrumento para promover fins privados. Assim como a
sociedade de mercado transforma “pessoas” em
“consumidores”, a democracia competitiva transforma “cidadãos” em “eleitores”
(ou combina ambas as formas degradadas em “contribuintes”).
Esta
é a diferença mais gritante entre os modelos liberal e republicano de política.
A privatização liberal da participação política degrada o caráter da cidadania e
destrói a solidariedade social que costumava ser chamada de patriotismo. Ao eleitor liberal é
negada a capacidade de participar de assuntos públicos, outrora considerada a essência da liberdade; é negada
a oportunidade de se destacar na vida pública, outrora considerada o propósito da política; e negada a felicidade pública e a liberdade pública que antes eram buscadas pelo cidadão republicano.
A
desconexão da democracia da participação da maioria das pessoas na vida pública
também deixa a teoria liberal cega à corrosão cívica causada pela extrema desigualdade,
pela dominação no local de trabalho, o
colapso do engajamento político ativo e
a negação da segurança republicana a
imigrantes sem documentos. Esse apagamento daqueles que não têm status legal
formal nega a eles os direitos e responsabilidades da cidadania por completo,
ressaltando ainda mais como o modelo liberal abandona tanto a solidariedade
quanto a justiça.
No
final, a teoria competitiva produz a sociedade que ela imagina. A ampla
deliberação pública é substituída pela competição eleitoral de elite; a busca
por propósito coletivo é substituída pela busca por crescimento econômico; e a
preocupação com o bem comum é substituída pelo equilíbrio de interesses
privados.
Por
que os partidos não devem ganhar seu voto
Aexpectativa
de que os partidos devem ganhar nossos votos se origina e reproduz esse modelo
de política mercantilizado, elitista e privatizado. Quando esperamos que as
empresas ganhem nossos dólares, aceitamos que nosso único papel é pagar,
enquanto elas decidem como produzir. Falar de partidos ganhando nossos votos é
aplicar essa mesma ideia à política: significa aceitar que nosso único papel é
votar, enquanto as elites políticas decidem como governar.
No
entanto, o consentimento envolvido na democracia competitiva é ainda mais
limitado do que a escolha do consumidor. A exclusão das pessoas de qualquer
papel na tomada de decisões significa que seu consentimento não é buscado para
se ou como as elites governarão, apenas quais elites governarão — os eleitores
não escolhem o produto, apenas o produtor. Como nosso único papel é votar, não
decidir, uma vez que é determinado que consentimos com o governo (mesmo
que tacitamente), todas as decisões
sobre o que consentimos não dependem mais de nós.
“Partidos
genuinamente democráticos não são marcas, empresas ou facções de elite que
buscam ganhar votos, mas instituições por meio das quais os membros cooperam
para moldar a sociedade em que vivem.”
Em
última análise, esse modelo de política desempoderador deriva do coração da
filosofia política liberal: a ideia de que democracia é consentimento ao
governo. Não podemos consentir com nossas próprias ações, apenas com o que é
feito a nós por outros, então todas as discussões sobre consentimento pressupõem que um lado age e o outro é passivo dessa ação. Assim, a ideia liberal de consentimento ao governo descarta a
ideia republicana de autogoverno pelo povo e implica, em vez disso, que um povo
passivo é governado por uma elite ativa.
Esperar
que os partidos ganhem nossos votos aceita e reforça nossa degradação, de
cidadãos autogovernados, que participam da vida pública, para eleitores
consentidos, que autorizam o governo da elite. Abandonar essa expectativa é o
primeiro passo para garantir que os partidos políticos cumpram sua única função
legítima em uma sociedade democrática: como instituições para as pessoas
desenvolverem, discutirem e defenderem suas próprias ideias e, assim, moldarem
a sociedade em que vivem.
·
Uma nova cidadania democrática
Enquanto
a passividade do eleitor liberal concede o luxo vazio de um foco limitado na
vida privada, o direito do cidadão republicano ao autogoverno traz tanto o
poder quanto a responsabilidade da participação ativa na vida pública. Os
partidos políticos, por mais falhos que sejam, são os principais veículos para
tal participação. Como tal, o autogoverno hoje requer filiação a um partido; e
como a política democrática requer amplo engajamento, é mais eficaz filiar-se a
um partido grande, diverso e popular.
Se
nenhum partido reflete seus valores, isso não é uma falha das elites em ganhar
seu voto, mas um sinal de que você não está suficientemente incluído na tomada
de decisões públicas. A solução não é lançar um boicote eleitoral até que a mão
invisível da competição eleitoral ofereça melhores opções, mas buscar uma
redistribuição de poder. Alcançar isso exigirá democratizar nossos partidos,
mas tais reformas não serão paternalisticamente concedidas de cima: o controle
dos membros deve ser promulgado por eles mesmos.
Não
muito tempo atrás, os esforços de democratização enfrentavam difíceis
compensações entre participação e justiça: maximizar o controle dos membros arriscava
empoderar aqueles com tempo livre para participar, enquanto deixava de lado
aqueles com trabalho oneroso ou responsabilidades familiares. No entanto, novas e emergentes ferramentas
de e-democracia, técnicas
de processamento de linguagem natural e outros métodos computacionais permitem
que a deliberação ocorra em escalas massivas sem se tornar proibitivamente
demorada, possibilitando que pessoas com limitações de tempo participem
significativamente. Os defensores da democracia de hoje estão mais bem
equipados do que em qualquer outro momento em pelo menos 250 anos para
substituir a antiquada tecnologia social de representação eleitoral por um
verdadeiro autogoverno.
Partidos
genuinamente democráticos não são marcas, empresas ou facções de elite buscando
ganhar votos, mas instituições por meio das quais os membros cooperam para
moldar sua sociedade. Alguns compromissos difíceis ainda serão necessários — a
participação democrática garante apenas uma audiência justa e uma parte igual
na tomada de decisão coletiva — mas o caráter desses compromissos será
fundamentalmente alterado. Enquanto os partidos liberais oferecem compromissos
que esperam que os membros aceitem, os partidos democráticos chegam a
compromissos por meio da deliberação dos membros — os membros dos partidos
democráticos não apoiam as políticas, mas as decidem.
A
democratização começa não mais falando do “partido” ganhando nossos
votos, mas do “nosso partido” promulgando nossas decisões
conjuntas. A visão do cidadão-membro democrático é “Este é meu partido, junto
com meus amigos e aliados, que usamos para governar nossa sociedade; sua equipe
são nossos funcionários, seus membros eleitos são nossos porta-vozes, suas
políticas são nossas decisões e suas vitórias são nossas vitórias.” Na medida
em que isso ainda não for uma realidade, o trabalho de democratização ainda não
terminou.
Tudo
isso requer uma nova compreensão da democracia. Quando esperamos que os
partidos ganhem nossos votos, nós preventivamente renunciamos ao nosso direito
de participar do autogoverno. Abandonar essa expectativa, filiar-se a um
partido e assumir nossa parcela de poder e responsabilidade é o primeiro passo
em direção à nova democracia e à verdadeira liberdade.
Fonte:
PorJoseph Gubbels, com tradução de Pedro Silva, para Jacobin Brasil
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